Revista da SBDA
Direito Aeronáutico e Direito Espacial

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Contrato de Transporte Aéreo no Novo Código Civil Brasileiro

José Gabriel Assis de Almeida *

Resumo

O presente artigo visa examinar as alterações introduzidas pelo novo Código Civil brasileiro no contrato de transporte aéreo, regulamentado pelo sistema de Varsóvia e pelo Código Brasileiro de Aeronáutica. Para tal, o artigo define as normas aplicáveis ao contrato de transporte aéreo, examina o conceito de contrato de transporte aéreo e analisa o conteúdo do contrato de transporte aéreo e do regime de responsabilidade no contrato de transporte aéreo. O artigo conclui que há substanciais diferenças entre as normas do novo Código Civil e as normas do sistema de Varsóvia e do Código Brasileiro de Aeronáutica. As novas disposições trazem uma maior proteção para o usuário do serviço de transporte aéreo, porém, sob outros aspectos, criam diversas dificuldades de operação. De qualquer modo, há uma urgente necessidade de promover uma revisão dos contratos de transporte atuais, inclusive com a adoção de postura mais cautelosa perante o usuário do transporte aéreo.

1. Introdução

No dia 11 de janeiro de 2003 entrou em vigor o novo Código Civil brasileiro (de ora em diante, abreviadamente designado NCC). Este diploma legal é importante sob diversos aspectos, e um dos mais importantes é a unificação das regras aplicáveis aos contratos, fazendo desaparecer a distinção entre regras de direito civil e o direito comercial.

Ora um dos contratos regulamentados pelo NCC é precisamente o contrato de transporte. Esta matéria é tratada nos artigos 730 a 756.

Deste modo, é necessário examinar se as regras do NCC aplicam-se aos contratos de transporte aéreo e, se for o caso, verificar se há diferenças entre as novas regras gerais sobre contratos de transporte aéreo e as regras anteriores, ou seja, o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) e as convenções internacionais que compõem o sistema de Varsóvia (Convenção de Varsóvia, Protocolo de Haia e Protocolos 1, 2 e 4 de Montreal, uma vez que o Protocolo 3 de Montreal ainda não está em vigor). Ao se examinar as diferenças é preciso ainda verificar se essas diferenças geram conflitos e, em caso positivo, como resolvê-los.

O objetivo do presente artigo é determinar o âmbito de aplicação das normas do NCC versus as normas aeronáuticas especiais, examinar as diferenças entre cada conjunto de normas, detectar eventuais conflitos entre cada sistema e propor soluções para harmonizar esses conflitos.

2. A Definição das Normas Aplicáveis ao Contrato de Transporte Aéreo

A primeira grande questão é saber se as regras do NCC sobre contrato de transporte aplicam-se também ao contrato de transporte aéreo. Com efeito, o NCC, ao cuidar do contrato de transporte, não faz nenhuma menção específica ao transporte aéreo. Mas também não o faz com relação ao transporte rodoviário, ferroviário, fluvial ou marítimo.

Ora, o transporte aéreo é, inegavelmente, uma espécie do gênero transporte, ou seja, é uma das modalidades do transporte. Assim, conceitualmente, não há razão para rejeitar a aplicação das regras do NCC.

Poder-se-ia, no entanto, argumentar que o contrato de transporte aéreo é já regido por um sistema normativo específico, composto pelo CBA e pelo sistema de Varsóvia, o que afastaria a aplicação do NCC. Porém, o NCC expressamente prevê a sua aplicação, em despeito das normas específicas, nacionais ou internacionais. Nesse sentido, o art. 731 do NCC é expresso: "O transporte exercido em virtude de autorização, permissão ou concessão rege-se pelas normas regulamentares e pelo que fôr estabelecido naqueles atos, sem prejuízo do disposto neste Código." Por seu lado, o art. 732 do NCC determina: "Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais."

Deste modo, é meridianamente claro que a intenção do legislador é que o NCC seja a norma geral sobre contrato de transporte aéreo, ao qual ficam subordinados os dispositivos do CBA e do sistema de Varsóvia.

Este objetivo do legislador é amplamente atingido no que diz respeito aos contratos de transporte aéreo nacional. Com efeito, às determinações específicas do NCC junta-se o determinado pelo art. 2o, par. 1o. da Lei de Introdução ao Código Civil: "A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior". Conseqüentemente, forçoso concluir que o NCC – em virtude de declaração expressa - prevalece sobre o CBA.

Já quanto aos contratos de transporte aéreo internacional, a posição do NCC é questionável. Não se trata de sustentar a tese da supremacia do tratado com relação à lei ordinária interna, tese esta já vencida por decisão do Supremo Tribunal proferida em 1977 no Recurso Extraordinário 80.004 (acórdão publicado na RTJ 83/809). Trata-se apenas de contestar a constitucionalidade do art. 732 acima citado, face ao que dispõe o art. 178 da Constituição da República. Segundo o art. 178 da Constituição da República: "A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade." Há aqui uma manifesta discrepância. Enquanto a Constituição da República manda as leis ordinárias respeitarem o que tiver sido estipulado nos tratados internacionais, o NCC afasta os tratados internacionais, naquilo que forem colidentes com as disposições do próprio NCC. A discrepância é manifesta e, portanto, neste ponto, o NCC não pode ser aplicado, sob pena de inconstitucionalidade. Assim sendo, as normas do NCC sobre contrato de transporte que contrariarem as normas do sistema de Varsóvia não podem ser aplicadas, por inconstitucionalidade.

3. Definição de Contrato de Transporte Aéreo

Apuradas as normas aplicáveis, cabe delimitar o âmbito de aplicação das mesmas, através da definição do que é contrato de transporte. Antes de mais nada, é importante definir o que é um contrato. Contrato é o acordo de duas ou mais vontades com o fim de produzir efeitos jurídicos.

No caso específico do transporte, o art. 730 do novo Código Civil estabelece: "Pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um local para outro, pessoas ou coisas." O sistema de Varsóvia não comporta uma definição de contrato de transporte. Mas a definição do NCC deve ser comparada com a do art. 222 do CBA, segundo o qual: "Pelo contrato de transporte aéreo, obriga-se o empresário ao transporte de passageiro, bagagem, carga, encomenda ou mala postal, por meio de aeronave, mediante pagamento." Há, portanto, uma identidade nas definições de contrato de transporte.

Cabe apenas ressaltar que, além do art. 730 do NCC definir o contrato de transporte como um contrato oneroso (isto é, o transporte é realizado mediante pagamento), o art. 736 do NCC expressamente exclui do âmbito do NCC o transporte gratuito de pessoas, ao estipular que "Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia.". Igual regra não existe no NCC relativamente ao transporte de coisas. Porém, considerando o caráter oneroso do contrato de transporte, deve ser considerado excluído do âmbito do NCC tanto o contrato de transporte gratuito de pessoas como o de coisas. Assim, em caso de transporte gratuito, permanecem em vigor as regras do art. 267 do CBA.

4. Contrato de Transporte de Passageiro

4.1. Deveres do transportador

No contrato de transporte de passageiro, os principais deveres do transportador, segundo se depreende do NCC, são transportar o passageiro incólume e transportar o passageiro no horário e itinerário previstos (arts. 734 e 737 do NCC).

Entre os deveres do transportador, o NCC destaca o dever de não recusar o passageiro, salvo nos casos previstos nos regulamentos ou por motivos de higiene e saúde do interessado (art. 739). Esta norma não traz novidades, eis que era admitido que o transportador podia recusar o embarque de passageiro, desde que tivesse razões objetivas para tanto.

A grande novidade no que diz respeito aos deveres do transportador está no art. 741, segundo o qual: "Interrompendo-se a viagem por qualquer motivo alheio à vontade do transportador, ainda que em conseqüência de evento imprevisível, fica ele obrigado a concluir o transporte contratado em outro veículo da mesma categoria ou com a anuência do passageiro, por modalidade diferente, à sua custa, correndo também por sua conta as despesas de estada e alimentação do usuário, durante a espera de novo transporte.".

A novidade do dispositivo ora em comento não diz respeito à interrupção quando a causa é imputável ao transportador. A novidade está no fato do NCC criar uma obrigação para o transportador, independentemente deste ter responsabilidade pelo ocorrido. Deste modo, em caso de interrupção da viagem, ainda que por evento alheio à vontade do transportador (ex. mau tempo), o transportador deve suportar as despesas de estada e alimentação do passageiro. Esta prática já era seguida por alguns transportadores que voluntariamente arcavam com as despesas de estadia e alimentação. No entanto, agora o NCC tornou esta prática obrigatória, independentemente da responsabilidade do transportador.

Deve-se salientar que o mesmo art. 741 estabelece a obrigatoriedade do transportador concluir o transporte em veículo da mesma categoria ou, com a concordância do passageiro, em veículo diferente. Cabe aqui esclarecer o que deve ser entendido por veículo da mesma categoria. O NCC não quis se referir à mesma categoria de aeronave, mas sim à mesma categoria do meio de transporte. Assim, o transportador não é obrigado a fornecer o mesmo equipamento (Airbus 340 sendo substituído por Airbus 340) mas sim continuar o transporte também pela via aérea. Somente no caso de haver concordância do passageiro, é que será possível a continuação da execução do contrato de transporte, agora por via terrestre ou marítima.

4.2. Deveres do passageiro

Os principais deveres do passageiro são obedecer às normas de transporte e às condições gerais de transporte (art. 738 do NCC). Este artigo estabelece ainda a obrigação, para o passageiro, de abster-se da prática de atos que causem incômodo ou prejuízo aos passageiros, danifiquem a aeronave ou dificultem ou impeçam a execução normal do serviço de transporte. Trata-se da clássica situação do passageiro indisciplinado. Esta matéria já era tratada no art. 232 do CBA, que é reproduzido de forma praticamente textual pelo NCC.

Na verdade, as dificuldades de aplicação das normas aos passageiros indisciplinados não decorrem da ausência de textos legais, mas sim da forma de aplicação desses textos legais. Com efeito, em caso de comportamento indisciplinado a bordo de aeronave, o passageiro é normalmente neutralizado pela tripulação. No entanto, se o passageiro, ao desembarcar, for encaminhado pelo comandante da aeronave à Polícia Federal, a tripulação ficará retida no aeroporto para prestar depoimento e a aeronave pode ficar imobilizada para a realização de perícia. Para evitar esses transtornos, na maior parte das vezes, o comandante opta por simplesmente não comunicar o fato à Polícia Federal.

Uma outra obrigação do passageiro é a de pagar o valor do transporte. Em caso de não pagamento antes do início do transporte ou durante o transporte, uma vez concluído este, o transportador tem o direito, consoante o art. 742 do NCC, de reter a bagagem do passageiro, para garantir-se do pagamento. Cabe salientar que manifestamente este dispositivo não se aplica aos passageiros que adquirirem o bilhete de passagem a crédito. Com efeito, estes passageiros não podem ter a sua bagagem retida até o pagamento da última prestação.

Assim, este dispositivo visa claramente o caso dos passageiros inadimplentes. Ora, este artigo, apesar de bem intencionado, é de muito difícil execução no caso do transporte aéreo. Para a sua execução é necessário, primeiro, que a informação sobre a inadimplência do passageiro seja transmitida ao local de destino. Em segundo lugar, é necessário que o transportador localize e separe, no desembarque, a bagagem do passageiro inadimplente. Em terceiro lugar, o transportador deverá entregar ao passageiro um documento mediante o qual declara que retém a bagagem, dela ficando depositário. Ocorre que do fato do transportador permanecer depositário da bagagem decorrem para o transportador uma série de obrigações relativas à guarda e conservação da bagagem que o transportador certamente não está disposto a assumir. Deste modo, no estágio atual do transporte aéreo, é pouco provável que a hipótese do art. 742 venha a ser exercida pelo transportador.

4.3. Reembolso do bilhete de passagem

Atualmente, o reembolso do bilhete de passagem é matéria tratada no art. 229 do CBA e nas normas aeronáuticas tarifárias. O sistema atual varia entre o reembolso integral do valor de passagem à inexistência de direito a reembolso. Com efeito, tudo depende da escolha do passageiro ou do adquirente do bilhete de passagem. Normalmente, quanto maior a liberdade do passageiro na escolha e faculdade de modificação das datas e vôos e possibilidades de reembolso, maior será o valor a pagar pelo passageiro. Quanto menor a liberdade de escolha e a faculdade de modificação das datas e vôos, assim como as possibilidades de reembolso, menor será o valor a pagar pelo passageiro.

Aliás, em interessante acórdão, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já reconheceu a possibilidade do passageiro não ter direito a reembolso algum (Almeida, 2000). Tratava-se de bilhete de passagem emitido de acordo com tarifa que não permitia nem a modificação da data e vôo nem o reembolso em caso de não comparecimento do passageiro para embarque. O passageiro, alegando motivo de doença, não se apresentou para embarque e solicitou o reembolso do bilhete de passagem. O tribunal entendeu que o contrato de transporte aéreo em causa era um contrato de risco e que o passageiro havia admitido correr o risco de não poder embarcar, ainda que por motivo de doença. Deste modo, o tribunal declarou que o passageiro não tinha direito a reembolso dos valores pagos.

Sobre esta matéria, o NCC trouxe uma grande novidade com relação ao regime anterior. O art. 740 do NCC atribui ao passageiro o direito de rescindir o contrato de transporte aéreo antes ou depois de iniciada a viagem (inclusive passageiro "no-show") e de obter o reembolso do valor do bilhete de passagem, desde que outra pessoa tenha sido transportada em seu lugar.

A aplicação deste artigo gera de imediato duas ponderações. A primeira é a do ônus da prova. A quem caberá provar que outra pessoa foi transportada no lugar do passageiro original? Nos termos do art. 333 do Código de Processo Civil Brasileiro, cabe a cada uma das partes provar os fatos que fundam o seu direito. Assim, caberá ao passageiro, que demanda o reembolso do valor pago, ônus de provar que o lugar naquela aeronave foi utilizado por outra pessoa. No entanto, é evidente que o passageiro não poderá realizar essa prova, pois os registros encontram-se em poder do transportador. Conseqüentemente, o ônus da prova acabará por recair sobre o transportador.

A segunda ponderação diz respeito à dificuldade de prova. Na maior parte das vezes, os vôos são realizados com disponibilidade de assentos na aeronave. Como provar que o passageiro que rescindiu o contrato foi substituído por um outro passageiro e que o lugar original não ficou vago? Na verdade, esta possibilidade de reembolso somente existirá nos casos em que o vôo esteja lotado, o passageiro desista e o vôo seja realizado com a aeronave lotada.

Mas a novidade do art. 740 do NCC diz também respeito ao valor a ser reembolsado. Atualmente, o valor a ser reembolsado varia bastante, consoante a tarifa escolhida pelo passageiro. O parágrafo 5o do art. 740 do NCC estabelece o valor mínimo para reembolso. De acordo com este dispositivo: "[...] o transportador terá direito de reter até cinco por cento da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória." Conseqüentemente, o valor reembolsável nunca poderá ser inferior a 95% da tarifa paga pelo percurso não voado. Note-se que o caráter imperativo do dispositivo ora em causa afasta a possibilidade de cobrança de penalidade compensatória maior e a possibilidade de ajuste contratual fixando valor diferente. Acresce que não tendo a matéria do reembolso sido objeto de acordos internacionais, não se aplica a ela a exceção de inconstitucionalidade no tocante à relação entre o art. 178 da Constituição da República e o NCC. Assim, os limites do NCC sobre o reembolso do valor pago aplicam-se ao contrato de transporte aéreo tanto nacional quanto ao internacional.

5. Contrato de Transporte de Carga

5.1. Deveres do transportador

Nos termos do NCC, os principais deveres do transportador no contrato de transporte de carga são a emissão do conhecimento de transporte (art. 744) e a recusa de carga cujo transporte ou comercialização não sejam permitidos ou que esteja desacompanhada dos documentos exigidos por lei ou regulamentos (art. 747). Este último dever já constava no art. 302, inciso III, alínea h) do CBA.

A estes deveres acrescem, obviamente, os de transportar a carga incólume e de fazer com que a mesma chegue ao seu destino no horário previsto.

Além do acima exposto, o art. 753 cria uma nova obrigação para o transportador. Com efeito, o transportador tem ainda o dever de, em caso de impossibilidade ou interrupção do transporte, avisar imediatamente o expedidor, solicitando-lhe instruções. Nessa situação, o transportador deverá promover a boa guarda da carga, respondendo pelo perecimento ou deterioração da mesma, salvo se o perecimento ou deterioração decorrer de força maior. Note-se, portanto, que independentemente da causa da impossibilidade ou interrupção do transporte aéreo (que inclusive pode ser relacionada a evento totalmente estranho ao transportador), o transportador é responsável pela carga.

No entanto, se a impossibilidade ou a interrupção não forem imputáveis ao transportador e perdurando os mesmos sem haver manifestação do expedidor, o transportador poderá depositar a mercadoria em juízo ou vendê-la e depositar o valor em juízo. Note-se que, em caso de depósito judicial, o risco do depósito transfere-se ao depositário judicial, ficando o transportador exonerado de responsabilidade. No tocante à venda, é muito pouco provável que o transportador a realize, para evitar uma maior exposição perante o proprietário da carga. Com efeito, o proprietário da carga poderia demandar o transportador alegando venda por preço inferior ao valor da mercadoria, ou outro motivo, de forma a imputar responsabilidade ao transportador.

Caso a impossibilidade ou a interrupção sejam imputáveis ao transportador, este poderá depositar a carga em juízo, correndo os riscos desse depósito e somente poderá vendê-la, se for perecível. Nesta hipótese, mesmo em caso de depósito judicial, o transportador fica responsável pela mercadoria. Assim, o mais provável é que o transportador continue a guardar a mercadoria consigo, ao invés de transferi-la para um depósito judicial. E, do mesmo modo que examinado no parágrafo anterior, é pouco provável que o transportador esteja disposto a recorrer à venda da mercadoria perecível.

5.2. Deveres do expedidor e do consignatário

O principal dever do expedidor é caracterizar a carga, definindo a sua natureza, valor, peso e quantidade e fornecendo as demais informações distintivas (art. 743). Além do que, o expedidor deverá entregar ao transportador, quando solicitado, relação discriminada da carga (art. 744). A finalidade destes dispositivos é, entre outros, permitir ao transportador conhecer o conteúdo da carga transportada e fixar os limites da lide em caso de conflito relativamente à carga.

Note-se que, em caso de informação inexata ou falsa descrição da relação do conteúdo da carga transportada pelo expedidor e vindo o transportador a sofrer prejuízo, o expedidor deverá indenizá-lo. Se não o fizer extrajudicialmente, o transportador poderá ajuizar ação em face do expedidor, no prazo de 120 dias a contar "daquele ato", conforme expressão do art. 745. O "ato" que marca o início do lapso temporal para o ajuizamento da ação é manifestamente o ato de entrega da relação do conteúdo da carga.

Deve-se salientar que, apesar de não estar expressamente referido no NCC, é dever do expedidor (ou do consignatário), pagar pelo transporte. Este dever decorre do caráter oneroso do contrato de transporte.

Por seu lado, é dever do consignatário ao receber as mercadorias conferi-las (art. 754).

6. Regime de Responsabilidade

6.1. Natureza da responsabilidade

O sistema de Varsóvia criou a responsabilidade por culpa presumida do transportador em caso de danos decorrentes da execução do contrato de transporte aéreo (Escalada, 1996). Ou seja, uma vez provado o evento, o dano e o nexo causal entre os dois, o transportador é responsável, pois a sua culpa é presumida. No entanto, o transportador pode exonerar-se de responsabilidade se provar que não agiu com dolo ou culpa.

O CBA adotou um sistema de responsabilidade objetiva (Almeida, 2000). Ou seja, o transportador é responsável desde que provados o evento, o dano e o nexo causal entre os dois. Mesmo que o transportador prove que não agiu com dolo ou culpa, a sua responsabilidade persiste.

O Código de Defesa do Consumidor (de ora em diante, abreviadamente designado CDC), quando aplicado ao contrato de transporte aéreo, também implica na responsabilidade objetiva do transportador (Almeida, 2000).

O NCC, na parte relativa ao contrato de transporte, não é expresso a respeito. No entanto, na parte relativa à responsabilidade civil em geral, o NCC estabelece a responsabilidade objetiva do transportador. Por um lado, o art. 927, parágrafo único ordena: "Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."

O art. 931 reforça o entendimento de que a responsabilidade do transportador aéreo é objetiva ao determinar: "Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.". Certo é que o artigo refere-se a produtos, mas é claro que se estende também aos serviços, inclusive aos serviços de transporte aéreo.

6.2. Excludentes de responsabilidade

A análise comparada dos diferentes textos legais coloca em relevo as semelhanças e diferenças entre cada regime:

Tabela 1

Excludentes de responsabilidade

Sistema Varsóvia

CBA

CDC

NCC

Caso fortuito ou força maior

Caso fortuito ou força maior

Caso fortuito ou força maior

Caso fortuito ou força maior (art. 734 e 737)

Sem previsão*

Fato do príncipe

Sem previsão

Sem previsão

Fato da vítima

Fato da vítima

Fato da vítima

Fato da vítima  (art. 738)

Sem previsão

Sem previsão

Fato de terceiro

Fato de terceiro é expressamente afastado como excludente de responsabilidade (art. 735)

* salvo no caso de transporte de carga

O caso fortuito ou de força maior define-se como o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir (art. 393 do NCC). O fato do príncipe é o ato, inclusive a ordem, dada pela autoridade pública, que se sobrepõe ao disposto no contrato, obrigando uma ou ambas as partes a terem um comportamento diferente do acordado. O fato da vítima é o ato ou omissão da vítima que causa o dano. Finalmente, o fato de terceiro é o ato ou a omissão de terceiro (que não o transportador e o passageiro) e que é a causa do dano (Cavalcanti, 2002).

Como se depreende do quadro acima, há uma diferença principal entre o regime do NCC e o estabelecido nas normas aeronáuticas especiais. Trata-se da ausência de referência expressa ao fato do príncipe como excludente de responsabilidade. Esta excludente é prevista no art. 256, parágrafo primeiro, alínea b) do CBA. Contudo, apesar de não serem conceitos idênticos, é possível sustentar que o fato do príncipe está abrangido pela noção de caso fortuito ou força maior.

No caso de transporte de carga, as excludentes de responsabilidade não estão expressamente previstas no NCC. No entanto, da leitura dos diferentes dispositivos, é possível concluir que a responsabilidade do transportador será afastada em caso de força maior. Nesse sentido, basta ler o caput do art. 753 para encontrar um exemplo. Com efeito, segundo este dispositivo, o transportador não responde em caso de perecimento ou deterioração da mercadoria, quando decorrentes de força maior, verificada no período de impossibilidade ou interrupção do transporte aéreo.

De igual modo, o NCC parece afastar a responsabilidade do transportador, em caso de fato do expedidor. Por um lado (art. 745), o transportador tem direito a indenização (o que pressupõe que o transportador não terá a obrigação de pagar uma indenização) pelos prejuízos que sofrer em decorrência de informação inexata ou falsa descrição da carga no documento entregue ao transportador, relacionando o conteúdo da carga.

Por outro lado (art. 746), o transportador pode recusar a carga inadequadamente embalada, ou a carga que possa pôr em risco a saúde das pessoas ou danificar a
aeronave e outros bens. Este dispositivo pressupõe que, caso haja danos decorrentes da inadequação da embalagem ou do risco à saúde, ou danos à aeronave ou a outros bens, esses danos serão imputáveis ao terceiro e não ao transportador.

6.3. Limites de responsabilidade

As regras do CBA e do sistema de Varsóvia sobre os limites de responsabilidade são de uma grande simplicidade. Se não houver prova de culpa ou dolo do transportador, a responsabilidade deste é limitada a um determinado montante. Se houver prova de culpa ou dolo do transportador, a responsabilidade deste é ilimitada.

De acordo com o CDC, a responsabilidade do transporte é sempre ilimitada, independentemente de prova de culpa ou dolo.

O NCC, na parte relativa ao contrato de transporte, não contém regra sobre a limitação de responsabilidade. O NCC, nesta parte, limita-se a vedar a possibilidade de se criar, no contrato de transporte, uma cláusula excludente da responsabilidade (art. 734). No entanto, a cláusula de limitação de responsabilidade não se confunde com a cláusula de exclusão de responsabilidade. A cláusula limitativa reconhece a possibilidade de responsabilidade do transportador, apenas estabelecendo um teto para a indenização. A cláusula excludente não admite qualquer indenização.

No entanto, nos dispositivos relativos à responsabilidade civil em geral, o NCC traz diversos artigos importantes para o contrato de transporte aéreo. Em primeiro lugar, o art. 944, segundo o qual a indenização mede-se pela extensão do dano. Desta forma, o NCC esposa o princípio da indenização integral. Ou seja, a indenização deverá corresponder à totalidade do dano sofrido.

No entanto, o parágrafo único do art. 944 estabelece que: "Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização." Assim, em caso de atraso de vôo que leve o passageiro a perder importantíssima reunião ou consulta médica de dificílima marcação, há uma evidente desproporção entre a gravidade da culpa do transportador (mera negligência ou imperícia) e o dano sofrido pelo passageiro. Do mesmo modo, na hipótese de extravio de bagagem que provoque uma enorme lesão (extravio de exame médico indispensável, perda de exemplar único de obra de arte, etc.), há uma evidente desproporção entre a gravidade da culpa do transportador (mera negligência) e o dano sofrido pelo passageiro.

A propósito da limitação de responsabilidade, é importante salientar que, de acordo com o parágrafo único do art. 734: "É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização." Deste modo, pode o transportador, se assim o desejar, limitar a sua responsabilidade mediante a exigência de que o passageiro declare o valor da sua bagagem. Deste modo, em caso de extravio ou avaria, a responsabilidade do transportador limita-se apenas ao valor declarado pelo passageiro.

Este dispositivo é, na verdade, uma inversão do que estava disposto no art. 22, nr. 2, alínea a) da Convenção de Varsóvia e nos arts. 260 e 262 do CBA. Segundo o sistema de Varsóvia e o CBA, o passageiro tem a possibilidade de realizar uma declaração especial de valor, mediante o pagamento de uma taxa suplementar. Esta taxa justifica-se pelo agravamento da responsabilidade do transportador. Com efeito, tendo sido realizada a declaração de valor, em caso de extravio ou avaria na bagagem, a responsabilidade do transportador corresponderá ao valor declarado, não mais se aplicando os limites de responsabilidade do transportador, mesmo sem culpa ou dolo deste (Pacheco, 2001).

Nos termos do NCC, quem deve tomar a iniciativa é o transportador e não há margem para o pagamento de taxa adicional, em virtude da declaração de valor. Na verdade, a declaração de valor da bagagem passa a ser de interesse do transportador, pois permite a este limitar a sua responsabilidade. Deste modo, sempre que o transportador desejar limitar a sua responsabilidade, deverá solicitar aos passageiros, por ocasião do check-in, que declarem por escrito o valor da sua bagagem.

Ainda no tocante aos limites de responsabilidade, é importantíssimo notar uma inovação do NCC. Segundo o art. 750: "A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; [...]". Este dispositivo significa que a responsabilidade do transportador é limitada ao valor declarado pelo expedidor e que consta no conhecimento de transporte.

Desde logo importa salientar que, segundo o artigo ora em comento, fica excluída a indenização por lucros cessantes. Assim, a indenização a ser paga pelo transportador levará em conta apenas o valor da mercadoria no momento do embarque e não o potencial valor de revenda da mercadoria ou o valor da mercadoria acrescido do valor de eventual multa que tenha sido paga pelo expedidor ou pelo consignatário por não terem entregue a terceiros a mercadoria em boas condições ou no prazo correto.

Por outro lado, ocorre que, na esmagadora maioria dos casos, o expedidor não atribui valor à mercadoria e o conhecimento de transporte é emitido com a menção "NVD", o que significa "no value declared". Esta prática decorre do fato da carga estar normalmente segurada, pelo seu verdadeiro valor, junto a uma companhia de seguros e ainda do fato de que a indicação de um valor poderá significar, se esse valor for relevante, o pagamento de uma taxa adicional. Ora, a ausência de valor declarado impede o transportador de se prevalecer da limitação de responsabilidade. Deste modo, é do interesse do transportador que o conhecimento de transporte contenha a declaração do real valor da mercadoria transportada.

6.4. Prazos para exercício do direito à indenização

O NCC estabelece prazos para apresentação de protesto em caso de perda ou avaria da carga. Conforme demonstra o quadro a seguir, esses prazos são substancialmente diferentes dos prazos previstos no CBA e no sistema de Varsóvia:

Tabela 2

Prazos de protesto aeronáutico

  Sistema Varsóvia CBA NCC*
Perda parcial ou avaria não perceptível à primeira vista 14 dias para avaria e 21 para atraso 7 dias para avaria e 15 dias para atraso 10 dias após a entrega
Perda total ou avaria perceptível à primeira vista 14 dias para avaria e 21 para atraso 7 dias para avaria e 15 dias para atraso Sem previsão

* O NCC não estabelece prazos para a apresentação de protesto em caso de atraso de vôo ou extravio de bagagem.

 

Do exposto na Tabela 2, resulta claro que o NCC nada diz a respeito do prazo, nos casos de perda total ou avaria perceptível à primeira vista. Nesta situação, duas soluções são possíveis. A primeira é a obrigação de apresentação de protesto imediato. Assim, caso a carga não chegue no vôo inicialmente previsto, o consignatário deve protestar imediatamente, ou seja, no mesmo dia em que a carga deveria ter chegado. Caso a carga venha posteriormente a ser localizada e entregue, o protesto fica sem efeito.

A segunda solução é subordinar o protesto, nestes casos, aos prazos do regime do sistema de Varsóvia e do regime do CBA. Esta solução parece mais conforme aos imperativos da segurança jurídica.

De qualquer modo, é importante salientar que o NCC define o prazo para protesto como prazo decadencial. Deste modo, fica reforçada a idéia de que o prazo para protesto é de natureza decadencial, contribuindo assim para aclarar as dúvidas que havia surgido, em virtude da redação do sistema de Varsóvia (Escalada, 1996).

Conclusão

Do exposto acima, resulta claro que as novidades introduzidas pelo NCC são importantes. Nomeadamente, é de destacar que o NCC tem um conteúdo maior de proteção ao usuário do serviço de transporte.

Contudo, o NCC vem criar algumas dificuldades para operar as novas regras. Basta lembrar as regras relativas ao reembolso da passagem e à retenção da bagagem do passageiro inadimplente.

De qualquer sorte, o que resulta do presente estudo é a necessidade de se promover, urgentemente, uma revisão dos contratos de transporte aéreo atualmente utilizados. Essa revisão dos contratos deve ser acompanhada de uma revisão da postura, perante o próprio usuário do serviço de transporte aéreo, que deve ser muito mais cautelosa.

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* Doutor em Direito pela Universidade de Paris II, Sócio de Siqueira Castro – Advogados, Professor da Uni-Rio - Universidade do Rio de Janeiro               [Volta]

Referências Bibliográficas:

Almeida, J. G. A. de. (2000) Jurisprudência brasileira sobre transporte aéreo. Renovar, Rio de Janeiro

Cavalcanti, A. U. (2002) Responsabilidade civil do transportador aéreo. Renovar, Rio de Janeiro

Escalada. F. N. V. (1996) Manual de derecho aeronautico (2a.ed.). Zavalia, Buenos Aires

Pacheco, J. da S. (2001) Comentários ao Código Brasileiro de Aeronáutica. Forense, Rio de Janeiro

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