Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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NÃO SERÁ TEMPO DE ELABORAR UMA CONVENÇÃO UNIVERSAL
ABRANGENTE SOBRE O DIREITO ESPACIAL?
Iuri M. Kolosov * e Vassili I. Titushkin **

 

    Há 45 anos, no dia 4 de outubro de 1957, o primeiro objeto feito pelo homem, o Sputnik soviético, era lançado ao espaço exterior. Iniciava-se nova etapa na história da humanidade, a era da exploração espacial.

    Esse grande avanço tecnológico teve enorme impacto sobre quase todas as esferas das atividades humanas, tanto sócio-políticas quanto econômicas, inclusive no sistema do Direito Internacional.

    As Nações Unidas, sem dúvida, desempenharam papel crucial no desenvolvimento apropriado e efetivo das regras básicas e princípios destinados a regular as atividades da humanidade no espaço exterior. No começo, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou as Resoluções 1348, de dezembro de 1958, 1472, de dezembro de 1959, e 1721, de dezembro de 1961. Estes documentos estabeleceram o Comitê das Nações Unidas sobre o Uso Pacífico do Espaço Exterior (Copuos) e lhe concederam mandato para "estudar e informar sobre os problemas jurídicos gerados pela exploração e uso do espaço exterior".

    Nos anos seguintes da era espacial, o Copuos redigiu e a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou cinco tratados de caráter universal 1 e cinco conjuntos de princípios contendo recomendações 2 .

    No entanto, o contínuo progresso sócio-político e tecnológico da civilização humana levou à situação em que as atividades espaciais superaram o quadro legal existente.

    Se nas primeiras décadas da exploração espacial, apenas alguns países realizavam atividades espaciais com seus próprios meios, hoje o "Clube Espacial" reúne dezenas de países que levam a cabo programas espaciais independentes ou cooperativos, com impacto sobre todas as esferas da vida e quase todos os países.      Este contexto levantou o problema da aceitação universal dos tratados vigentes por todos os países – os envolvidos nestas atividades e os seus beneficiários. Enquanto isso, um número limitado de países aderiu aos cinco tratados centrais das Nações Unidas em matéria espacial 3 .

    A questão da universalidade dos cinco tratados espaciais surgiu junto com a do valor legal dos cinco conjuntos de princípios já citados. Estes documentos têm o caráter de recomendações aprovadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas e, como tal, são vistos pelo sistema do Direito Internacional moderno como legalmente não obrigatórios. Alguns destes princípios, entretanto, tratam de questões muito sensíveis, como o sensoriamento remoto da Terra por satélite e o uso de fontes de energia nuclear no espaço. Na opinião de alguns Estados tais princípios merecem ser "promovidos" ao nível dos instrumentos legalmente obrigatórios.

    Uma das mais importantes tendências dos últimos anos é o grande e rápido aumento do número de participantes em atividades espaciais. Empresas privadas e entidades não-governamentais tornaram-se, ao lado dos Estados, atores importantes neste campo. Tal fato também requer adequado reflexo no sistema do Direito Espacial Internacional, estabelecido em circunstâncias diferentes derivadas da concepção "Estatista", sob a qual o Estado tanto goza de todos os direitos como responde por todas as obrigações resultantes das atividades espaciais.

    Recentemente, o mundo testemunhou verdadeira revolução tecnológica em áreas da economia ligadas às atividades espaciais. Este fenômeno igualmente torna urgente profunda adaptação do sistema do Direito Espacial Internacional moderno. Apareceram novas tecnologias, que reduzem significativamente o custo dos equipamentos espaciais, colocando-os à disposição de maior número de consumidores. Ao mesmo tempo, as novidades tecnológicas engendraram novos tipos de naves e sistemas espaciais, que transformaram dramaticamente os meios e métodos das atividades espaciais e suas aplicações. Novos sistemas de lançamento, objetos aeroespaciais, micro-satélites são apenas alguns dos avanços que merecem menção.

    A realidade da era espacial impõe chamar a atenção dos juristas para alguns problemas não cobertos ou deliberadamente omitidos pelos principais tratados espaciais: a delimitação e a definição de espaço exterior, o controle sobre a poluição espacial e a redução (mitigation) dos dejetos espaciais [lixo espacial], o gerenciamento do tráfico espacial, a definição do termo "atividade espacial", a proteção da propriedade intelectual resultante de atividades espaciais, a regulamentação da pesquisa científica e das atividades comerciais no espaço. É evidente que estas lacunas legais não devem existir.

    Há que referir também algumas outras razões que instigam as idéias de modificação de certos dispositivos dos tratados espaciais básicos. Durante muitos anos, alguns membros do Copuos têm sugerido que devem ser modificados os procedimentos vigentes de solução de litígios em torno do pagamento de indenização por dano causado por um objeto espacial.

    Nos três últimos anos, o Subcomitê Jurídico do Copuos discutiu o problema da revisão do conceito de "Estado lançador". Alguns especialistas expressaram a opinião de que a participação de entidades privadas em atividades espaciais requer a interpretação de certas normas legais para aumentar a eficácia de sua aplicação. A melhor ilustração deste caso são os recentes eventos relacionados com o ante-projeto preliminar do Protocolo sobre Equipamentos Espaciais 4 , em que emergiram sérios problemas de compatibilidade com os tratados espaciais básicos em vigor.

    É evidente que este "nó" de questões legais presentes no Direito Espacial Internacional só pode ser resolvido de um único modo – através do desenvolvimento de um instrumento jurídico único e abrangente de caráter universal, uma Convenção das Nações Unidas sobre o Direito Espacial.

    Oferecemos, a seguir, alguns argumentos a favor da elaboração deste documento, complementando as considerações de caráter mais geral já mencionadas.

    Todos os aspectos da regulamentação jurídica das relações internacionais no processo de uso do espaço exterior estão intimamente relacionados. O Tratado do Espaço de 1967 cobre praticamente todos os aspectos surgidos nesta esfera – o regime jurídico do espaço exterior e dos corpos celestes, o estatuto legal dos astronautas, a responsabilidade interna-cional estatal e civil, o registro de objetos espaciais etc.

    Os outros quatro tratados internacionaos foram redigidos com base nos princípios formulados no Tratado do Espaço. Este método de desenvolver o Direito Espacial Internacional permitiu evitar contradições entre os dispositivos do próprio Tratado do Espaço e dos outros quatro tratados.

    Se a modernização dos tratados espaciais existentes for efetuada em cada um separadamente (pelo método do picadinho), as colisões entre seus dispositivos serão inevitáveis.

    Voltemos, uma vez mais, às recentes discussões sobre o conceito de "Estado lançador" no Subcomitê Jurídico do Copuos. Se a definição de "Estado lançador" na Convenção Relativa ao Registro de Objetos Lançados ao Espaço Cósmico for modificada (em forma de projeto) pelos Estados membros do Copuos, qualquer Estado-Parte desta Convenção poderá propor tal emenda. A emenda entraria em vigor após sua aprovação pela maioria dos Estados-Partes da Convenção, conforme seu Artigo 9º. Do ponto de vista dos procedimentos, isto pode ser feito na conferência dos Estados-Partes ou, alternativamente, mediante carta de aprovação submetida ao Depositário da Convenção, Secretário-Geral das Nações Unidas. Como a Convenção tem 44 Estados-Partes, a emenda seria adotada pela aceitação de 23 Estados.

    Pode-se imaginar o Copuos recomendando, a seguir, que se emende o Artigo 1º da Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos causados por Objetos Espaciais. Aqui também, a iniciativa de propor a emenda deve partir de um ou mais Estados-Partes da Convenção. Eles devem comunicar a proposta aos três Governos Depositários, do Reino Unido, da União Soviética (Federação Russa, desde 1991) e dos Estados Unidos da América. Os Governos Depositários, como lhes compete, informam, então, aos 82 Estados-Partes da Convenção. Para entrar em vigor, a emenda deve receber 42 manifestrações de aceitação.

    Ocorre que apenas 43 Estados são Partes das duas Convenções, a de Registro e a de Responsabilidade Internacional. Pode, então, acontecer que a emenda à Convenção de Responsabilidade não receba as 42 aceitações necessárias. Em conseqüência, pode se criar uma situação em que 21 Estados-Partes da Convenção de Registro estarão comprometidos com a "antiga" definição de "Estado lançador" e 23 Estados-Partes, com a nova definição de "Estado lançador", enquanto 82 Estados-Partes da Convenção de Responsabilidade permenecerão vinculados à "antiga" definição.

    Tomemos outro exemplo, envolvendo quatro dos conjuntos de princípios sobre atividades espaciais adotados pela Assembléia Geral das Nações Unidas. Eles dificilmente poderão ser convertidos em instrumentos legalmente obrigatórios, se os cinco tratados espaciais básicos não forem revistos. Eis um caso concreto: O parágrafo 3º do Princípio 9 dos Princípios Relativos ao Uso de Fontes de Energia Nuclear no Espaço Exterior estipula que a indenização pelo dano deve incluir o reembolso dos gastos devidamente justificados que tenham sido realizados em operações de busca, recuperação e limpeza, incluídos os gastos relativos à assistência recebida de terceiros. Se esta cláusula se tornar norma legalmente obrigatória, entrará em conflito com a definição do conceito de "dano" constante no Artigo 1º (a), da Convenção de Responsabilidade [que não inclui danos causados ao meio ambiente].

O mesmo se pode dizer da informação sobre objetos lançados ao espaço. Basta comparar o Princípio 5 dos Princípios Relativos ao Uso de Fontes de Energia Nuclear no Espaço Exterior e o Artigo 4º da Convenção de Registro.

Situação semelhante pode surgir sempre que se abordar uma das questões ainda não solucionadas, da lista antes mencionada. Qualquer tentativa de desenvolver um instrumento legalmente obrigatório sobre o problema dos dejetos espaciais (lixo espacial) vai requerer uma seqüência de emendas a todos os cinco principais tratados espaciais, com o mesmo resultado que ocorria no caso do conceito de "Estado lançador".

    Assim, a única solução viável e razoável continua sendo a elaboração de uma convenção universal e abrangente sobre o Direito Espacial, capaz tanto de codificar as regras já existentes nesta esfera e de ajustá-las – onde necessário – às realidades modernas, quanto de levar adiante o desenvolvimento do Direito Espacial Internacional.

    Orientada por estas considerações, a Federação Russa, na 39ª reunião do Subcomitê Jurídico do Copuos, em março-abril de 2000, assumiu a iniciativa de discutir a questão do desenvolvimento de uma convenção abrangente das Nações Unidas sobre o Direito Espacial, em analogia com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982 5 .

    A proposta foi mais desenvolvida pela Federação Russa no documento de trabalho apresentado à 43ª reunião do Copuos, em junho de 2000 6 . Juntaram-se à iniciativa várias delegações representando quase todos maiores grupos regionais – Bulgária, China, Colômbia, Grécia e República Islâmica do Irã. Estes países entenderam que um novo item deveria ser incluído na agenda do Subcomitê Jurídico sob o título "Discussão a respeito da conveniência e necessidade de elaboração de um projeto de convenção universal e abrangente sobre o Direito Espacial Internacional" 7 .

    A discussão no plenário da 43ª reunião do Copuos revelou grande interesse da maioria das delegação pelo problema. A maior parte delas concordou inteiramente com a idéia de que as formas e métodos atuais das atividades espaciais requerem uma reflexão adequada sobre o sistema vigente de Direito Espacial. Foi também enfatizado que o Copuos, com seu Subcomitê Jurídico, é o único fórum internacional com mandato para cumprir tarefa de tamanha magnitude e relevância.

    Para levar a iniciativa adiante e torná-la mais clara aos outros Estados membros, a China, a Colômbia e a Federação Russa apresentaram na 40ª reunião do Subcomitê Jurídico, em abril de 2001, nova minuta de trabalho ("working paper") sobre o problema, junto com a proposta de criação de um grupo de trabalho ad hoc informal, sem o encargo de chegar a uma conclusão, para examinar o projeto em detalhes 8 .

    Infelizmente, o Copuos não logrou, na ocasião, atingir consenso a respeito, apesar da maioria das delegações ter apoiado as propostas e, o que é mais importante, não ter havido nenhuma objeção bem fundamentada.

    Muito provavelmente, a atitude restritiva à iniciativa de desenvolver nova "Bíblia Espacial" surgiu do medo de alguns Estados de que este processo pudesse levar à revisão dos princípios básicos, que já haviam comprovado sua viabilidade.

    Há, naturalmente, certas salvaguardas para evitar esta situação. Em primeiro lugar, isto pode ser garantido pela regra do consenso, que permanecerá a pedra de toque do processo das futuras negociações. Em segundo lugar, a elas pode ser amplamente aplicado o procedimento de discussão em bloco ("package-based").

    Estes dois enfoques podem assegurar o método mais aceitável e eqüitativo de harmonizar os interesses dos Estados membros da futura convenção, sem infringir seus direitos soberanos, bem como suas prioridades nas atividades espaciais. Esta forma de agir pode garantir um exame integrado e minucioso de cada um dos aspectos da exploração e uso do espaço, tendo como resultado a produção de um texto bem equilibrado da convenção. Somente através de um processo assim, o conjunto completo das normas legais que regulam as atividades espaciais se tornará mais atrativo para todos os países. Para alcançar este objetivo, a comunidade internacional deve envolver, no processo de elaboração do tratado, o maior número possível de Estados, assegurando assim seu caráter universal.

    O desenvolvimento de um instrumento jurídico internacional de tal natureza e finalidade exigirá, sem dúvida, substancial empenho da comunidade mundial. Mas os benefícios prometidos pela criação de uma estrutura legal estável, reconhecida universalmente e confiável para as atividades espaciais sempre em evolução são muito valiosos, sejam quais forem os esforços que eles requeiram.

Referências:

Este artigo foi escrito especialmente para a Revista da SBDA, a convite nosso. Consideramos que a proposta da Federação Russa de nova convenção universal única destinada a abranger todo o Direito Espacial Internacional – necessário aos novos tempos da exploração e do uso do espaço exterior – precisa ser conhecida pelos juristas, pelas autoridades brasileiras do setor e pela opinião pública em geral. A tradução e as notas são do professor José Monserrat Filho.

*Professor catedrático de Direito Internacional do Instituto Estatal de Relações Internacionais, de Moscou

** Diplomata, membro do Setor Jurídico do Ministério de Assuntos Externos da Federação Russa              (Volta)

1 Tratado sobre os Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes, de 1967; Acordo sobre o Salvamento de Astronautas e Restituição de Astronautas e de Objetos Lançados ao Espaço Exterior, de 1968; Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais, de 1972; Convenção Relativa ao Registro de Objetos Lançados no Espaço Cósmico, de 1975; Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e em Outros Corpos Celestes, de 1979 (UN Doc. A/AC.105/572/Rev.2). Todos estes documentos estão publicado, em língua portuguesa, no livro "Direito Espacial – Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições legais em vigor", editado pela Agência Espacial Brasileira e a Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial, em setembro de 1997.             (Volta)

2 Declaração dos Princípios Jurídicos Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, de 1963; Princípios Reguladores do Uso pelos Estados de Satélites Artificiais da Terra para Transmissão Direta Internacional de Televisão, de 1982; Princípios sobre Sensoriamento Remoto, de 1986, Princípios Relativos ao Uso de Fontes de Energia Nuclear no Espaço Exterior, de 1992; e Declaração sobre a Cooperação Internacional na Exploração e Uso do Espaço Exterior em Benefício e no Interesse de todos os Estados, Levando em Especial Consideração as Necessidades dos Países em Desenvolvimento, de 1996 (UN Doc.A/AC.105/572/Rev.2). Todos estes documentos também estão publicado, em língua portuguesa, no livro "Direito Espacial – Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições legais em vigor", editado pela Agência Espacial Brasileira e a Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial, em setembro de 1997.              (Volta)

3 O Tratado do Espaço tem 97 Estados-Partes; O Acordo sobre o Salvamento de Astronautas, 88 Estados-Partes; A Convenção sobre Responsabilidade, 82 Estados-Partes; A Convenção de Registro, 44 Estados-Partes; e o Acordo da Lua, 10 Estados-Partes. São dados de 1º de abril de 2002. (UN Doc.A/AC.105/722/Amend.1)             (Volta)

4 Este Protocolo foi projetado para ser parte da Convenção sobre Propriedades Internacionais de Equipamentos Móveis, assinada em Cape Town, África do Sul, em 16 de novembro de 2001 (ver o texto da convenção no UM Doc. A/AC.105/C.2/2002/CRP.3).              (Volta)

5 A/AC.105/C.2/L.220             (Volta)

6 A/AC.105/L.225 and Corr.1              (Volta)

7 A/AC.105/L.228 with Adds.1 and 2             (Volta)

8 A/AC.105/C.2/L.226             (Volta)

 

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