Revista Brasileira de Direito Aeroespacial
Agressão no espaço exterior
José Monserrat Filho *
"Mal usada, a tecnologia espacial pode levar à exploração descontrolada da natureza além de sua capacidade de recuperação, ao empobrecimento das sociedades vulneráveis por seus escassos recursos, ao aumento da desigualdade entre as nações, à ampliação da divisão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, à rápida escalada da tensão internacional e da destruição global." 1
"Dominar o inimigo sem o combater, isso, sim, é o cúmulo da habilidade." 2
Este trabalho procura responder a cinco perguntas que parecem essenciais para entender o projeto de militarização total do espaço exterior (a ponto de transformá-lo em teatro de guerra) proposto pelo atual governo dos EUA e para vislumbrar possíveis caminhos políticos e jurídicos capazes de enfrentá-lo.
1) Por que pensar em agressão no espaço exterior, hoje?
Este não é um mero exercício de futurologia. O mundo está, de fato, ante um perigo potencial de gravíssimas implicações globais que precisa ser estudado com a necessária antecipação para haver chance de prevenir seus efeitos seguramente desastrosos.
Não se trata apenas de ameaça de agressão no espaço tomada em separado. Trata-se, sobretudo, dos efeitos lógicos da mobilização atual visando a militarização total do espaço, com o emprego da força armada da terra em direção ao espaço, do espaço em direção à terra e no próprio espaço, o que pode incluir atos de agressão.
Nunca houve violência militar no espaço. Em 44 anos da Era Espacial, é certo, o espaço tem sido usado, em escala crescente, como ponto de apoio cada vez mais importante às forças armadas e suas operações bélicas na terra, no ar e no mar. Exemplos recentes e eloqüentes são as guerras do Golfo e da Bósnia, em que as mais modernas técnicas de navegação, comando, precisão de tiro e telecomunicações por satélite foram testadas e empregadas.
"Não há dúvida de que o espaço tem sido militarizado. As Forças Armadas dos EUA teriam enorme dificuldade de efetuar suas missões militares, hoje, se não pudessem ter acesso a seus satélites de guiamento, comunicação e reconhecimento", observa John M. Logsdon, diretor do Instituto de Política Espacial da Universidade George Washington, EUA. 3
Na verdade, os estrategistas militares começaram a refletir sobre o valor bélico do espaço e a imaginar combates orbitais ainda antes do lançamento do primeiro satélite feito pelo homem, o Sputnik I, em 4 de outubro de 1957. Atualmente, eles estão mais excitados e inspirados do que nunca, graças aos ambiciosos planos do Governo de George W. Bush de renovação completa das Forças Armadas dos EUA e instalação de amplo sistema de defesa antimíssil. 4
Até hoje, porém, não houve um único ato de agressão naquelas alturas. Nenhum satélite ou qualquer outro objeto espacial de um país foi abatido pelas forças de outro país, nem mesmo por acidente. As grandes potências, embora desafiantes e afiadas ao longo dos anos de Guerra Fria, não se atreveram a um enfrentamento espacial.5
Findo o duelo leste-oeste, supunha-se eliminada para sempre a possibilidade de conversão do espaço em campo de batalha.
Passados pouco mais de dez anos da queda do Muro de Berlim, o fim emblemático e promissor da era do confronto, o mundo volta a assistir a forte empenho oficial para a instalação de armas no espaço.
Até hoje, explica John Logsdon, "os sistemas militares no espaço têm sido usados exclusivamente como amplificadores de força, tornando mais efetivas as projeções de força no ar, no mar e em terra. O problema agora é ir ou não além desses usos militares do espaço, chegando à colocação de armas no espaço: o estacionamento ali de sistemas que podem atacar objetivos localizados na Terra, no ar ou no próprio espaço. Possivelmente, o espaço já está, em parte, tomado por armas. O uso de sinais dos satélites do Sistema de Posicionamento Global (Global Positioning System GPS) para dirigir bombas com precisão até seus alvos assemelha-se à função da alça de mira de um rifle. Mas ainda não há os equivalentes espaciais às balas que efetivamente destróem ou danificam o alvo."
Assim, o que está em pauta em nossos dias e nos próximos anos é se o espaço será, ou não, transformado, como já o foram a terra, o mar e o ar, em teatro de todas as formas de ações militares, inclusive do emprego de armas.
O atual Governo dos EUA já tem posição bem clara a respeito. Proclamando a vulnerabilidade de sua rede de satélites, que considera vital à segurança e à economia do país, a administração norte-americana decidiu criar um projeto especial para defender seu patrimônio orbital, garantindo o controle, a superioridade e o "domínio militar do espaço", como extensão necessária de sua atual hegemonia global.
A premissa é de que os EUA jamais dependeram tanto do espaço como agora. Se hoje há cerca de 600 satélites ativos em órbitas da Terra, em 2010, haverá 2 mil, estima o Comando Espacial dos EUA. Este aumento exponencial se deve a projetos civis e comerciais, sobretudo na área de telecomunicações. Desde 1996, as receitas dos empreendimentos comerciais privados no espaço são maiores do que os investimentos espaciais dos governos e a diferença entre eles segue crescendo. Só o Sistema Global de Posicionamento (Global Positioning System) deve gerar a receita anual de US$ 16 bilhões a partir de 2003. Em 2000, os lucros da indústria espacial chegaram a US$ 125 bilhões. Em 2005, os ingressos das empresas de telecomunicação poderão atingir US$ 1.2 trilhões. E em 2010, os investimentos acumulados dos EUA em atividades espaciais poderão alcançar entre US$ 500 bilhões e US$ 600 bilhões, o que eqüivale ao total dos investimentos atuais dos EUA na Europa. 6
"A relativa dependência dos EUA com relação ao espaço torna os seus sistemas espaciais alvos potencialmente atrativos", afirma o relatório divulgado em 11 de janeiro de 2001 pela "Comissão para Avaliar a Organização e a Administração da Segurança Nacional dos EUA" 7, designada pelo Congresso norte-americano. Esta é a "Comissão Rumsfeld", presidida por Donald Rumsfeld, que logo a seguir assumiria a Secretaria de Defesa do Governo de George W. Bush, anunciando a reforma de todo o sistema militar do país. 8
A Comissão Rumsfeld entende que "nações hostis aos EUA possuem, ou podem adquirir no mercado global, os meios necessários para excluir, desligar ou destruir os sistemas espaciais dos EUA, atacando satélites no espaço, linhas de comunicações da ou para a Terra ou as estações terrestres que comandam os satélites e processam suas informações".
Pressupondo a guerra espacial como "uma certeza virtual" e avaliando que "um ataque a elementos dos sistemas espaciais dos EUA durante uma crise ou conflito não pode ser visto como um ato improvável", a Comissão Rumsfeld enfatiza que "se os EUA devem evitar um Pearl Harbor espacial, precisam considerar seriamente a possibilidade de um ataque aos sistemas espaciais norte-americanos". E impele as lideranças nacionais a reduzir a vulnerabilidade do país, desenvolvendo capacidades espaciais superiores, inclusive a de "impedir o uso hostil do espaço contra os interesses dos EUA". Para tanto, frisa ser crucial criar um "poder de projeção no, do e através do espaço". É uma clara indicação para o desenvolvimento, o teste e a instalação de armas anti-satélite (Asats), com base no espaço e/ou na Terra.
Ao mesmo tempo, a Comissão Rumsfeld trata de minimizar as implicações jurídico-internacionais de suas propostas. Ela sustenta que "não há proibição, pelo Direito Internacional, de colocação ou de uso de armas no espaço, de emprego da força na Terra a partir do espaço ou de condução de operações militares no e através do espaço".
E "não há meios de fazer com que esta proibição seja verificável ou aplicável", completou um conhecido teórico da segurança nacional em Washington. 9
Assim, o Governo dos EUA busca sustentar o ponto de vista legal de que tem todo o direito de adotar, unilateralmente, suas próprias medidas de segurança, bem como de assegurar o exercício de seu "poder espacial" e sua posição de "domínio do espaço".
"O que é proposto como meio de diminuir a vulnerabilidade dos EUA no espaço, simultaneamente ao aumento do aporte de bens espaciais ao poderio militar dos EUA, é o controle do espaço, reconhece John Logsdon. Ele recorda que essa concepção está definida no Plano de Longo Alcance do Comando Espacial dos EUA (US Space Command), responsável por todas as operações dos sistemas militares espaciais do país. Ela consiste na "capacidade de garantir o acesso ininterrupto ao espaço pelas forças dos EUA e de nossos aliados, bem como a liberdade de operar no meio espacial, e de negar aos outros o uso do espaço, se necessário". 10
Isso é possível? Parece que não, pois, como argumenta John Logsdon, "num mundo em que muitos países estão desenvolvendo, pelo menos, capacidades espaciais rudimentares ou têm acesso a elas no mercado comercial, é improvável que os EUA consigam assumir o controle total do espaço".
Se o plano é pouco viável, lícito é que não tem a menor chance de ser. Como aceitar, legalmente, que um país assuma a competência de juiz e de polícia com o direito auto-outorgado de julgar e ao mesmo tempo punir e reprimir quem pode ou não ter acesso ao espaço? Quantos países apóiam a tese do Secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, de que "a segurança e a estabilidade proporcionadas pelas Forças Armadas dos EUA são a base essencial (the critical underpinning) da paz e da prosperidade no mundo"? 11
Os EUA, ironicamente, podem ser as maiores vítimas de seu próprio plano pela mesma razão alegada para criá-lo: eles dependem dos satélites de telecomunicações e de transmissões de dados mais do que qualquer outro país. Com o simples clima de tensão e ansiedade bélica, mesmo não havendo ainda qualquer conflito concreto ou sequer ameaça disso, o seguro de todos os objetos espaciais deve encarecer consideravelmente, desestimulando os investimentos, onerando os negócios, prejudicando toda a indústria. 12 Note-se que as empresas de telecomunicações por satélite não têm se interessado em solicitar proteção militar para seu patrimônio orbital bilionário.
Em maio de 1998, o satélite de telecomunicações Galaxy IV sofreu uma pane e "apagou" em sua maior parte. Resultado: 80% de suas mensagens pager sumiram, afetando 37 milhões de usuários; emissoras de rádio e televisão saíram do ar; postos de gasolina e lojas comerciais perderam o controle das vendas feitas com cartão de crédito. 13 Os prejuízos foram vultosos, mas houve um ganho inestimável: o mundo já tem uma idéia, embora pálida, dos efeitos de uma guerra de aniquilação de satélites e a lição de que o mais sensato é impedir da forma mais segura possível o seu desenlace.
O caso exemplar do Galaxy IV também levou John Logsdon a alertar: "Se o Sistema de Posicionamento Global dos EUA (GPS) sofresse uma grande falha, desligaria em todo o mundo serviços de bombeiros, ambulâncias de pronto socorro, ações de polícia; afetaria o sistema bancário e financeiro global; interromperia a distribuição de energia elétrica; e, no futuro, ameaçaria o controle do tráfico aéreo."
Tudo isso vem gerando profundas preocupações, inclusive dentro dos EUA. Em seu recente artigo "Perdido no Espaço No rumo enganoso das armas anti-satélite", Michael Krepon alinha, entre as possíveis repercussões do projeto, as seguintes: nova corrida para instalação de armas no espaço, mais distensões na relação dos EUA com seus aliados e enfraquecimento dos tratados de não-proliferação. 14 John Logsdon, por sua vez, propõe: "O que é preciso agora, antes que o país afunde no caminho escorregadio de tomar medidas para adquirir o controle do espaço pelo desenvolvimento de armas espaciais, é uma discussão amplamente fundamentada, tanto no plano interno quanto no internacional, sobre as implicações desta decisão."
Eis algumas questões centrais a serem debatidas:
- Será essa a melhor maneira de afastar o perigo de agressão em órbita e de assegurar a paz e a segurança para todos os países e para toda a humanidade?
- Qual será o impacto sobre a estabilidade estratégica, o quadro político global e as normas internacionais se os EUA conquistarem, de fato, a posição de vantagem militar decisiva no espaço?
- Como conciliar o controle espacial por parte de um país com o direito dos demais à exploração e ao uso do espaço para fins pacíficos?
Há bons motivos, portanto, para uma análise jurídica dos possíveis atos de agressão no espaço, hoje, quando as atividades espaciais de pesquisa e de serviços já se tornaram indispensáveis à vida cotidiana e ao desenvolvimento de todos os povos.
2) Pode haver, de fato, um "Pearl Harbor espacial?"
A expressão "Pearl Harbor Espacial", tudo indica, foi cunhada para produzir impacto emocional sobre a população mais idosa dos EUA. Ela rememora o célebre ataque de surpresa desferido pelo Japão, em 1º de dezembro de 1941, que destruiu toda a frota de guerra norte-americana estacionada na mais importante base naval do Havaí, no Oceano Pacífico.
O Pearl Harbor de agora, para a Comissão Rumsfeld, seria não menos devastador: aniquilaria os satélites norte-americanos, gerando o caos e prejuízos inestimáveis à economia e à vida normal do país.
Será que essa hipótese aterrorizante pode ser levada a sério? Na verdade, é difícil, senão impossível, imaginar um Pearl Harbor espacial. A comparação entre um ataque a satélites dos EUA e o ataque aéreo a Pearl Harbor não resiste à menor análise.
No início dos anos 40, uma guerra mundial, desencadeada pelas forças do nazismo e do fascismo, avançava avassaladora pela Europa, Ásia e norte da África, ameaçando conquistas democráticas históricas. Hoje, o quadro geral das forças econômicas, políticas e estratégicas no mundo é totalmente distinto. O próprio Secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, afirma que "neste momento, estamos gozando os benefícios de uma expansão econômica global sem precedentes, impulsionada pelas tecnologias da informação, pelos empresários da inovação, bem como pela difusão da democracia e das economias de livre mercado". 15
Além disso, o grau de surpresa e a dimensão do ataque a Pearl Harbor não teriam a menor chance de se repetir agora. As sofisticadas redes de radar, observação, rastreamento, reconhecimento e alarme mantidas sobretudo pelos EUA seguramente não permitiriam nada semelhante.
Mas este não é o único exagero na história. Há também a notória tendência de superestimar o perigo que representaria para os EUA o futuro poderio militar de países como a Coréia do Norte, o Iraque e o Irã, de onde partiriam os ataques aos satélites norte-americanos. Basta uma cifra para reduzir tal ameaça à sua real dimensão: a soma do produto interno bruto (PIB) desses países não atinge os US$ 343,5 bilhões previstos no orçamento militar dos EUA para o ano fiscal de 2002. 16
Argumentos aparentemente tão inconsistentes quanto esses não eliminam de todo, no entanto, as ameaças de agressão no espaço. O uso da força pode partir de quem ocupa nele a posição dominante e se sente ungido e forte o bastante para apontar, por critérios próprios, os "países hostis" a seus interesses que não devem ter acesso ao espaço.
O domínio militar e o controle do espaço podem criar uma situação absolutamente inaceitável de privilégio e exceção para um país em detrimento de todos os demais. Não por acaso, Rússia e China, em especial, rejeitam com insistência o plano dos EUA. Eles se consideram os alvos principais desse unilateralismo norte-americano.
O perigo, pois, não é um "Pearl Harbor espacial", mas um mundo muito mais inseguro para todos.
3) Que
armas tem o Direito Internacional contemporâneo
para enfrentar atos de agressão no espaço?
Os princípios e normas internacionais vigentes sobre matéria tão relevante são extremamente saudáveis e devem ser preservados, mas precisam ser aperfeiçoados e ampliados o quanto antes.
Na realidade, não há vácuo jurídico em relação ao "uso hostil do espaço contra os interesses dos EUA" ou de qualquer outro país.
O "uso hostil do espaço" tal como na terra, no mar ou no ar configura um uso ilícito da força ou ato de agressão, segundo as fontes centrais do Direito Internacional que regulam esta questão vital . Essas fontes são:
1) Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), de 26 de junho de 1945 17;
2) Resolução 2625 (XXV) da Assembléia Geral da ONU contendo a "Declaração Relativa aos Princípios do Direito Internacional Regendo as Relações Amistosas e Cooperação entre os Estados Conforme a Carta da ONU", de 24 de outubro de 1970 18; e
3) Resolução 3314 (XXIX) da Assembléia Geral da ONU sobre a Definição de Agressão, de 14 de dezembro de 1974. 19
O Artigo 2º, § 4, da Carta da ONU afirma o princípio considerado "o fundamento da ordem jurídica internacional" 20, segundo o qual os países "deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas". E o primeiro propósito da ONU, fixado no Artigo 1º da Carta, é exatamente o de "manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim, tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do Direito Internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz".
Desenvolvendo o princípio da proibição do uso ou ameaça de uso da força pelos Estados, a Declaração de 1970 assevera que o uso ou ameaça de uso da força é "violação do Direito Internacional e da Carta da ONU e nunca deverá ser empregado como meio de solucionar questões internacionais. Reconhece, igualmente, que "a guerra de agressão constitui crime contra a paz, que, em conformidade com o Direito Internacional, implica responsabilidade". Ou seja, o Estado que deflagra uma guerra de agressão deve responder por esse crime perante a comunidade internacional.
A Declaração também indica que "Os Estados têm o dever de se abster de atos de represália que impliquem o uso da força". As represálias, em verdade, nada têm a ver com o direito de legítima defesa. O Conselho de Segurança da ONU as condenou, em sua Resolução 188, de 9 de abril de 1964, como "incompatíveis com os propósitos e princípios da ONU". As resoluções do Conselho de Segurança da ONU, cabe lembrar, são obrigatórias.
A Resolução sobre a Definição de Agressão, por seu turno, enuncia, em seu Artigo 1º, que "agressão é o uso da força armada por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado e de maneira contrária à Carta da ONU". Aqui, muito apropriadamente, se incluiu o termo "soberania", completando os direitos e valores que podem ser atingidos por um ato de agressão.
O Artigo 2º dessa resolução reza que "o primeiro uso da força armada, em violação da Carta (da ONU), constitui evidência prima facie de um ato de agressão, embora o Conselho de Segurança (da ONU) possa concluir, de acordo com a Carta, que a determinação de que um ato de agressão foi cometido não se justifica à luz de outras circunstâncias relevantes, inclusive o fato de que os atos concernentes ou suas conseqüências não são suficientemente graves".
O Artigo 3º, por sua vez, arrola uma série de atos, que, apesar da declaração de guerra e embora sujeitos ainda à avaliação do Conselho de Segurança (Artigo 2º), "devem ser qualificados como atos de agressão". Entre eles, está "um ataque das forças armadas de um Estado às forças terrestres, marítimas ou aéreas, ou às frotas marítimas ou aéreas de outro Estado". Não há, pois, menção a um ataque no espaço exterior. Mas tal dispositivo, por analogia, pode ser estendido a um ataque espacial.
Todo este acervo jurídico se aplica ao espaço exterior. Assim dispõe o Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Exterior, inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes 21, de 27 de janeiro de 1967, pedra angular do direito espacial internacional, conhecido como "Tratado do Espaço".
Em seu Artigo 3º, este instrumento básico, hoje consagrado universalmente, determina que as atividades de exploração e uso do espaço exterior devem se efetuar "em conformidade com o Direito Internacional, inclusive a Carta da ONU, com a finalidade de manter a paz e a segurança internacionais e de favorecer a cooperação e a compreensão internacionais". Ações bélicas, defensivas ou ofensivas, são, evidentemente, formas de utilização do espaço. Logo, devem ser julgadas à luz desse dispositivo.
O Artigo 1º da Resolução sobre a Definição de Agressão, como vimos, reza que "agressão é o uso da força armada por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado". Como aplicar tal definição ao espaço exterior, se este espaço, como fixa o Artigo 2º do Tratado do Espaço, "não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem qualquer outro meio"?
De fato, em vista do princípio da não - apropriação do espaço, não há nem pode haver áreas ou porções do espaço exterior que um Estado tenha o direito de assumir como parte integrante de sua soberania, de sua integridade territorial ou de sua independência política. O espaço exterior não pertence a nenhum Estado em particular e pode "ser explorado e utilizado, livremente, por todos os Estados, sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o Direito Internacional", conforme dispõe o Artigo 1º do Tratado do Espaço.
Ocorre que, pelo Artigo 8º do mesmo Tratado, o Estado que lança e registra em seu nome um satélite ou qualquer outro objeto espacial conserva "sob sua jurisdição e controle o referido objeto e todo o pessoal do mesmo objeto". Ainda segundo o Artigo 8º, "os direitos de propriedade sobre os objetos lançados ao espaço exterior ( ), assim como seus elementos constitutivos, permanecerão inalteráveis, enquanto estes objetos ou elementos se encontrarem no espaço ", e, se "encontrados além dos limites" do Estado em cujo registro estão inscritos, "deverão ser restituídos a este Estado".
Isso significa que, em caso de ataque a um satélite em órbita, o objeto da agressão não é o território, é a propriedade, o bem de um Estado, o que em nada muda o caráter da agressão.
Tal consideração
vale também para satélites e outros objetos espaciais pertencentes a entidades
não governamentais (empresas privadas), pois estas, em virtude do Artigo 6º do
Tratado do Espaço, encontram-se sempre sob a responsabilidade, autorização e
vigilância contínua do respectivo Estado onde têm
sua sede.
O mesmo se pode dizer do agressor. Este será sempre um Estado (ou mais de um), pois a responsabilidade internacional por toda e qualquer atividade espacial, inclusive a realizada por entidades não governamentais, empresas e grupos privados ou organizações intergovernamentais, deve ser atribuída ao respectivo ou respectivos Estados, bem como aos Estados membros das referidas organizações.
No campo das atividades espaciais, a responsabilidade privada é normalmente secundária; a primeira e mais alta responsabilidade é sempre pública, dos Estados envolvidos. Com mais razão ainda, isso é verdade em caso de agressão, que afeta diretamente a segurança e a paz internacionais - os interesses supremos da comunidade de países e de toda a humanidade, segundo a letra e o espírito da Carta da ONU.
No espaço exterior, portanto, a Carta da ONU proíbe tanto atos de agressão quanto qualquer forma de uso ou ameaça de uso da força para solução de controvérsias.
No entanto, tal como na terra, no mar e no ar, também no espaço a força armada pode ser usada legalmente como reação a uma agressão ou ao uso indevido da força por outro país. São as chamadas contramedidas, de duas espécies perfeitamente delineadas: as de legítima defesa individual ou coletiva, adotadas pelo país ou pelos países agredidos, e as aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU, envolvendo o uso da força, para enfrentar a agressão consumada, restabelecendo a paz.
Esse sistema defensivo está fundado no Capítulo VII da Carta da ONU sobre a "Ação relativa à ameaça à paz, ruptura da paz e atos de agressão". Dois momentos aqui são sobremodo importantes para aplicação em conflitos armados no espaço:
1) O Conselho de Segurança é quem determina a existência ou não de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão e escolhe as medidas a serem tomadas para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais (Artigo 39);
2) O direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado a um país, poderá ser exercido só "até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais". E "as medidas tomadas ( ) no exercício desse direito de legítima defesa serão imediatamente comunicadas ao Conselho de Segurança e não deverão de modo algum atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais" (Artigo 51).
Isso significa que, pela ordem jurídica internacional vigente, ao se anunciar, por exemplo, um suposto ataque a satélites dos EUA, compete ao Conselho de Segurança, e não aos EUA, determinar a existência de ruptura da paz ou ato de agressão; os EUA, evidentemente, poderão exercer seu direito de defesa, mas apenas até que o Conselho adote as providências que julgar necessárias, no caso concreto, para rechaçar o agressor e recompor a paz e a segurança.
É certo que esse sistema, adotado ao final da 2ª Guerra Mundial pela coalizão precária de países que derrotaram a Alemanha Nazista e os países do Eixo, pouco ou nada contribuiu para a solução de conflitos terrestres, marítimos e aéreos, tanto durante quanto depois da Guerra Fria. A rigor, só funcionou em 1990, quando pela primeira vez os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança se puseram de acordo para condenar e rechaçar a invasão do Kuwait pelo Iraque.
Assim, como garantir que funcione com relação a conflitos espaciais, sobretudo considerando que, para atuar com a presteza e a eficácia que tais situações exigirão, a ONU e o Conselho de Segurança deverão dispor de meios técnicos e forças armadas especiais?
Na realidade, a comunidade mundial, hoje, não está equipada para responder através de mecanismos internacionais a atos de agressão no espaço e fazer prevalecer as normas em vigor. Esta, sem dúvida, é a maior deficiência atual nesta matéria, que, mais cedo ou mais tarde, terá de ser enfrentada.
Por outro lado, o uso da força no espaço já tem barreiras legais importantes, ainda que igualmente longe de serem suficientes.
Vetado está o emprego no espaço de armas de destruição em massa nucleares, químicas e biológicas. O Tratado do Espaço, em seu Artigo 4º, proíbe a instalação delas em órbitas da Terra, na Lua e nos demais corpos celestes. As armas nucleares também não podem ser testadas no espaço, por força do Tratado de Proscrição das Experiências com Armas Nucleares na Atmosfera, no Espaço Cósmico e sob a Água, de 1963 22 Tampouco se pode introduzir modificações intencionais nos processos naturais do meio ambiente, na Terra como no espaço exterior, para fins militares, como reza a Convenção sobre a Proibição de Quaisquer Técnicas de Modificação do Meio Ambiente para Fins Militares e outros Fins Hostis, de 1977. 23
No epicentro dos
debates em torno da colocação de armas no espaço está hoje o Tratado sobre a
Limitação dos Sistemas de Defesa Antimíssil, firmado entre os EUA e a União
Soviética em maio de 1972, que, no Artigo 5º, proíbe o desenvolvimento, o
teste e a instalação de tais sistemas ou seus componentes
com base no mar, no ar, no espaço exterior ou com base móvel em solo. 24
Conhecido como o "Tratado ABM" (Anti-Ballistic Missile Treaty), é o maior obstáculo legal à entrada no espaço de armas destinadas a interceptar mísseis balísticos. Nos anos 80, em especial, quando o Governo dos EUA, sob a presidência de Ronald Reagan, procurava viabilizar política e juridicamente o seu projeto "Iniciativa de Defesa Estratégica" (o célebre "Guerra nas Estrelas"), que tinha como objetivo a criação de um grande sistema nacional de defesa antimíssil, houve várias tentativas de reinterpretar as principais normas do Tratado ABM. Todas as investidas esbarraram na forma de sua redação: em vez de indicar tudo o que é permitido, como em geral fazem os acordos de limitação de armamentos, ele proíbe tudo e, a seguir, expõe as exceções. Isso exclui in limine as novas abordagens e tecnologias, que poderiam mudar o sentido original do tratado. 25 E explica porque o atual Governo dos EUA, também empenhado em construir um sistema de defesa antimíssil, já anunciou que pretende renunciar ao Tratado ABM.
Outro dispositivo valioso do Tratado ABM, expresso no Artigo 12º, é o que veta a interferência no funcionamento normal dos satélites de reconhecimento, tratados como "meios técnicos nacionais de controle" e verificação do cumprimento dos compromissos internacionais.
Finalmente, cabe mencionar a existência de um acordo informal entre as principais potências espaciais para a não instalação no espaço de armas anti-satélite, conforme salienta John Logsdon.
Todos estes dispositivos, porém, não bastam para se fazer frente a possíveis atos de agressão no espaço. Tem-se como permitido o uso de armas não classificadas como de destruição em massa, por não estarem proibidas. Entre elas, destacam-se as armas anti-satélite (Asat), concebidas ainda nos anos 50, que começaram a ser criadas e testadas nos anos 70. 26
Como pôr tais artefatos fora da lei? Eis um dos grandes desafios políticos e jurídicos de hoje, quando tanto se enfatiza, interessada ou desinteressadamente, o perigo de agressões espaciais.
4) Como proibir as armas anti-satélite?
A comunidade internacional começou a pensar neste assunto há mais de 20 anos. Em meio a temores generalizados, as negociações sobre armas anti-satélite entre EUA e URSS tiveram início em 1978. Mas foram rompidas pela Casa Branca já em 1979. O fato causou inquietações em toda parte.
Em 1978, a Assembléia Geral da ONU, na resolução final de sua 1ª Sessão Especial sobre Desarmamento, já recomendara que, "para evitar a corrida armamentista no espaço", era preciso tomar "novas iniciativas" e efetuar "as negociações correspondentes, de acordo com o espírito do Tratado do Espaço de 1967".
Coerentemente, em dezembro de 1981, a Assembléia Geral aprovou duas resoluções sobre o tema. A primeira, intitulada "Prevenção de uma corrida armamentista no espaço exterior", inaugurou uma série de resoluções que se repetem anualmente até hoje. Ela pedia ao Comitê de Desarmamento encarregado de examinar os problemas do controle de armamento e desarmamento, inclusive no espaço exterior que considerasse a negociação de acordos efetivos e controláveis para prevenir uma corrida armamentista no espaço, levando em conta as propostas existentes e futuras neste sentido. Ao mesmo tempo, considerava prioritária "a questão da negociação de um acordo efetivo e controlável para proibir os sistemas anti-satélite". Esta resolução foi aprovada por 130 votos a favor, nenhum contra e 13 abstenções. A outra resolução "Sobre a conclusão de um tratado sobre a proibição de instalação de qualquer tipo de armas no espaço exterior" foi aprovada por 124 votos a favor, nenhum contra e 21 abstenções. 27
A 2ª Conferência da ONU sobre a Exploração e Uso do Espaço Exterior (UNISPACE II), reunida em 1982, também se manifestou sobre o perigo da militarização do espaço, embora o tema não estivesse em sua pauta. Ela instou todos os países, em particular as potências espaciais, "a contribuírem ativamente para a prevenção de uma corrida armamentista no espaço e a se absterem de qualquer ação contrária a esse objetivo". 28
Vale notar que a questão da "Prevenção da corrida armamentista no espaço exterior" foi pela primeira vez inserida na agenda do Comitê de Desarmamento da ONU justamente em 1982. 29
Por essa época, três projetos de acordos internacionais a respeito foram apresentados nos quadros da ONU:
1. "Protocolo Adicional" ao Tratado do Espaço, encaminhado pela Itália ainda em 1979, para "prevenir uma corrida armamentista no espaço exterior", propondo nova redação para o Artigo 4º, a fim de que interditasse também, além das armas de destruição em massa, "qualquer outro artefato criado com propósitos ofensivos"; 30
2. Projeto de tratado sobre a proibição de instalação no espaço exterior de qualquer tipo de armas, apresentado pela URSS em 1981, comprometendo as partes a não colocarem em órbita da Terra objetos com qualquer tipo de armas a bordo e não instalarem, de modo algum, qualquer tipo de armas nos corpos celestes ou no espaço exterior, inclusive em veículos tripulados reutilizáveis (ônibus espaciais), tanto nos existentes quanto em modelos que surgissem no futuro. Este projeto também fixava a obrigação de não destruir, não danificar, não perturbar o funcionamento normal dos objetos espaciais dos outros países, nem desviá-los de sua trajetória de vôo, desde que lançados de acordo com o Direito Internacional, incluída a Carta da ONU; 31
3. O projeto de tratado proibindo o uso da força no espaço exterior e do espaço contra a Terra, proposto em 1983 também pela URSS. Segundo o governo de Moscou, a proposta surgia como reação aos novos planos de criação e instalação de diferentes sistemas de armas espaciais, capazes de atingir alvos no espaço e na Terra. Este texto era bem mais abrangente do que o anterior. Seu Artigo 1º proibia o recurso ao uso ou ameaça de uso da força no espaço, na atmosfera e na Terra, através do emprego, como meios de destruição, de objetos espaciais colocados em órbita terrestre, nos corpos celestes ou no espaço de qualquer outra forma. Proibia também o uso ou ameaça de uso da força contra objetos espaciais em órbita terrestre, nos corpos celestes ou no espaço de qualquer outra forma. O Artigo 2º alinhava uma série de determinações específicas: não instalar nem testar armas de base espacial; não utilizar objetos espaciais como meio de destruir qualquer alvo na Terra, na atmosfera ou no espaço exterior; não afetar ou prejudicar o funcionamento dos objetos espaciais de outros países; não testar nem criar novos sistemas anti-satélite; destruir todos os sistemas anti-satélite existentes; não usar nem testar espaçonaves tripuladas com propósitos militares, inclusive o de destruir satélites. 32
Todos estes projetos tiveram a glória de nascer em plena guerra fria e de se opor a seu rumo destrutivo. Foram por ela derrotados, mas não aniquilados. São referências valiosas para os debates de hoje, em situação talvez até mais desfavorável, sobre como conter e fazer retroceder o insidioso processo de militarização total do espaço, cortando pela raiz a possibilidade de agressão em órbitas da Terra.
5) Como
estabelecer amplas e sólidas garantias jurídicas de paz e segurança no
espaço para prevenir atos de agressão?
O tema não só não morreu, como está mais vivo que nunca. As preocupações e idéias de hoje são, mais ou menos, as mesmas de ontem. Só que maiores, mais urgentes, mais realistas, mais livres dos ditames, injunções e preconceitos ideológicos capazes de desconhecer interesses e valores de natureza global.
Uma mostra disso foi a Conferência Internacional para a Prevenção da Militarização do Espaço, promovida em Moscou, de 11 a 13 de abril passado, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, Agência Espacial e de Aviação da Rússia e Academia de Cosmonáutica Russa Tsiolkovski, com o apoio de outros ministérios russos, da Academia Russa de Ciências, da Federação Internacional de Astronáutica e da Academia Internacional de Astronáutica.
O governo russo, através de seu vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Gueorgui Mamedov, apresentou os elementos básicos para um acordo multilateral sobre o banimento das armas espaciais, que, em grande parte, nos lembram posições já bem conhecidas:
1. Uso do espaço em conformidade com o Direito Internacional e com o interesse da manutenção da paz e da segurança, bem como da promoção da cooperação internacional;
2. Obrigação de não colocar em órbita da Terra objetos com qualquer tipo de armas a bordo e de não instalar tais armas em corpos celestes ou no espaço de qualquer outra forma;
3. Obrigação de não recorrer ao uso ou ameaça de uso da força com relação aos objetos espaciais;
4. Estabelecimento de um mecanismo para monitorar a implementação deste acordo, com base na confiança e transparência nas atividades espaciais, incluindo a apresentação prévia de informações sobre objetos espaciais a serem lançados, inspeção dos locais de onde os objetos espaciais deverão ser lançados, procedimentos de consulta para resolver situações duvidosas e criação de um corpo internacional apropriado para implementar tais procedimentos.
É verdade que entre os representantes dos 105 países (inclusive o Brasil) presentes à conferência não estavam norte-americanos e britânicos. Mas os EUA estão ouvindo, cada vez mais, idéias similares em sua própria casa e na de seus aliados tradicionais, bem como em organismos regionais e internacionais.
Veja-se o que ocorreu na recente sessão do Comitê da ONU para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (COPUOS), realizada em Viena, Áustria, de 6 a 15 de julho último, que discutiu, em caráter prioritário, o tema "Formas e meios de manutenção do espaço exterior para fins pacíficos", atendendo à resolução 55/122, de 8 de dezembro de 2000, da Assembléia Geral da ONU. 33
Segundo o relatório oficial da reunião, algumas delegações advertiram que está se tornando cada vez mais óbvia a tendência para a colocação de armas no espaço e para a corrida armamentista espacial. Foi dito também que a instalação de armas no espaço poderá romper o equilíbrio estratégico global, intensificar a corrida armamentista na Terra, criar obstáculos para os regimes vigentes de controle de armamentos e de desarmamento, e minar a confiança mútua entre os países. Outra conseqüência apontada seria o aumento ainda maior das restrições ao livre fluxo de informações e de tecnologias restrições essas já crescentes em função de interesses comerciais e políticos. Um dos delegados sustentou que a forma mais direta e efetiva de manter o espaço para fins pacíficos é a conclusão de um ou mais acordos internacionais, proibindo os testes, a instalação e o uso de qualquer tipo de armas, sistemas de armas ou seus componentes no espaço; os testes, a instalação e o uso no solo, no mar e na atmosfera de qualquer tipo de armas, sistemas de armas ou componentes visando fazer a guerra no espaço e o uso de qualquer objeto lançado ao espaço com o propósito de fazer a guerra. O mesmo delegado defendeu a idéia de que o ponto da ordem do dia intitulado "Formas e meios de manutenção do espaço exterior para fins pacíficos" poderia, naturalmente, incluir a tarefa de criar um regime jurídico destinado a manter o espaço exterior para fins pacíficos. Outra delegação opinou, pelo contrário, que o COPUOS foi criado exclusivamente para promover a cooperação internacional no uso pacífico do espaço e que as questões de desarmamento do espaço são de competência do 1º Comitê da Assembléia Geral e da Conferência sobre Desarmamento. Outras delegações, no entanto, logo se colocaram a favor da tese de que o COPUOS é competente para examinar todos os problemas referentes ao uso pacífico do espaço, inclusive qualquer forma de militarização do espaço contrária ao Direito Internacional, expresso na Carta da ONU e no Tratado do Espaço de 1967. Para essas delegações, o exame do tema da prevenção de uma corrida armamentista no espaço pelo 1º Comitê da Assembléia Geral e pela Conferência sobre Desarmamento não deve excluir o COPUOS de também poder estudar a matéria. A propósito, algumas delegações defenderam a necessidade de um mecanismo de coordenação entre os trabalhos do COPUOS e da Conferência sobre Desarmamento. Houve ainda, neste sentido, quem propugnasse que o COPUOS, ao abordar as formas e meios para prevenir a militarização do espaço contrária ao Direito Internacional, não se limitasse aos pronunciamentos dos delegados, mas que incluísse também a adoção de propostas e ações concretas. Importa sublinhar, por fim, a recomendação final do COPUOS de que o assunto continue a ser considerado, em caráter prioritário, em sua próxima sessão, no ano 2002.
Parece clara a inclinação de muitas delegações do COPUOS, provavelmente a maioria de seus 63 países - membros, no sentido de assumir a questão da militarização no espaço. Ocorre que o órgão funciona pelo sistema do consenso e os EUA, como alguns de seus aliados, não revelam a menor disposição de aceitar a hipótese. Logo, é difícil vislumbrar avanços reais nesta matéria em futuro próximo.
Mas esse congelamento processual certamente não fará desaparecer a necessidade, que é crescente, de se criarem garantias políticas e jurídicas mais eficazes de paz e segurança no espaço, para prevenir atos de agressão e assegurar o desenvolvimento cada vez mais intenso das atividades espaciais nas melhores condições possíveis e em benefício de todos os países.
O que melhor atenderá a essa necessidade, o multilateralismo, a cooperação entre os países e a segurança coletiva ou o unilateralismo e a ação individual de cada país ou de pequenos grupos de países?
Se admitirmos o enfoque unilateral e o uso da força no espaço, mesmo como exercício do legítimo direito de defesa, teremos pela frente tarefas ainda mais complexas e talvez impossíveis, como regulamentar a condução de guerras espaciais. Isso incluiria o trabalho insano de definir os atos de agressão no espaço com seu caudal de especificidades a menos que aceitássemos resignados deixar essa definição a cargo de cada país ou da lei do mais forte.
Norberto Bobbio considera quatro tipos de relação entre guerra e direito: a guerra como meio de estabelecer (ou restabelecer) o direito, a guerra como objeto de regulamentação jurídica, a guerra como fonte do direito e a guerra como antítese do direito. 34
Não precisamos da guerra espacial para estabelecer o direito. Já dispomos de legislação internacional básica universalmente aceita, representada sobretudo pela Carta da ONU e Tratado do Espaço. Uma guerra espacial poderia simplesmente destruí-la.
A guerra espacial como fonte do direito criaria que tipo de direito? O mais democrático, o mais aceito por todos os países, independente do nível de desenvolvimento de cada um deles, ou o do mais forte e do mais próspero?
A guerra espacial, em princípio, poderia, sim, restabelecer um direito violado, rechaçar um agressor, mas provavelmente a um preço tão alto em perdas e danos, que não valeria a pena correr tal risco.
Nenhuma das experiências conhecidas de regulamentação de conflitos armados, seja no mar, no ar ou em terra, deu resultados que mereçam ser festejados. Por que haveria de ser diferente com a guerra espacial, na qual, sem a menor dúvida, se empregariam as soluções tecnológicas mais sofisticadas, velozes e destrutivas?
Tudo leva a crer que o mais adequado e correto é considerar a guerra espacial como antítese do direito. Ou seja, como negação de qualquer idéia de direito e justiça.
Vejamos o que o próprio Bobbio escreve sobre a guerra como antítese do direito: "Uma vez reconhecida a guerra como legibus soluta, isto é, para além e acima de qualquer possibilidade de controle jurídico, a guerra volta a ser uma força primigênia que, onde quer que apareça, derruba o reino do direito. Voltamos assim a uma representação tradicional, clássica, da guerra: inter arma silere leges (Entre as armas, a lei silencia). Intervém nesse ponto a concepção do direito como conjunto de regras ordenadas que têm por fim a paz: e a paz é a eliminação da guerra. Onde avança o reino do direito, cessa o estado de guerra: aliás, a vitória do direito consiste na gradual eliminação das relações de força desregulada nas quais consiste a guerra: e, portanto, por sua vez, o direito é a antítese da guerra."
Assim, não se trata tão somente de reprimir e punir os atos de agressão, e de regulamentar o uso da força no espaço. Trata-se, acima de tudo, de impedir, por todos os meios e com a participação ativa de toda a comunidade internacional, que no espaço se cometam agressões e se utilize a força armada, porque, seja qual for o caso, o resultado seria sempre deletério e irremediável.
Esta questão, de evidente caráter global, é tão relevante para a história da civilização humana, que caberia plenamente a convocação de uma Conferência das Nações Unidas para tratar especificamente da preservação da paz e da segurança no espaço.
Providência lógica e imprescindível, num primeiro momento, seria também aperfeiçoar o atual Conselho de Segurança da ONU para torná-lo capaz de exercer seu papel com relação aos atos de agressão, de ruptura da paz, de uso ou ameaça de uso da força no espaço, em prol do objetivo maior de defender a paz e a segurança internacionais, contando com o respeito, o reconhecimento e a confiança, senão de todos, da maioria absoluta dos países.
* Jornalista, jurista, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA) e membro da diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial da Federação Internacional de Astronáutica. (Volta)
1 In COMEST Sub-Commission on "The Ethics of Outer Space" Report, Unesco, Paris, November 2000, p. 64. (Volta)
2 Tzu, Sun, A Arte da Guerra, São Paulo: Editora Martin Claret, 2001, p. 39. (Volta)
3 Logsdon, John M., Just say wait to space power, Space Policy Institute, George Washington University, USA, 2001. (Volta)
4 Oberg, James, The heavens at war, New Scientist, 2/6/2001. (Volta)
5 "Uma corrida armamentista espacial, no verdadeiro sentido do termo, esteve surpreendentemente ausente do espaço", afirma Stares, Paul B., The Militarization of Space US Policy, 1945-1984, USA, New York: Cornell University Press, 1985, p. 20. (Volta)
6 Krepon, Michael, Lost in Space The Misguided Drive Towards Antisatellite Weapons, Foreign Affairs, May/June 2001, p. 6-7. (Volta)
7 Report of the Commission to Assess United States National Security Space Management and Organization, Executive Summary, Persuant to Public Law 106-65, January 11, 2001. (Volta)
8 Rumsfelds revolution, The Economist, 26/5/2001. (Volta)
9 Gaffney Frank, Implement Rumsfeld II, Space News, 5/2/2001. (Volta)
10 The Space Commands Long Range Plan. (Volta)
11 Rumsfeld, Donald H., Toward 21st-Century Deterrence, Wall Street Journal, June 27, 2001. (Volta)
12 Newhouse, John, The Missile Defense Debate, Foreign Affairs, July/August 2001, pp. 97-109. (Volta)
13 Krepon, Michael, idem ibid, p. 7. (Volta)
14 Krepon, Michael, idem ibid, p. 3. (Volta)
15 Rumsfeld, Donald H., Toward 21st - Century Deterrence, Wall Street Journal, June 27, 2001. (Volta)
16 Isaacs, John, Two steps forward, two steps back, Bulletin of the Atomic Scientists, July/August 2001, p. 20. (Volta)
17 Direito Público Internacional Tratados e Convenções, org. por Celso D. de Albuquerque Mello, Rio de Janeiro: Renovar, 1986, pp. 543-571; Direito e Relações Internacionais, textos coligidos e ordenados por Vicente Marotta Rangel, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 28-56. (Volta)
18 Basic Documents in International Law and World Order, selected and edited by Burns H. Weston, Richard A. Falk and Antony A. DAmato, USA: Publishing Co., 1980, pp. 75-81. O texto em espanhol deste documento pode ser lido em Carrilho Salcedo, Juan Antonio, Soberania del Estado y Derecho International, Madri, Espanha: Editorial Tecnos, 1976, pp. 414-422. (Volta)
19 Idem ibid, pp. 136-138. (Volta)
20 ONU, documento A/6955, § 37, citado por Trindade, Antônio Augusto Cançado, Princípios do Direito International Contemporâneo, Brasília: Editora UnB, 1981, p. 60. (Volta)
21 Direito Público Internacional Tratados e Convenções, org. por Celso D. de Albuquerque Mello, Rio de Janeiro: Renovar, 1986, pp. 535-540; Direito e Relações Internacionais, textos coligidos e ordenados por Vicente Marotta Rangel, S. Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 317-322. O "Tratado do Espaço" já foi assinado por 26 países e ratificado por 94, inclusive o Brasil, e hoje ele é considerado como aceito universalmente, por força do costume. (Volta)
22 Direito Público Internacional Tratados e Convenções, org. por Celso D. de Albuquerque Mello, Rio de Janeiro: Renovar, 1986, pp. 631-633; Direito e Relações Internacionais, textos coligidos e ordenados por Vicente Marotta Rangel, S. Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 163-165. (Volta)
23 Convenção assinada em 18 de maio de 1977 e vigente desde 5 de outubro de 1978. Texto completo em A Luta da URSS pelo Uso Pacífico do Espaço Exterior 1957-1985 - Documentos e Materiais, Volume 2, Moscou: Editora de Literatura Jurídica, 1985, pp. 156-161 (em russo). (Volta)
24 Basic Documents in International Law and World Order, selected and edited by Burns H. Weston, Richard A. Falk and Antony A. DAmato, USA: Publishing Co., 1980, pp. 132-135. (Volta)
25 Oberg, James, Space Power Theory, p. 99. (Volta)
26 Stares, Paul B., The Militarization of Space US Policy, 1945-1984, USA, New York: Cornell University Press, 1985. (Volta)
27 Resoluções 36/97C e 36/99, ambas aprovadas em 9/12/1981. Ver Kopal, Vladimir, Concerns expressed in the United Nations over the military uses of outer space, in Maintaining Outer Space for Peaceful Uses, edited by Nandasiri Jasentuliyana, The United Nations University, 1984, pp. 59-73. (Volta)
28 Report of UNISPACE II, doc. A/Conf.101/10 of 31 August, 1982, paragraph 13, p. 5. (Volta)
29 Doc. CD/274, of 6 April, 1982. (Volta)
30 Doc. CD/9 of 26 March, 1979 included in the Report of the Committee on Desarmament, Appendix III, vol. 1; doc. CD/53 of 14 August, 1979. (Volta)
31 Kamenetskaia, Elena, Cosmos, Cooperação, Direito, Ciências Sociais, Nº 1 (18), 1983, Academia das Ciências da URSS, pp. 149-161; Stachevski, Serguei, e Stakh, Gennadi, O Cosmos deve estar a serviço da paz, Nº 2 (19), 1983, Academia das Ciências da URSS, pp. 191-201. (Volta)
32- Kopal, Vladimir, Concerns expressed in the United Nations over the military uses of outer space, in Maintaining Outer Space for Peaceful Uses, edited by Nandasiri Jasentuliyana, The United Nations University, 1984, pp. 67-69. (Volta)
33 A/AC.105/L.236, of 11 June, 2001. (Volta)
34 Bobbio, Norberto, A Guerra, a Paz e o Direito, em Teoria Geral da Política A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos, org. por Michelangelo Bovero, Rio de Janeiro: Campus, 2000, pp. 559-573. (Volta)