Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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ESTRATÉGIA CONTRA A PARALISIA ESPACIAL

José Monserrat Filho *

 

Segue bloqueada na ONU qualquer idéia de atualizar e renovar o Direito Espacial. Isso não é nada bom. As atividades espaciais são hoje indispensáveis à vida normal e ao desenvolvimento de todos os países.

Telefonia, rádio, televisão, transmissão de dados, internet, monitoramento dos recursos naturais, meteorologia, cartografia, oceanografia, alerta e prevenção de desastres naturais, verificação do cumprimento de tratados, espionagem, comando e precisão de tiro – tudo isso hoje se faz por meio de satélites.

Esse trânsito orbital cada vez mais intenso precisa ser devidamente regulamentado para que não cause dano às pessoas, funcione com segurança e eficiência, seja aperfeiçoado de modo contínuo e sirva apenas aos objetivos mais saudáveis.

A legislação internacional criada nos 46 anos da Era Espacial – desde o lançamento, em 4 de outubro de 1957, do Sputnik I, o primeiro objeto espacial posto em órbita pelo ser humano – foi uma conquista cultural, política e jurídica tão importante quanto os êxitos científicos e tecnológicos alcançados nesta novíssima etapa da história do mundo.

Ela reza que a pesquisa e o uso do espaço devem ser realizados só para o bem e no interesse de todos os países, ricos e pobres, avançados e atrasados; que o espaço está aberto a todos eles, sem qualquer discriminação e em condições de igualdade; e que o espaço não pode ser propriedade de nenhum país nem de ninguém.

Embora centrais, tais normas, porém, já não são suficientes. Há que ordenar atividades espaciais específicas, como por exemplo as de sensoriamento remoto, a observação da Terra.

O sensoriamento remoto por satélite é hoje precariamente regulamentado pelos princípios adotados em 1986 pela Assembléia Geral da ONU, cujas resoluções não são obrigatórias como as convenções e os tratados.

Esses princípios, discutidos durante mais de 15 anos, fixaram duas liberdades básicas: a de sensoriar o mundo todo – e, portanto, todos os países – a qualquer hora e sem necessidade de autorização prévia; e a de dar acesso (vender) a qualquer interessado às imagens obtidas.

O país sensoriado tem direito de acesso aos dados sobre seu território, "assim que forem produzidos, em base não discriminatória e a um custo razoável". E o sensoriamento remoto não poderá ser realizado "de modo a prejudicar os direitos e interesses dos países sensoriados".

Quando tais regras foram aprovadas, a comercialização das imagens de sensoriamento remoto mal começara. Hoje ela representa o segundo grande negócio espacial, depois das telecomunicações.

Nos anos 80, as imagens de alta definição (de 1 metro e até menos) eram de uso exclusivo das forças armadas. Hoje são livremente vendidas.

Na verdade, houve avanços tecnológicos notáveis, com os quais os princípios de 1986 são absolutamente impotentes para lidar.

Daí a crescente necessidade de nova legislação internacional sobre sensoriamento remoto, a ser preparada a partir dos princípios de 1986.

O assunto interessa sobretudo aos países em desenvolvimento, que vêm nas imagens de satélites seu maior benefício espacial.

O Brasil, com reconhecida competência tecnológica nesta área e importante programa de cooperação com a China na construção, lançamento e manejo de satélites de recursos naturais (CBERS), resolveu propor o debate de uma convenção sobre sensoriamento remoto no Subcomitê Jurídico do Comitê da ONU para o Uso Pacífico do Espaço (COPUOS), que elaborou os cinco tratados vigentes e as cinco declarações da Assembléia Geral sobre problemas espaciais e é o fórum ideal para a renovação desses textos.

A delegação brasileira já tentou duas vezes introduzir a questão na agenda de trabalho do subcomitê: na reunião de 2002 e na deste ano, realizada de 24 de março a 4 de abril, em Viena, Áustria. Mas sem êxito.

Este ano, o Brasil distribuiu um documento de trabalho (working paper), preparado pela Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), procurando demonstrar a necessidade objetiva de uma convenção sobre sensoriamento remoto, em vista, sobretudo, do acelerado processo de privatização e da comercialização desta atividade, bem como do vertiginoso avanço tecnológico ocorrido no setor desde 1986.

A proposta brasileira foi subscrita pela Argentina, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, Grécia, México e Peru, e contou com a simpatia aberta da Rússia e da África do Sul.

No entanto, EUA, Japão, Canadá e Bélgica vetaram a idéia, alegando que os princípios de 1986 "estão funcionando bem" e que não há razões suficientes para voltar a discuti-los.

A grande vitória deste ano foi que o debate em torno da proposta brasileira durou nada menos de três horas e deixou evidente o muro que separa países desenvolvidos e países em desenvolvimento nesta matéria.

"Funcionar bem", para eles, significa não criar embaraços para as empresas privadas de alguns países desenvolvidos, que têm o apoio de seus governos e dominam cada vez mais a produção e a venda de imagens de satélites.

Na visão desses países, quanto menos regulamentação no setor, melhor, pois assim o sensoriamento remoto fica sujeito, pura e simplesmente, ao jogo e às regras do mercado.

Ocorre que, antes de ser mercadorias, os dados de satélite são bens de um serviço público essencial em muitos casos. Logo, precisam atender na devida conta às necessidades e interesses públicos de todos os países.

Aqui também, não há que confiar ao mercado o comando soberano da política e do direito. Pelo contrário, à política e ao direito cabe governar, prudente e planejadamente, o mercado, sem ignorar suas regras e sua dinâmica, mas impedindo que imponha suas tendências perversas e destrutivas já por demais conhecidas.

Não é fácil dar prioridade ao interesse público diante do privado e aproveitar deste apenas o pendor criativo e construtivo.

Mas, hoje mais do que nunca, isso parece imperioso para abrir caminho a um mundo menos desigual e deletério e mais eqüitativo e racional.

Eis o desafio que se projeta nos embates globais decisivos deste início confuso e perigoso do século XXI, entre os quais se alinham as lutas pelo correto ordenamento das atividades espaciais, a começar pelas mais necessárias.

O empenho brasileiro por uma convenção sobre sensoriamento remoto – que deve voltar com ainda maior insistência e consistência em 2004 – é exemplo de combate difícil e não raro desanimador, mas com perspectivas históricas incomparáveis.

Não é consolo. É a convicção de uma causa que busca unir os interesses de hoje com os de amanhã e os interesses de um país com os de todos os países.

Não será esse o grande milagre por qual tanto esperamos?

 * Editor do Jornal da Ciência, da Sociedade Brasileira pra o Progresso da Ciência (SBPC), vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), membro da diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial, membro correspondente da Academia Internacional de Astronáutica e da Internacional Law Association (ILA). Integrou como consultor, representante da SBDA, a delegação brasileira que participou da 42ª Sessão do Subcomitê Jurídico do Comitê para o Uso Pacífico do Espaço Exterior, em Viena, de 24 de março a 4 de abril, chefiada pelo embaixador Roberto Abdenur, que teve como membros Silas Leite da Silva, 1º secretário da Embaixada do Brasil em Viena, e Álvaro Fabrício dos Santos, chefe do Departamento Jurídico do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). [Volta]

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