Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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ESPAÇO: REGULAMENTAÇÃO ENGESSADA

José Monserrat Filho *

A 41ª reunião do Subcomitê Jurídico da ONU para o Espaço, de 2 a 12 de abril, em Viena, mostrou que os EUA e outras potências espaciais estão mais preocupados em defender os investimentos privados nas atividades espaciais do que em desenvolver o Direito Espacial, a regulamentação internacional destas atividades.

Nenhum novo item obteve consenso para constar da agenda do órgão como ponto para debate e possível elaboração de nova convenção. O outrora dinâmico e produtivo Subcomitê Jurídico do Comitê da ONU para o Uso Pacífico do Espaço, que reúne-se anualmente desde 1961, foi o responsável pela redação dos dez documentos centrais do Direito Espacial (cinco tratados e cinco resoluções da ONU). A sessão deste ano fechou uma magra agenda para a reunião de 2003. O único projeto legislativo que ali figura é o do Protocolo sobre Bens Espaciais previsto na Convenção sobre Propriedades Internacionais de Equipamentos Móveis, aprovada na Conferência Diplomática de Cape Town, Africa do Sul, em 16 de novembro de 2001, e aberta à assinatura dos países. Esta convenção e seus protocolos (um sobre bens aeronáuticos – já aprovado –, e outros sobre bens espaciais e ferroviários) são de iniciativa do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado, conhecido pela sigla Unidroit.

O Protocolo sobre Bens Espaciais é considerado essencial para garantir o pagamento dos créditos privados que financiam tais bens. Ele estimularia o aumento dos investimentos privados no setor, acelerando o já intenso processo de comercialização e privatização das atividades espaciais. Seu texto já amplamente discutido e negociado será agora examinado pelo Subcomitê Jurídico da ONU. O que se tem em mira, sobretudo, é a decisão sobre se um órgão da ONU poderá se tornar a autoridade supervisora (e legitimadora) do sistema de registro de bens espaciais a ser estabelecido pelo novo quadro de garantias.

O assunto, claro, é importante, especialmente para o sistema financeiro internacional. Mas outras questões espa-ciais, de óbvio interesse público, são tão ou mais relevantes. Elas, no entanto, não tiveram guarida no órgão espacial-legislativo da ONU.

Desde a sua criação, essa instância funciona por consenso. Basta a objeção de um país para um tema proposto não ser adotado. Foi o que ocorreu com duas idéias apresentadas na recente reunião: a de discutir um novo tratado sobre sensoriamento remoto, encaminhada pelo Brasil, e a de estudar a necessidade e a viabilidade de novo tratado universal único sobre Direito Espacial, de autoria da Rússia, China e Grécia. Sequer abriu-se espaço para um diálogo a respeito.

Eis a proposta brasileira: "Levando em conta que o sensoriamento remoto por satélite se tornou atividade vital para o bem-estar da humanidade e para o desenvolvimento de todos os países, bem como sua especial relevância para a paz e a segurança internacionais e para os programas econômicos e sociais dos países em desenvolvimento, a delegação brasileira considera que o sensoriamento remoto por satélite é tão importante para a comunidade mundial quanto os sistemas de telecomunicação. Apesar disso, o sensoriamento remoto por satélite não é atividade espacial suficientemente regulamentada, pois o único instrumento internacional a isso destinado – a Declaração da Assembléia Geral da ONU de 1986 contendo os Princípios sobre Sensoriamento Remoto – está desatualizado tanto do ponto de vista tecnológico quanto econômico e político. Entendemos que é necessário elaborar uma convenção internacional para dar atualidade aos Princípios sobre Sensoriamento Remoto e para desenvolver normas sobre as novas situações resultantes das inovações tecnológicas nas atividades de sensoriamento remoto e de suas aplicações comerciais. A delegação brasileira propõe a inclusão na agenda do Subcomitê Jurídico de um novo ponto sobre a discussão de uma convenção internacional baseada na Declaração da Assembléia Geral da ONU contendo os Princípios sobre Sensoriamento Remoto."

Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Grécia, Malásia e Rússia apoiaram a proposta. Mas três países se opuseram: Japão, Alemanha e Canadá. Na opinião destes, os Princípios de 86 funcionam bem e uma discussão a respeito poderia minar o consenso atingido naquele ano. O delegado alemão chegou a dizer que reabrir a discussão sobre os Princípios de 86 poderia prejudicar o desenvolvimento do setor e as atividades das empresas privadas nele envolvidas.

O Brasil defendeu sua proposta, enfatizando que os Princípios de 86 não resistem a uma simples análise crítica, como se vê nos encontros científicos internacionais sobre o assunto, em diferentes países, inclusive e sobretudo nos EUA e na Europa. Estes princípios, frisou o representante brasileiro, são vagos e imprecisos, pois conformam uma solução de compromisso em que se tratou de satisfazer visões conflitantes. Desrespeitados com freqüência, não são universalmente aceitos como obrigatórios (as declarações da Assembléia Geral da ONU, em princípio, são simples recomendações). Além disso, estão inteiramente superados pelas novas tecnologias (já estão à venda imagens com definição de um metro) e pelo novo quadro geopolítico do mundo. E, o que é pior: não asseguram o livre acesso dos países sensoriados aos dados sobre seu território. Esse acesso deveria se dar de modo "não discriminatório" e a um "custo em termos razoáveis", mas nem sempre o é, sobretudo porque os dados agora estão muito mais em poder de empresas privadas do que em poder dos países.

Para o Brasil, uma melhor regulamentação das atividades de sensoriamento remoto é necessidade objetiva, que, cedo ou tarde, terá que ser atendida, no interesse de todos os países.

De nada valeram os argumentos. A falta de consenso já descartara a proposta brasileira.

Também não obteve consenso a proposta da Rússia de discussão da conveniência ou não de um tratado universal único sobre o Direito Espacial, a partir dos cinco tratados vigentes. Desta vez a oposição veio sobretudo das delegações dos EUA e da França. Elas alegaram que a discussão proposta seria contraprodutiva e desestabilizaria o regime jurídico hoje existente, que, a seu ver, funciona muito bem.

Os delegados russos reagiram, indicando que as graves lacunas nos tratados em vigor é que podem desestabilizar o regime existente. A delegação brasileira também defendeu a idéia do debate em torno de um tratado único sobre o Direito Espacial, ressaltando que isso precisa ser feito não para destruir os bons princípios já adotados, mas para criar novos princípios e normas, segundo as demandas da época em que vivemos, inteiramente diferente daquela durante a qual os cinco tratados foram redigidos e aprovados. "O mundo de hoje é outro, não podemos ficar atrelados ao passado, como se nada de novo tivesse acontecido nestas décadas todas", frisou o representante brasileiro.

Este é o terceiro ano em que a Rússia defende sua proposta de novo tratado único sobre Direito Espacial (a exemplo do que se fez com o Direito do Mar, que levou à convenção de 82). E tudo leva a crer que ela voltará em 2003 com a mesma idéia. Como a insuficiência do regime atual é inconteste, vale insistir.

A França, por sua vez, sustentou a necessidade de uma carta de princípios sobre a questão do lixo espacial, mas não ousou propor a inclusão do tema na agenda.jurídico-espacial da ONU para 2003, que acabou vazia de novas idéias.

O veterano delegado russo, Iuri Kolossov, catedrático de Direito Internacional do Instituto de Relações Internacionais de Moscou, que acompanha as negociações em torno do Direito Espacial desde os anos 60, pôs o dedo na ferida: o processo legislativo de novos tratados e convenções, principal função deste Subcomitê Jurídico, está bloqueado.

Referências:

* Jornalista, editor do "Jornal da Ciência" da SBPC, professor de Direito Espacial, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial e membro da diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial         (Volta)

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