Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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A PARCERIA ENTRE BRASIL E UCRÂNIA PARA O USO
COMERCIAL DO CENTRO DE LANÇAMENTO DE ALCÂNTARA *

José Monserrat Filho **

"Graças à tabelinha inteligente, eles furaram o bloqueio defensivo do adversário e acabaram ganhando o jogo…" (de um comentarista esportivo)

Este trabalho busca mostrar que a parceria brasileiro-ucraniana é de suma importância para a criação de um primeiro sistema de exploração comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Brasil. O êxito desse empreendimento depende, como condictio sine qua non: (a) da aprovação pelo Congresso Nacional brasileiro de acordo de salvaguardas entre Brasil e EUA para uso do CLA por empresas privadas norte-americanas, que hoje promovem cerca de 80% dos lançamentos comerciais realizados no mundo; e (b) da implementação regular e de boa fé deste acordo pelo Governo dos EUA. Assim, a oportuna e promissora aliança entre Brasil e Ucrânia, que nos oferece a vantagem de incluir intercâmbio tecnológico, está subordinada a um acordo alheio a qualquer objetivo de cooperação, que, no entanto, tem um peso decisivo no mercado de lançamentos.

Introdução

Ucrânia, Rússia e Casaquistão são as três repúblicas da ex-União Soviética mais envolvidas com atividades espaciais. A Ucrânia começa a produzir mísseis balísticos em 1951.

Dez anos depois, em 1961, o Brasil cria seu primeiro órgão público espacial, o Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais (GOCNAE), convertida em Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) em 1971.

Nos anos 60 e 70, a Ucrânia ganha grande número de fábricas, empresas e institutos de pesquisa destinados a atender demandas militares espaciais, tornando-se um dos elos mais relevantes da indústria espacial soviética.

Em 1979, o Brasil aprova seu primeiro programa espacial, a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), que prevê a construção de dois satélites de coleta de dados (SCD-1 e SCD-2), um veículo lançador de satélites (VLS) e um centro de lançamento, em Alcântara, no Maranhão. 1

Dissolvida a URSS em 1991, a nova República independente da Ucrânia fica com amplo e rico setor espacial, que hoje emprega cerca de 100 mil pessoas e fabrica os conceitudos foguetes Zenit, Ciclone e Dniepr, além de muitos equipamentos e componentes. Para manter, desenvolver e tirar proveito de tão valioso acervo, logo sai em busca de parcerias internacionais, capazes de lhe dar acesso a projetos, negócios e recursos financeiros. Conclui mais de 30 acordos e instrumentos internacionais direta ou indiretamente ligados à cooperação espacial - três deles com o Brasil. 2

O Brasil, desde a primeira operação no Centro Alcântara 3, em 1989, lança dali mais de 260 veículos de sondagem e meteorologia; promove, respectivamente, em 1993 e 1998, o lançamento de seus primeiros satélites (SCD-1 e SCD-2), nos EUA, pelo foguete Pegasus, da empresa norte-americana Orbital Science; funda a Agência Espacial Brasileira (AEB), em 1994, e desde então contabiliza mais de 10 acordos internacionais de cooperação espacial. Isso, sem contar as dezenas de acordos assinados nas décadas anteriores, entre os quais cabe destacar o firmado com a China, em julho de 1988, para a construção de dois satélites de recursos naturais da Terra (Chinese-Brazilian Earth Resources Satelittes), o primeiro deles, o Cbers 1, lançado da China em outubro de 1999.

Em 1995, a empresa ucraniana Iujnoie, criadora do Zenit, une-se à Boeing (EUA), à NPO Energia (Rússia) e à Kvaerner (Noruega) na criação da Sea Launch, companhia destinada a realizar lançamentos comerciais a partir de plataforma marítima, instalada em regiões do alto mar, na Linha do Equador. Tendo inaugurado seu serviço em 27 de março de 1999, a empresa tem já sete lançamentos de sucesso; o mais recente deles, em 15 de junho de 2002, levando ao espaço o satélite de telecomunicações Galaxy IIIC, na PanAmSat.

Em 1996, o Brasil resolve acelerar seu plano de comercialização do CLA. Para tanto, a AEB e o Ministério da Aeronáutica assinam convênio com a Infraero - Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária, que atua com singular dinamismo. 4

Em 1997, a Ucrânia acolhe com agrado o projeto da empresa italiana Fiat Avio, negociado com a Infraero, de formar um consórcio com o Brasil para lançamento dos foguetes Cyclone-4, considerados de alta eficiência, a partir do CLA, de situação geográfica privilegiada a 2º e 18‘ao sul da Linha do Equador, o que pode tornar os lançamentos mais seguros e econômicos. O Cyclone-4 é um aperfeiçoamento do Cyclone-3, com mais de 200 lançamentos bem-sucedidos.

O projeto aproxima Brasil e Ucrânia na área espacial. Os dois países descobrem que têm valiosos interesses comuns neste campo.

O primeiro instrumento jurídico Brasil-Ucrânia é o Tratado sobre Relações de Amizade e Cooperação, assinado em 25 de outubro de 1995, quatro anos depois da independência ucraniana.

O Brasil, com território continental de 8,5 milhões de km², é 14 vezes maior que a Ucrânia, que tem 604 mil km², embora a população brasileira, de 170 milhões de pessoas, seja apenas algo mais de três vezes maior do que a da Ucrânia, de 52 milhões.

Os dois países acumulam experiências espaciais por diferentes razões e caminhos, e em distintos níveis. Hoje vislumbram ações conjuntas estratégicas para ambos. São possibilidades e oportunidades de promissora cooperação, tanto bilateral quanto multilateral.

Evolução e percalços de uma joint venture

Em dezembro de 1997, a Infraero inicia negociações com a Fiat Avio em torno do consórcio que previa a participação de duas empresas ucranianas, a Iujnoie, de projetos industriais, e a Iujnyi, de construção de foguetes e equipamentos espaciais.

Em 7 de abril de 1998, a Infraero assina um Memorando de Entendimento com a Fiat Avio, a Iujnoie e a Iujnyi, fixando as bases da uma Joint Venture para comercializar lançamentos de cargas úteis pelos foguetes ucranianos Ciclone-4 a partir do CLA.

O projetado consórcio já tem, então, um provável primeiro cliente interessado em seus serviços: a empresa Motorola , dos EUA.

Consultado pela própria Motorola, o Departamento de Estado norte-americano, porém, deixa claro: não apóia a iniciativa. E, através de um "non paper", desaconselha o Governo da Itália a aprovar o projeto da Fiat Avio. O Brasil - embora contando já com a requerida legislação de controle de exportação de equipamento sensível e sendo membro do MCTR (Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis) desde 1996 - é ali considerado como país não confiável em matéria de proliferação de tecnologia de mísseis, por manter o programa de construção de seu Veículo Lançador de Satélites (VLS-1). O Governo dos EUA atinge plenamente seu objetivo: desativa as negociações em curso entre brasileiros, italianos e ucranianos.

O Governo do Brasil vê-se compelido a realizar grande esforço diplomático junto à Casa Branca - que inclui uma conversa a respeito do presidente Fernando Henrique Cardoso com seu colega Bill Clinton - para conseguir a concordância dos EUA em superar o problema por meio de um acordo de salvaguardas tecnológicas. O acordo é assinado em 18 de abril de 2000, após vários meses de negociações.

Já no segundo semestre de 1999, entretanto, esboça-se claro entendimento entre os dois países, desfazendo o clima anterior de impasse. 5

Animado com a nova expectativa, o Governo do Brasil resolve retomar contato com a Ucrânia. A iniciativa é bem acolhida. Em 18 de novembro de 1999, os governos dos dois países firmam um Acordo-Quadro sobre Cooperação nos Usos Pacíficos do Espaço Exterior. 6

O documento destaca-se pela amplitude, abrangência e sentido nitidamente construtivo.

Um texto para permitir o máximo

O Acordo-Quadro, em seu artigo 3º, parágrafo 1º, contém lista exaustiva de áreas em que os dois países podem cooperar. E caso alguma eventualmente tenha ficado de fora, o parágrafo 2º faculta a definição de novas áreas "por acordo mútuo entre as Partes".

Assim, Brasil e Ucrânia abrem todas as chances possíveis de cooperação espacial, inclusive nos setores mais sensíveis.

Três áreas da lista dizem respeito a lançamentos espaciais:

"f) sistemas de transporte espacial;

g) atividades conjuntas de pesquisa e desenvolvimento, construção, fabricação, lançamento, operação e utilização de veículos lançadores, satélites e outros sistemas espaciais;

h) infra-estrutura de solo de sistemas espaciais, inclusive centros de lançamento."

O artigo 4º sobre "Formas de Cooperação" também se destaca por incluir as mais diferentes modalidades, facilitando e estimulando os entendimentos e as realizações bilaterais.

Dois pontos deste artigo estão relacionados diretamente com o projeto de uso comercial do Centro de Alcântara:

"e) desenvolvimento de programas comerciais e industriais nas áreas de estudos e utilização de sistemas espaciais e serviços de lançamento;

f) utilização de veículos lançadores e de outros sistemas espaciais para a realização de atividades conjuntas;"

O artigo 5º, por sua vez, permite a celebração de Ajustes Complementares não só entre as Agências Executoras do acordo - Agência Espacial Brasileira (AEB) e Agência Espacial Nacional da Ucrânia (NSAU) - como também com "outras instituições designadas".

Ele enseja igualmente o estabelecimento de "Programas de Cooperação específicos", que "determinarão os princípios, as regras e os procedimentos relativos à organização, execução e, se necessário, o financiamento de tais programas".

Ainda pelo artigo 5º, os dois governos, as Agências Executoras e "outras instituições" envolvidas "poderão prever a participação de instituições privadas e governamentais, firmas e pessoas naturais de terceiros países nos Programas de Cooperação realizados ao abrigo do presente Acordo".

Esses dispositivos reafirmam claramente a decisão de ambos os países de abrirem todas as alternativas possíveis e de não fecharem nenhuma via ao desenvolvimento da cooperação espacial entre eles.

Neste sentido, é sintomática a existência de um artigo especial, o 7º, sobre "Participação do Setor Privado", favorecendo a cooperação entre "empresas ou organizações comerciais e industriais, públicas ou privadas, dos dois países" como partes integrantes de seus programas espaciais conjuntos.

A necessidade de salvaguardas tecnológicas

Mas, por mais positivo que seja, o Acordo-Quadro ainda não basta para assegurar o êxito do projeto conjunto de exploração comercial do CLA. Há também que garantir a possibilidade de contar com os clientes considerados mais atuantes no mercado mundial de lançamentos: as empresas dos EUA, que fabricam 80% dos satélites comercializados no mundo de hoje.

Daí o interesse do Governo do Brasil em firmar o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com o Governo dos EUA tendo em vistas o lançamento comercial pelo CLA de foguetes e satélites norte-americanos, a grande maioria deles pertencente a empresas privadas.

O Ministério de C&T brasileiro, responsável por orientar as negociações do acordo, argumenta: como "os EUA detém a liderança mundial do mercado de satélites", "é producente já ter assinado o acordo [de salvaguardas tecnoloógicas] com os EUA"… "antes de firmar acordos de salvaguardas com outras nações para lançamentos de satélites (que, em geral, são norte-americanos)". 7

Pelo artigo III, letra F, do acordo de salvaguardas com os EUA, o Brasil assume o compromisso de "acordos juridicamente mandatórios com outros governos que tenham jurisdição ou controle sobre entidades substancialmente envolvidas em Atividades de Lançamento".

"Atividade de Lançamento", como define o artigo II, é atividade de lançamento no CLA com participação de espaçonaves, veículos, equipamentos e/ou dados técnicas de empresas norte-americanos.

O artigo III, letra F, ainda reza que "o objetivo principal e os dispositivos" dos acordos de salvaguardas com os outros países que participarem de operações no CLA por ocasião de lançamentos envolvendo empresas dos EUA "deverão ser equivalentes" aos contidos no acordo de salvaguardas com os EUA ("exceto no que se refere a este artigo e se de outra forma acordado entre as Partes").

E mais, finaliza o artigo III, letra F: "Esses acordos deverão obrigar tais outros governos a exigir de seus licenciados [empresas] que cumpram compromissos em sua essência equivalentes aos previstos nos Planos de Controle de Tecnologias [exigidos no acordo de salvaguardas Brasil-EUA para impedir qualquer transferência não-autorizada de tecnologias quando de lançamentos envolvendo empresas norte-americanas no CLA]."

Assim, o acordo Brasil-EUA estabelece o compromisso de se criar uma rede de acordos de salvaguardas tecnológicas entre todos os países que, de um modo ou outro, através de empresas públicas ou privadas, pretendam participar em qualquer operação de lançamento comercial no CLA que inclua uma ou mais empresas norte-americanas.

Nada mais lógico, então, ante os planos e expectativas do Brasil e da Ucrânia, que o segundo acordo de salvaguardas tecnológicas desta rede tenha sido assinado justamente por eles.

O acordo de salvaguardas Brasil-Ucrânia 8, assinado em Kiev no dia 17 de janeiro de 2002, tem como testemunhas ninguém menos que os presidentes dos dois países, o que, em princípio, confere às obrigações assumidas o máximo de comprometimento político.

Em 26 de junho de 2002, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados do Brasil aprova por unanimidade o parecer do deputado federal Werner Wanderer (PFL/Paraná) sobre o acordo, que agora está para ser apreciado pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, onde deve merecer igual consideração. O Governo do Brasil empenha-se para o acordo ser aprovado pelas duas Casas do Congresso Nacional até setembro próximo, um objetivo nada fácil.

O acordo Brasil-EUA enfrentou dificuldades bem maiores em sua tramitação na Câmara dos Deputados, acusado por bancadas de oposição de ferir a soberania nacional brasileira, com base numa leitura a meu juízo equivocada de seu texto. 9 Assim, o acordo Brasil-Ucrânia pode ser aprovado antes dele no Congresso Nacional brasileiro, o que, se acontecer, será um contrasenso. Este, no fundamental, foi assinado em função daquele. Sem o acordo Brasil-EUA, o acordo Brasil-Ucrânia perde sua motivação mais forte. Descartadas as empresas norte-americanas, quem poderá recorrer aos serviços de lançamentos pelos foguetes Ciclone-4 a partir do CLA, de modo a mantê-los ativos e rentáveis? Esta questão ainda não tem uma resposta convincente. Na falta de clientes significativos, o que resta é uma incerteza grande demais para incentivar os vultosos investimentos que Brasil e Ucrânia ainda devem fazer no CLA para viabilizar a oferta Ciclone-4/CLA como opção altamente competitiva no mercado mundial de lançamentos.

"Se, de um lado, o acordo de salvaguardas com a Ucrânia viabiliza o lançamento dos foguetes Cyclone-4 a partir de Alcântara, de outro, o acordo com os EUA garante os passageiros para estes foguetes, os satélites", alerta o ex-presidente da AEB, Múcio Dias. 10

Portanto, a aprovação de um acordo Brasil-EUA é condição imprescindível para o sucesso da parceria espacial brasileiro-ucraniana, na atual situação do mercado, que não deve mudar em futuro próximo.

Acordos de salvaguardas iguais,
porém diferentes

O acordo de salvaguardas Brasil-Ucrânia praticamente repete as principais disposições do acordo de salvaguardas Brasil-EUA, como não poderia deixar de ser.

A diferença básica entre os dois é que o acordo Brasil-EUA não está vinculado a nenhuma meta de cooperação. Seu único propósito é fechar toda e qualquer oportunidade de transferência tecnológica não autorizada. Ele busca também dificultar o desenvolvimento do foguete brasileiro, o Veículo Lançador de Satélites (VLS). Este é o sentido do artigo III, letra E, do acordo, que impede o Brasil de usar os recursos obtidos de lançamentos feitos a partir do CLA de foguetes, satélites e equipamentos de empresas dos EUA - "em programas de aquisição, desenvolvimento, produção, teste, liberação ou uso de foguetes ou de sistemas de veículos aéreos [mísseis terra-terra] não tripulados (quer na República Federativa do Brasil, quer em outros países)".

Tal dispositivo atende à rígida política de não-proliferação de meios (mísseis) capazes de transportar e lançar armas de destruição em massa, adotada pelo Governo dos EUA ainda nos anos 80. Mas, na realidade, ele é inócuo, dada a impossibilidade de se distinguir, entre os numerosos recursos recolhidos ao Tesouro Nacional do Brasil, justamente aquele montante oriundo de empresa norte-americana em pagamento a serviços prestados em Alcântara. O Brasil certamente decide aceitar a polêmica norma por se tratar de diretriz inegociável da política dos EUA e também por estimar que a grande vantagem do acordo, de abrir o acesso de empresas norte-americanas à Alcântara, poderá ser bem superior ao dito óbice, mais diplomático do que real.

O acordo de salvaguardas Brasil-Ucrânia não contém nada parecido. A Ucrânia, ao contrário dos EUA, não se opõe ao projeto VLS do Brasil. Os dois países são membros do MTCR (Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis), o que os coloca, ou deveria colocá-los, no mais alto nível de confiabilidade aos olhos dos países desenvolvidos, principalmente dos EUA, fundador do MTCR, em 1986.

Talvez seja válido supor que o interesse do Governo da Ucrânia pelo ingresso de Alcântara no mercado mundial seja bem maior do que o do Governo dos EUA, que, pelo Acordo de Salvaguardas, apenas manifesta-se disposto a não se opor oficialmente a tal alternativa.

Entre Brasil e Ucrânia, pelo visto, prevalece a idéia de que quanto mais cada um deles se desenvolver, melhor para ambos. Eles estão claramente determinados a cooperar entre si e com outros países e empresas. Este ânimo, lavrado como compromisso bem definido, começa com o plano ambicioso e complexo de criar nova opção, econômica e segura, para o mercado de lançamentos comerciais. E inclui outros projetos importantes de intercâmbio e colaboração. Os dois países enfrentam sérios problemas para financiar seu desenvolvimento e anseiam superar isso pela união de esforços e por soluções inovadoras para satisfazer demandas do mercado.

Memorando objetivo

Sintomaticamente, o acordo de salvaguardas Brasil-Ucrânia é assinado junto com um memorando de entendimento, de oito pontos, entre as agências espaciais dos dois países, sobre o uso comercial do CLA por meio de foguetes ucranianos. 11

Este documento fixa, concretamente, como seu primeiro ponto, que as Agência Espacial Brasileira (AEB) e a Agência Espacial Nacional da Ucrânia (NSAU) "iniciarão a realização do projeto de utilização de veículos ucranianos ‘Cyclone’, usando a infra-estrutura do CLA, a partir de 1º de fevereiro de 2002".

O segundo ponto estabelece que "os complexos técnicos e de lançamento de veículos de lançamento ucraniano, localizados no CLA serão utilizados unicamente com propósitos pacíficos" e no âmbito dos programa espaciais dos dois países, de comum acordo, de programas espaciais internacionais e no "fornecimento de serviços comerciais".

O terceiro ponto indica que as duas agências "promoverão apoio estatal para o estabelecimento de uma joint venture visando a utilização do veículo de lançamento ucraniano Cyclone a partir do CLA", ou seja, uma empresa conjunta para explorar este serviço.

Pelo quarto ponto, as partes assumem que "envidarão seus melhores esforços" para resolver junto a seus respectivos Governos o problema do financiamento deste projeto, que apresenta grandes dificuldades hoje para ambos os países.

Segundo o quinto ponto, as condições de uso das instalações do CLA para este projeto conjunto, além das questões de propriedade do equipamento e do material das novas instalações construídas, da distribuição do trabalho e do programa de lançamento serão definidos em ajustes complementares ao Acordo-Quadro (de 18/11/1999).

O sexto ponto tem especial relevância do ponto de vista do Direito Espacial Internacional. Por ele, as partes acertam promover consultas para formular e implementar uma política conjunta frente à definição de "Estado lançador", nos termos da Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais 12, de 1972, bem como regular as questões de licenciamento, responsabilidade e seguro.

Segundo o artigo 1º desta convenção, "o termo ‘Estado lançador’, significa (I) um Estado que lança ou promove o lançamento de um objeto espacial; (II) um Estado de
cujo território ou de cujas instalações é lançado um objeto espacial". 13

Assim, Brasil e Ucrânia, ao realizarem lançamentos a partir do CLA com foguetes Cyclone, serão tratados como "Estados lançadores". O Brasil, ademais, será "Estado lançador" também em virtude dos lançamentos serem serem feitos a partir de seu território.

A referida convenção adota, em seu artigo 5º, § 1, o princípio da responsabilidade individual e solidária dos Estados lançadores por danos causados a terceiros pelos objetos que, juntos, tenham lançado ao espaço. Ao mesmo tempo, pelo artigo 5º § 2, ela reza que "os participantes num lançamento conjunto podem concluir acordos quanto à divisão entre si das obrigações financeiras pelas quais eles são, solidária e individualmente,
responsáveis".

O memorando de entendimento, portanto, levanta a necessidade de acordo prévio, em forma de "política conjunta", entre Brasil e Ucrânia sobre suas responsabilidades individuais e solidárias como sócios na realização de lançamentos espaciais. Isso, sem dúvida, fortalece a parceria e seu compromisso de cooperação a longo prazo.

Por fim, o sétimo e o oitavo pontos do memorando registram dois compromissos indispensáveis: um, especialmente valioso para o Brasil, ressalta que as partes levarão em devida consideração as questões de proteção ambiental quando dos lançamentos dos veículos ucranianos no CLA; e o outro destaca o ânimo cooperativo não-exclusivista das partes, ao anunciar que este instrumento "não constituirá, em nenhuma circunstância, obstáculo à cooperação com outros países e com organizações internacionais".

As primeiras ações rumo à joint venture

Ainda em 2002, para dar seqüência ao projeto conjunto, a AEB e a Agência Espacial Nacional da Ucrânia promovem novas negociações, procurando aprofundar o mais possível os planos de ação conjunta.

Nomeia-se um grupo de trabalho para analisar as condições técnicas e de infra-estrutura necessárias à criação da joint venture que irá administrar e operacionalizar o empreendimento, inclusive a construção de uma plataforma especial de lançamento do Cyclone-4 nas instalações do CLA. Entre as tarefas do grupo estão: estimativa detalhada de custos do projeto, definição das responsabilidades de cada país, avaliação do mercado mundial de lançamentos e do retorno dos investimentos a serem feitos, exame das questões jurídicas e da documentação indispensável para a criação e registro da joint venture, com a participação de empresas estatais dos dois países. 14

Segundo Múcio Dias, ex-presidente da AEB, estudos já feitos dão conta de que o consórcio Brasil-Ucrânia poderia lançar anualmente de cinco a dez satélites, o que proporcionaria um faturamento anual de US$ 250 milhões a US$ 500 milhões. A seu ver, "se viabilizarmos de 5 a 10 lançamentos por ano, o sucesso do projeto está garantido". 15

Definir a forma da joint venture não é tarefa simples. O jurista ucraniano Serguei Negoda, após estudar a legislação brasileira pertinente, considera mais razoável a estrutura de Sociedade Anônima por ser mais flexível, dinâmica e adequada ao caso. 16

Assim, os trabalhos de preparação da nova empresa estão sendo realizados em paralelo à demorada tramitação no Congresso Nacional do acordo de salvaguardas Brasil-Ucrânia. A esperança é de que a aprovação parlamentar seja alcançada ainda em 2003.

Em todo o caso, vozes otimistas julgam conveniente lembrar que os foguetes Cyclone-4 poderão estar operando no CLA já em 2005, se houver uma solução positiva no Congresso Nacional.

Algumas conclusões

O êxito da cooperação espacial Brasil-Ucrânia, que descortina largos horizontes de ganhos e avanços recíprocos, depende dos resultados positivos a serem alcançados pelo acordo de salvaguardas Brasil-EUA, que é meramente restritivo. A decisão brasileira, adotada em fins de maio de 2003, de retirá-lo do Congresso para renegociá-lo com o Governo norte-americano implica necessariamente um atraso considerável em todo o processo

A própria ratificação do acordo pelo Brasil, quando e se for conseguida, ainda não assegura totalmente o sucesso do programa. Será preciso acompanhar se e como ele será aplicado pelo Governo dos EUA, que, por razões de segurança nacional e também de vantagens econômicas, tem sob severo controle suas empresas da indústria espacial, entre elas os mais promissores candidatos aos serviços de lançamento comercial da futura joint venture brasileiro-ucraniana.

Esta é (mais) uma tentativa realista e lúcida de furar o bloqueio efetivo que as grandes potências, sobretudo os EUA, mantêm em torno das atividades espaciais mais estratégicas e rentáveis.

Se tiver êxito, poderá gerar alguma alteração, mínima que seja, no quadro de distribuição das atividades espaciais no mundo de hoje, fortemente concentradas em alguns países.

* Trabalho apresentado na 54ª Reunião Anual da SBPC, campus da Universidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia, em julho de 2002, e atualizado em maio de 2003.           (Volta)

** Jornalista e jurista, editor do "Jornal da Ciência" e do "JC e-mail", da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), professor de Direito Espacial, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), membro da Diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial da Federação Internacional de Astronáutica, e membro da International Law Association (ILA). E-mail <monserrat@alternex.com.br>           (Volta)

1 Costa Filho, Edmilson, Política Espacial Brasileira, Rio: Editora Revan, 2002           (Volta)

2 Dunk, Frans G. von der; Negoda, Serguei A., Ukrainian nacional space law from an international perspective, Space Policy 18 (2002), pp. 15-23.          (Volta)

3 Em cerca de 20 anos, o Brasil já gastou mais de US$ 300 milhões em obras no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA).          (Volta)

4 Monserrat Filho, José, Brazilian launch center goes to market, Space Policy, 15 (1999), pp. 113-115. Em decisão polêmica, a infraero, após realizar intenso trabalho no mercado internacional a favor do CLA, afasta-se da tarefa, em 2000, devendo ser substituída por empresa pública nacional ainda a ser criada. Sua função atualmente é exercida pela AEB.          (Volta)

5 Monserrat Filho, José; Leister, Valnora, Brazil-USA Agreement on Alcantara Launching Center, Proceedings of the Forty Third Colloquium on the Law of Outer Space, 2-6 October 2000, Rio de Janeiro.          (Volta)

6 O texto completo do acordo está no site da Agência Espacial Brasileira (AEB): www.agespacial.gov.br          (Volta)

7 Acordo de Salvaguardas Tecnológicas Brasil-Estados Unidos, folheto editado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, em agosto de 2001.           (Volta)

8 Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da Ucrânia sobre Salvaguardas Tecnológicas Relacionadas à Participação da Ucrânia em Lançamentos a Partir do Centro de Lançamentos de Alcântara (com 10 artigos), assinado em 16 de janeiro de 2002, em Kiev.            (Volta)

9 Marques da Silva, Walteno, e Stemler da Veiga, Altair, Acordo de Salvaguardas Tecnológicas entre Brasil e Estados Unidos: Por quê aprová-lo; Monserrat Filho, José, e Leister, Valnora, A discussão no Congresso Nacional do Acordo Brasil-EUA de Salvaguardas Tecnológicas sobre o Uso do Centro de Lançamento de Alcântara, Revista Brasileira de Direito Aeroespacial, Rio de Janeiro, nº 83, setembro de 2001.          (Volta)

10 Notícia da AEB, de 16/4/2002, no site www.agespacial.gov.br.                    (Volta)

11 Memorando de Entendimento entre a Agência Espacial Brasileira e a Agência Nacional da Ucrânia sobre a Utilização de Veículos de Lançamento Ucranianos a partir do Centro de Lançamento de Alcântara, firmado em 16 de janeiro de 2002, em Kiev.         (Volta)

12 Direito Espacial - Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições legais em vigor, editado pela Agência Espacial Brasileira e a Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial, Brasília, setembro de 1997. [Ver aqui].           (Volta)

13 A Revista Brasileira de Direito Aeroespacial publicou, em seu nº 81, dezembro de 2000, uma série de textos sobre os problemas da definição de "Estado lançador": Estudo da Definição de Estado Lançador, José Monserrat Filho; O Conceito de "Estado Lançador", Álvaro Fabrício dos Santos; Contribuição para a Definição de Estado Lançador Fernando de Oliveira Pontes; O Brasil como Estado Lançador e o Interesse na Comercialização do Centro de Lançamento de Alcântara, Altair Stemler da Veiga; Limitação Temporal da Condição de Estado Lançador, Raimundo Nonato F.Mussi; Participação de Novos Atores no Segmento das Atividades Espaciais, Wálteno Marques da Silva; e "Estado Lançador" Abre Caminho ao Debate de Grandes Questões Atuais, entrevista com o jurista alemão Kai-Uwe Schrogl.          (Volta)

14 Notícia da AEB, de 18/4/2002, no site <www.agespacial.gov.br>.          (Volta)

15 Gazeta Mercandil, de 18/4/2002; Notícia da AEB, de 17/4/2002, no site <www.agespacial.gov.br>.          (Volta)

16 Opinião expressa em carta endereçada ao autor deste trabalho.          (Volta)

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