Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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 A ÉTICA E AS ATIVIDADES ESPACIAIS *

 

José Monserrat Filho **

"Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como ela nos foi dada - um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo."
Hannah Arend 1

 

Desde o início da Era Espacial, inaugurada em 4 de outubro de 1957 com o lançamento do primeiro satélite artificial da Terra, o Sputnik I, pela ex-União Soviética, habituamo-nos a dizer que a conquista do espaço é um triunfo da espécie humana, da humanidade, de todos os habitantes do nosso planeta.

O ex-ministro da Ciência e Tecnologia da França, Hubert Curien, conhecido por suas posições humanistas, considera que, no século XX, quatro grandes façanhas assinalam a nossa trajetória espacial: o lançamento do Sputnik I em 1957, o vôo de Iuri Gagarin em 1961, a assinatura do Tratado do Espaço em 1967 e a chegada do homem à Lua em 1969.

Hubert Curien assinala, igualmente, que "esta soberba aventura foi marcada não apenas por feroz competição no clima da Guerra Fria, mas também pelo profundo desejo de unidade global, que as Nações Unidas souberam aproveitar com firmeza e eficiência, adotando, em tempo recorde, a vontade de fazer do acesso ao espaço uma nova via pacífica de desenvolvimento para toda a humanidade". 2

O admirado homem público francês chama a atenção para os avanços trazidos pelas atividades espaciais para as relações humanas: Os satélites de telecomunicações deram nova dimensão aos contatos pessoais e à distribuição de massa da informação. Os satélites de observação da terra possibilitam melhor gestão dos recursos naturais da Terra e a coleta constante, em todas as amplitudes de ondas, de dados tanto de quantidade como de qualidade inestimável. Os satélites e sondas científicas nos permitem dar saltos no conhecimento não só do nosso sistema solar, como também do Universo mais profundo. Ainda estamos muito longe de dominar todos os mistérios do Universo, porém, o que sabemos hoje sobre sua evolução e seu funcionamento excede em muitas vezes o que sabíamos há apenas algumas décadas.

As atividades espaciais tornaram-se essenciais para a vida em nosso planeta, embora bilhões de pessoas em todos os continentes ainda não se dêem conta de sua relevância em seu dia-a-dia.

Por outro lado, os recursos espaciais converteram-se em fatores de maior eficácia nas operações militares, no comando das tropas, na vigilância sobre o inimigo, no controle total dos campos de batalha, na precisão dos ataques e dos tiros. E novas tecnologias estão sendo criadas, visando inclusive a instalação de armas no espaço, o que virá a transformá-lo em teatro de guerra, algo inédito até hoje, com efeitos inevitáveis sobre as populações da Terra.

É neste contexto que cabe examinar as implicações éticas das atividades espaciais. Filhas, em grande parte, da Guerra Fria, elas foram realizadas nas primeiras décadas da Era Espacial como arma política e estratégica na luta pelo poder mundial. Hoje, quando já não existe mais o confronto de grandes potências rivais, assistimos a intenso processo de comercialização e privatização das atividades espaciais, o que introduz no espaço outra forma dura de competição, em que podem imperar interesses não menos estreitos e irracionais.

A despeito da evidente relevância da matéria, não se conhecem muitos estudos sobre a ética neste novíssimo campo de ações da espécie humana. Os eventos mais recentes de que temos notícia a respeito são apenas dois:

1 A Conferência Científica Internacional sobre "O Uso do Espaço e a Ética - Critérios para Avaliar Futuros Projetos Espaciais" 3, promovida na Universidade Tecnológica de Darmstadt, Alemanha, de 3 a 5 de março de 1999; e

2) O Seminário "A Ética do Espaço Exterior" 4, organizado pela Comissão Mundial sobre Ética do Conhecimento Científico e da Tecnologia (Comest, sigla do nome em francês), órgão da Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), em colaboração com a Agência Espacial Européia, em Paris, França, em setembro de 1999.

No encontro na Alemanha, um dos conferencistas propôs, para avaliar futuros projetos espaciais, oito critérios concretos, que também podem ser aplicados a outras áreas tecnológicas:

1) Excluir a possibilidade de catástrofes;

2) Evitar uso militar, conflitos violentos e proliferação de armas;

3) Minimizar os efeitos adversos sobre a saúde e meio ambiente;

4) Assegurar qualidade técnico-científica, funcionalidade e confiabilidade;

5) Resolver problemas e satisfazer necessidades de maneira sustentável e oportuna;

6) Procurar alternativas com melhor relação custo-benefício;

7) Garantir compatibilidade social e fortalecer a cooperação;

8) Convencer seus destinatários dos benefícios do projeto, em debate público.

Um projeto espacial capaz de atender a todos estes requisitos seria eticamente correto e sustentável.

As atividades espaciais tem a vantagem de oferecer uma visão global do Planeta e da humanidade. Lá do espaço exterior as divisões e fronteiras nacionais não se vêem. E as divisões geográficas perdem o peso e o impacto, são reduzidas e minimizadas. A Terra aparece como de fato é, um corpo inteiro, contínuo, funcionando como um sistema único, integrado, coeso, objetiva e necessariamente solidário.

A Terra é uma espaçonave sui generis, inconfundível, que transporta uma riqueza aparentemente única e inédita no Universo: a vida humana, a humanidade.

Nossa espaçonave, explorada durante séculos de forma desordenada, desenfreada e destrutiva, já apresenta graves sinais de colapso em aspectos essenciais à existência de seus habitantes.

Daí que as atividades espaciais, que estão inexoravelmente determinadas a lidar com a totalidade do nosso planeta, não podem ter princípio ético mais relevante do que o de servir apenas e tão somente à preservação e ao desenvolvimento da humanidade e de seu habitat original.

Não é à toa que, nos anos 60, em plena Guerra Fria, a comunidade mundial logrou lavrar como Artigo 1º do Tratado do Espaço de 1967, considerado o código internacional das atividades espaciais, a chamada "Cláusula do Bem-Comum", assim expressa:

"A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade."

Mas este princípio inquestionavelmente positivo e generoso foi concebido e sacramentado quando apenas dois países competiam com ferocidade na corrida espacial, tentando chegar à Lua - não para conhecê-la melhor cientificamente, mas para demonstrar força e poder e conquistar prestígio da audiência mundial.

A humanidade, apesar da grandeza de suas descobertas e realizações, ainda não conseguiu superar a fase do confronto entre suas tendências contraditórias: a construtiva e a destrutiva.

Após incontáveis tragédias e sofrimentos, já atingimos um estágio de ampla e crescente consciência da necessidade de buscar e cultivar sistemas de convivência social mais construtivos, mais racionais, mais criativos, mais benfazejos e mais humanos. Mas ainda continuamos subjugados aos velhos sistemas, renovados, é verdade, pelas novíssimas tecnologias, mas que, no fundamental permanecem deletérios, excludentes, egoistas, mistificadores, esbanjadores, corruptos e corruptores, mercenários, açambarcadores, ladrões, corsários, violentos, repressores, militaristas, não raro genocidas, e, enfim, irracionais, desumanos.

Já estamos cansados de saber que as guerras só trazem desgraças. Já escrevemos milhões de páginas dizendo que as guerras são imorais e indignas da sensibilidade e da inteligência humanas. Já colocamos a guerra fora da lei, como delito internacional, como crime contra a humanidade. A Carta das Nações Unidas de 1945 é o primeiro documento jurídico da história humana com validade universal, posto que subscrito por todas as nações, que veta a guerra como meio de solução de conflitos internacionais, sejam eles quais forem. O nosso lado sadio logrou esta conquista memorável. Mas o nosso lado desumano e ensandecido ainda hoje aposta nos lucros da indústria armamentista, beneficiada com orçamentos gigantescos, que poderiam resolver problemas sociais de bilhões de seres humanos.

Essa é uma luta titânica, cada vez mais decisiva, entre as tendências da civilização e da cultura humana e as investidas pesadas da irracionalidade. Ela pode ser vista diariamente, a cada momento, nos mais diferentes lugares, embora tenha seus centros de maior confronto.

Não é um embate fácil, nem simples. Qualquer reducionismo aqui será um equívoco e qualquer maniqueismo, um desastre. Difícil e complicado é encontrar os melhores caminhos e as soluções mais apropriadas. Nós mesmos, até em nossas mais pias intenções, ora estamos de um lado, ora de outro. E, muitas vezes, nos dividimos internamente e acabamos causando males e penas indizíveis.

As atividades espaciais, entretanto, nos abrem um panorama global macro para avaliar todas estas tendências.

Lá no espaço, nós nos colocamos, querendo ou não, no limite de nossa condição humana, confrontados com o Universo, o que sigifica refletir sobre nosso passado, nosso presente e nosso futuro.

Por isso, lá no espaço, pelo menos até agora, parece bem mais lógico perceber, numa escala incomparável, o quanto é justo e imperioso salvaguardar a dignidade humana e, dentro dela, realçar a diversidade das sociedades humanas e dos seres humanos.

No horizonte sem fronteiras do espaço, também, podem se tornar mais razoáveis as visões proativas e construtivas, em lugar dos enfoques limitados e tacanhos, tendo em vista não só permitir como sobretudo estimular o avanço mais harmonioso do desenvolvimento cultural, científico e tecnológico de todos os povos e de todas as pessoas. Do espaço, a Terra é uma só e não o planeta dividido que temos aqui em baixo. E os riscos e os perigos no espaço são ainda maiores do que na Terra.

A educação e a cultura espacial têm um imenso e inestimável potencial de humanidade e compreensão humana. Qualquer pessoa no espaço pode sentir-se um embaixador da
humanidade.

Para isso, no entanto, temos que levar lá para cima o melhor da nossa espécie. E isso, embora seja perfeitamente natural, desejável e possível, ainda não está plenamente garantido.

O espaço cósmico, com toda sua rica e instigante reflexão ética, pode nos ajudar em muito, mas a batalha da condição humana terá que ser ganha, antes e acima de tudo, aqui na Terra.

* Trabalho escrito para ser apresentado no 1º Congresso Internacional de Divulgação Científica – Ética e Divulgação Científica: Os desafios no Novo Século, na USP, em São Paulo, de 26 a 29 de agosto de 2002.  [Volta]

** Jornalista e jurista, editor do Jornal da Ciência e do JC e-mail, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), membro da diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial, membro da Associação de Direito Internacional (International Law Association) e membro correspondente da Academia Internacional de Astronáutica. [Volta]

1 ARENDT, Hannah, A Condição Humana, 10ª edição, Rio: Forense Universitária, 2001, p. 10. [Volta]

2 Outlook on Space Law over the Next 30 Years – Essays published for the 30th Anniversary ot the Outer Space Treaty, Editor-in-Chief: Gabriel Lafferranderie, The Netherlands, 1997, p. XV. [Volta]

3 Space Use and Ethcs, Wolfgang Bender, Regina Hagen, Martin Kalinowski, Jürgen Scheffran (editors), Volume I: Papers, Mürster, Germany, Agenda Verlag, 2001. [Volta]

4 COMEST Sub-Commission on "The Ethics of Outer Space", Report, Unesco Headquarters, 10-11 July 2000. [Volta]

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