Revista Brasileira de Direito Aeroespacial
O DIREITO DAS ATIVIDADES ESPACIAIS NO ANO 45 DA ERA ESPACIAL
José Monserrat Filho *
O Sputnik I, primeiro objeto espacial feito pelo homo sapiens, foi lançado pela então União Soviética em 4 de outubro de 1957. Além de provocar pânico nos EUA (The Russians are coming!!!), logo levantou sérias questões internacionais, inclusive legais: estaria ele invadindo o espaço aéreo dos países a que sobrevoava sem pedir licença, violando assim a Convenção de Chicago de 1944, que reconhece a soberania absoluta dos países sobre seu espaço aéreo? Ou apenas singrava novo espaço ainda não regulado? E seria esse novo espaço uma "terra de ninguém" (res nullius) aberta à conquista do primeiro país que lá chegasse, como acontecera com a Ásia e a América Latina?
Nenhum ramo do Direito respondia a essas perguntas, nem mesmo o Direito Aeronáutico, moldado na primeira metade do século xx para ordenar uma parte do espaço, o espaço aéreo, por onde se deslocavam os aparelhos mais pesados que o ar.
A outra parte do espaço, o espaço cósmico lugar de satélites movidos em órbitas, conduzidos só por foguetes e veículos capazes de vencer a força de gravidade da Terra exigia "um novíssimo Direito", como previu à época o prof. Haroldo Valladão, da então Universidade do Brasil. E a isso exatamente logo se dedicaram os Estados Unidos e a União Soviética, as grandes potências em franca guerra fria. A elas se juntaram duas dezenas de países, inclusive o Brasil, preocupados com a possibilidade de o espaço cósmico se tornar mais um estopim para uma guerra nuclear devastadora, que o mundo inteiro temia.
Assim nasceu o Direito Espacial, concebido de início para regular as novíssimas atividades espaciais e estabelecer formas de tratar o novíssimo meio, visando a "fins exclusivamente pacíficos". Não por acaso ele começou a ser elaborado por instância especial das Nações Unidas, batizado com um nome auto explicativo: Comitê para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (Copuos, na sigla em inglês).
Passado quase meio século, o Direito Espacial, à semelhança da Lua, tem um lado claro e outro escuro.
O lado que brilha é o dos tratados e instrumentos adotados. Nele sobressaem os princípios e normas básicas, em torno dos quais ainda hoje prevalece sólido consenso. Mas, tal qual a superfície lunar, ele também exibe muitas e imensas crateras. São as lacunas e imprecisões que nos anos 60 e 70 puderam passar tranqüilamente por inexpressivas e, portanto, desprezíveis, mas que agora se revelam cada vez maiores, mais incômodas, perturbadoras e insuportáveis. E, ao contrário da Lua, os buracos no Direito Espacial, pelos efeitos que causam e pelo senso crítico que despertam, como que clamam para serem preenchidos de algum modo e até com certa urgência.
O lado escuro, por sua vez, está pleno de problemas não resolvidos e com soluções sempre adiadas. Ele é formado por tudo o que parece maduro para ser feito, em matéria de regulamentação espacial; ou seja, por tudo o que muitos especialistas e muitos países consideram que deve ser feito mas que se defronta com obstáculos por enquanto intransponíveis para ser feito.
Apreciemos o lado claro. Os cinco tratados que hoje compõem as fontes principais do Direito Espacial foram negociados e aprovados a "velocidade cósmica", como já disse com orgulho. O primeiro e mais importante deles, o chamado "código do espaço", com os princípios básicos das atividades espaciais, aberto à assinatura dos países em janeiro de 1967, levou só três anos sendo discutido. Um ano depois, em 1968, conclui-se o acordo sobre salvamento e restituição de astronautas e devolução de objetos espaciais. Quatro anos bastaram para se firmar, em 1972, a difícil convenção sobre responsabilidade por danos causados por objetos espaciais. Em três anos preparou-se a convenção de registro de objetos lançados ao espaço, de 1975. E, em 1979, a Assembléia Geral da ONU aclamou, por unanimidade, o acordo que regula as atividades na Lua e em outros corpos celestes. Em 12 anos, portanto, lançaram-se os fundamentos do Direito Espacial.
É um alicerce rico e até surpreendente, respeitado por todos os países e jamais postos em questão. Consta de alguns princípios capitais e hoje considerados inegociáveis, a começar pela "cláusula do bem comum", uma conquista extraordinária. Por ela, o estudo e o uso do espaço devem sempre ser realizados para o bem e no interesse de todos os países, seja qual for o nível de seu desenvolvimento econômico e científico, como "incumbência de toda a humanidade". Isso significa que os países legisladores foram humanistas, sensatos e previdentes o bastante para instituir uma pauta basilar de avaliação de toda e qualquer atividade espacial o critério do bem comum. Ele equipa os países, as organizações internacionais e a opinião pública com um referencial virtuoso ou seja, não egoísta, nem pragmático, nem medíocre para julgar com grandeza e profundidade o que se faz concretamente no espaço. Este princípio, curiosamente, foi adotado em plena guerra fria, quando a própria vida na Terra estava ameaçada pelos maiores arsenais de destruição em massa jamais vistos na história humana.
Nesta mesma linha, decidiu- se também: 1) O espaço, a Lua e os outros corpos celestes não podem ser apropriados "por proclamação de soberania, por uso ou ocupação , nem por qualquer outro meio"; e 2) Podem ser pesquisados e utilizados livremente por todos os países "sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o Direito Internacional". Com isso, tornou-se ilegal qualquer idéia de "colonizar" o espaço e os corpos celestes, como se viu no passado em vastas regiões do nosso planeta. Além disso, a Lua, como a Antártida pelo Tratado de 1959, foi totalmente desmilitarizada. Proibiram-se ali bases, manobras ou experiências militares.
Acertou-se ainda que os Estados respondem internacionalmente pelas atividades espaciais de suas entidades, públicas e privadas. E que as privadas devem ser autorizadas e controladas continuamente pelo respectivo Estado. E mais: Cada Estado responde pelos danos causados por objetos espaciais, se tiver realizado ou mandado realizar o lançamento de tais objetos ou se tal lançamento tiver sido feito de seu território ou de suas instalações. Tudo isso atribui aos Estados e derivadamente às suas organizações internacionais, o mais alto grau de responsabilidade pelo que se faz no espaço, o que é essencial para o reconhecimento e a competente defesa do interesse público global (o bem e o interesse de todos os países) no processo atual de intensa comercialização e privatização das atividades espaciais. Esse processo pode ser saudável ou perverso, conforme os limites e incentivos legais criados e aplicados pelos Estados a que for submetido.
Toda esta estrutura clarividente do lado claro do Direito Espacial, aqui mal resumida, não bastou, porém, para atrair o apoio maciço dos países, mais de 180 no mundo de hoje. Só sete deles ratificaram os cinco tratados espaciais. E apenas 38 ratificaram os quatro primeiros. O de salvamento tem 88 ratificações e 25 assinaturas. O de responsabilidade, respectivamente 82 e 26. O de registro, 44 e 4. O da Lua, 10 e cinco. O tratado-base, sobre os princípios, 98 e 26. Não é à toa que o Copuos há vários anos de debate as razões do relativo baixo índice de adesões e fórmulas para superar o problema. Ainda sem resultados expressivos.
As boas raízes do Direito Espacial também não podem ocultar suas lacunas (crateras) cada vez mais ostensivas. Entre elas desponta a falta de definição de algum de seus conceitos centrais. O que é um objeto espacial? Quais são as suas peculiaridades, variedades e diferenças? O entulho que resta de foguetes, sondas, estações, naves e satélites é objeto espacial? O que é lixo espacial? O que é poluir o espaço, ato, em princípio, interditado? O que é atividade espacial? Onde, quando e como ela começa e termina? O que é espaço cósmico ou exterior? Por onde passa a linha divisória entre o espaço aéreo , sujeito à soberania dos Estados subjacentes, e o espaço exterior, que não pode estar sujeito a nenhuma soberania? Se toda órbita é parte integrante do espaço exterior e, portanto, inapropriável, pode uma posição orbital ser patenteada junto com o satélite criado para nela se mover? E leiloada às empresas nacionais do país ao qual esta consignada para uso temporal? E leiloada internacionalmente? Essas e várias outras questões ainda não têm respostas claras e adequadas no Direito Espacial, apesar das conquistas alcançadas em apenas 45 anos da nova era. Acrescente-se aqui as crateras abertas pela falta de convenções amplas e abrangentes, regulando atividades espaciais de suma relevância para todos os países, como sensoriamento remoto da Terra por satélite, o uso de fontes de energia nuclear no espaço exterior e a cooperação internacional espacial "em benefício e no interesse de todos os Estados, levando em especial consideração as necessidades dos países em desenvolvimento". Esses assuntos já foram objetos de resoluções da Assembléia Geral das Nações Unidas, que, como se sabe, não são obrigatórias, mas que tiveram valioso significado a seu tempo. Hoje, são o que se costuma chamar de "Soft Law", um "direito suave", superficial, vago, apenas indicativo, sem detalhamentos, que não adota compromissos firmes e inquestionáveis. É a opção cada vez mais preferida das grandes potências, interessadas em manter as mãos livres e regular questões internacionais por meio de leis nacionais, suas. Daí o crescente apoio da comunidade mundial à idéia de transformar estas resoluções em tratados capazes não só de atualizá-las mas também de enfrentar, com lucidez e espírito público, os novos e complexos desafios políticos e tecnológicos do presente e do futuro, ora chegando a um ritmo cada vez mais vertiginoso.
Na dianteira deste anseio parece estar a proposta já apresentada pela Rússia, Colômbia e Grécia, com o apoio de muitos outros países, no subcomitê jurídico do Copuos para que se comece a discutir a elaboração de uma convenção universal, única e abrangente sobre Direito Espacial, a exemplo do que se fez para construir o novo Direito do Mar, através da grande Convenção de 1982. O novo Direito Espacial preservaria os princípios básicos em torno dos quais há pleno consenso e trataria de erguer um edifício amplo, sólido, coerente e de larga vista para o horizonte, preenchendo os vazios de hoje e, ao mesmo tempo, criando um clima de paz, segurança, previsibilidade e garantias efetivas para o mais pujante desenvolvimento das atividades espaciais em benefício de toda a humanidade.
Por fim, o lado escuro do Direito Espacial hoje: a sistemática e inegociável oposição dos EUA e de algumas outras potências a que se abra nova e rica fase de produção legislativa na história da regulamentação internacional das atividades espaciais. Esse trabalho, requerido pela própria realidade do mundo atual, está, de fato, bloqueado, como revelam as reuniões do Subcomitê Jurídico do Copuos nos últimos anos. E as razões alegadas para essa obscura conduta, despida da grandeza humana que o tema e a época impõem, obedecem a interesses nacionais e empresariais, por demais estreitos e egoístas. Ao mesmo tempo, paira no espaço o perigo de sua militarização total, como a instalação de armas em órbita, como jamais ocorreu nestes 45 anos, e a conversão do próprio espaço em teatro de guerra, o que seguramente mudará toda a lógica exclusivamente pacífica que os fundadores do Direito Espacial pretendiam assegurar para a novíssima dimensão da aventura humana no Universo.
Definitivamente, não é um bom começo para aquele que já foi anunciado como "o milênio do espaço".
* Jornalista, editor do "Jornal da Ciência" e do " JC e- mail", professor de Direito Espacial, vice- presidente da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), membro da diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial da Federação Internacional de Astronáutica, e membro da International Law Association (ILA). (Volta)
1 Tratado sobre os Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Exterior, inclusive a Lua e demais Corpos Celestes, aprovado pela Assembléia Geral da ONU em 19 de dezembro de 1966, aberto à assinatura em 27 de janeiro de 1967. Países depositários: Rússia, Reino Unido e EUA. 97 ratificações (inclusive a do Brasil) e 27 assinaturas; Acordo sobre salvamento de astronautas e Restituição de Astronautas e Objetos lançados ao Espaço Cósmico, aprovado pela Assembléia Geral da ONU em 19 de dezembro de 1967, aberto à assinatura em 22 de abril de 1968, em vigor desde 3 de dezembro de 1968. Países depositários: Rússia, Reino Unido, EUA. 88 ratificações (inclusive a do Brasil) e 25 assinaturas; Convenção sobre responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 29 de novembro de 1971, aberta à assinatura em 29 de março de 1972, em vigor desde 1º de setembro de 1972. Países depositários: Rússia, Reino Unido, EUA. 82 ratificações (inclusive a do Brasil) e 26 assinaturas; Convenção sobre registro de Objetos lançados ao Espaço Cósmico, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 12 de novembro de 1974, aberta à assinatura em 14 de janeiro de 1975, em vigor desde 15 de setembro de 1976. Depositário: Secretaria- geral da ONU; 44 ratificações e 4 assinaturas. Brasil não assinou; Acordo sobre as Atividades dos Estados na Lua e nos Corpos, aprovado pela Assembléia geral da ONU em 5 de dezembro de 1979, aberto à assinatura em 18 de dezembro de 1979, em vigor desde 11 de julho de 1984. Depositário: Secretaria- Geral da ONU. Tem 10 ratificações (Austrália, Áustria, Chile, Filipinas, Marrocos, México, Países Baixos, Paquistão, Kacaquistão e Uruguai) e 5 assinaturas (França, Guatemala, Índia, Perú e Romênia).
2 Declaração dos Princípios Jurídicos Reguladores das Atividades Espaciais dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, de 1963; Princípios Reguladores do Uso pelos Estados de Satélites Artificiais da Terra para Transmissão Direta Internacional de Televisão, de 1982; Princípios sobre Sensoriamento Remoto, de 1986; Princípios sobre o Uso de Fontes de Energia Nuclear no Espaço Exterior, de 1992; Declaração sobre a Cooperação Internacional na Exploração e Uso do Espaço Exterior em Benefício e no Interesse de todos os Estados, levando em Especial Consideração as necessidades dos países em Desenvolvimento, de 1996.