Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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Direito e efetividade jurídica

Reis Friede *

Sobre o Direito, transcendendo sua noção, conceituação e finalidade social, deve ser assinalado, - em sublime ratificação à doutrina mais abalizada sobre o tema -, que o mesmo, isoladamente considerado, se constitui em uma inexorável realidade ficcional, desprovido, por sua vez, de qualquer efetividade inerente ao mundo fático.

Por efeito, o Direito somente se transforma em uma realidade efetiva na presença de indispensáveis elementos de concreção que, em princípio, são completamente estranhos à realidade jurídica.

Tais elementos, de nítido caráter instrumental, revelam-se como autênticos mecanismos de conversão, permitindo que o Direito, a partir de sua inerente percepção abstrata originária possa se exteriorizar através de uma conseqüente percepção concreta derivada, que forneça, em última análise, a imprescindível sinergia à sua própria previsão teórica de sanção, provendo-lhe o inafastável fator de credibilidade.

(É a situação clássica de um garoto, que na inerente fragilidade física de seus 10 anos de idade, após comprar (com seu dinheiro) um sorvete – e, portanto, titular do Direito de propriedade e de posse sobre o mesmo –, é violentamente abordado por um adolescente de 17 anos (necessariamente provido de maior robustez atlética) que, através do simples uso da ameaça ou da própria força, lhe exige o sorvete, tomando-o, por fim, independentemente da insistente alegação, por aquele primeiro menor, de que o mesmo é titular de indiscutíveis direitos sobre o objeto jurídico, de cuja posse, aliás deixou de ser detentor.

Nessa situação, o Direito revela-se, de forma insofismável, como uma inconteste realidade ficcional, posto que, não obstante a sua inerente previsão de sanção para a exata hipótese narrada, a mesma, por si só, não possui as condicionantes operativas que a tornam efetiva, dotando, em último grau, o Direito de necessária concretude.

Todavia, o resultado final do caso descrito pode ser completamente diferente, na hipótese de o garoto de 10 anos ter um irmão de 21 anos que, chamado em seu socorro no exato momento da abordagem ameaçadora do adolescente de 17 anos, comparece imediatamente para fazer valer o direito titularizado por aquele, e de cuja simples alegação de existência não foi suficiente para inibir a ação antijurídica do agente.

Ainda assim, é importante consignar que, - de forma diversa da relação direta entre o garoto de 10 anos e o adolescente de 17 anos, em que necessariamente este é maior e mais forte que aquele -, o irmão de 21 anos não será obrigatoriamente capaz de impor o direito ao adolescente de 17 anos, considerando que, na situação real, ainda que em caráter excepcional, o rapaz de 21 anos, - intelectualizado e avesso a atividades físicas -, pode não ser páreo para um eventual adolescente de 17 anos, que seja praticante de fisiculturismo e iniciado em técnicas de lutas marciais.

Nessa hipótese particular, não obstante a presença de um indiscutível elemento de concreção, mais uma vez o Direito continuará em seu âmbito ficcional, deixando de se projetar, no mundo real, de forma efetiva.

No exemplo ilustrativo, que nada mais é do que uma analogia metafórica, vale assinalar que o irmão mais velho representa, sobretudo (ainda que não exclusivamente), o Estado, como instrumento por excelência de efetivação jurídica, sendo certo, neste prisma analítico, que a simples presença do Estado, por outro lado, não é por si só suficiente para prover a necessária concretude ao Direito, sendo indispensável a existência do Estado forte, ou seja, dotado de recursos e de disposição política para fazer valê-los.)

1. Estado como Principal Elemento de Concreção do Direito

Muito embora, conforme já afirmamos, o Estado não seja o único elemento de concreção do Direito, - considerando que, em princípio, toda a forma de exteriorização de poder efetivo é capaz de fazer valer previsões abstratas de ordenação -, é, sem dúvida, o Estado (e, em particular, o Estado forte) o principal pólo de produção e efetivação do Direito, o que é realizado, em última instância, através da soberania, na qualidade de virtual instrumento de vinculação político-jurídica e elemento, por excelência, de formação e irradiação de poder político e, nesse diapasão analítico, responsável pela necessária concreção do próprio Estado.

(Nesse especial aspecto, é forçoso concluir que, como numa autêntica espiral de derivação, é a soberania, em último grau, o elemento maior de caracterização do Estado, capaz de viabilizar a essência da projeção do poder político e, em conseqüência, a própria efetividade do Direito, transformando-o em uma realidade perceptível, capaz de prover, em sua plenitude, a sua função precípua de ordenação político-jurídica.)

2. Efetivação da Soberania e Concretização
Objetiva do Direito e da Realidade Jurídica

Conforme já afirmamos, a soberania constitui-se no elemento abstrato de formação do Estado, que se cristaliza, em última instância, através do sincero e mais íntimo desejo do conjunto de nacionais (povo) em conceber uma comunidade (Nação) territorial onde a vontade individual ceda espaço para a imposição da vontade coletiva, por intermédio da caracterização de um sinérgico Poder Constituinte.

Não é por outra razão, portanto, que o conceito próprio e específico de Poder Constituinte, na qualidade de poder originário e institucionalizante, é comumente sintetizado como a expressão máxima da soberania nacional, numa evidente alusão ao objetivo último desta modalidade suprema de exteriorização teórica do poder político que é exatamente a de transformar a Nação – dotando-a de uma organização político-jurídica fundamental (Constituição) – em um efetivo Estado.

(Não podemos nos esquecer, neste diapasão, de que o Estado se constitui na soma de três elementos básicos, ou seja povo (elemento humano), território fixo (elemento físico ou geográfico) e soberania (elemento abstrato), sendo certo que, de forma simples, o Estado representa a Nação dotada de uma Constituição, ou seja, de uma organização político-jurídica fundamental, em que é estabelecido o direito nacional em sua dimensão maior. Não é por outra razão que Del Vecchio entende que, além do povo e do território o que caracteriza o Estado é a existência de vínculo jurídico.

"Quanto às notas características do Estado Moderno, que muitos autores preferem denominar elementos essenciais por serem todos indispensáveis para a existência do Estado, existe uma grande diversidade de opiniões, tanto a respeito da identificação quanto a do número. (...)

Para Del Vecchio, em especial, além do povo e do território o que existe é o vínculo jurídico, que seria, na realidade, um sistema de vínculos, pelo qual uma multidão de pessoas encontra a própria unidade na forma do direito. (...)" 1

Por outro lado, o Estado também se apresenta como uma entidade com fins precisos e determinados, razão pela qual alguns autores incluem, como uma espécie de quarto elemento de caracterização do Estado, a finalidade (A. Groppalli), considerando, sobretudo, a função estatal precípua de regular globalmente, em todos os seus aspectos, a vida social da comunidade, visando à realização do bem comum 2

A soberania, por efeito conseqüente, caracteriza o Estado, atribuindo-lhe um direito interno ou, em outras palavras, dotando-o de instrumentos de regulação inerentes à vida de seus diversos integrantes, em princípio de forma legítima (consensual), ainda que, em sua ação prática, de modo compulsório.

(De fato, muito embora o Direito forjado pela função legislativa do Estado seja consensual, ou seja, resultado da vontade geral manifestada através dos representantes do povo em assembléia, ele também é obrigatório (uma vez concebido), independentemente da vontade de cada indivíduo, em face da prevalência, que passa a existir, da comunidade estatal sobre os seus componentes, individualmente considerados).

Todavia, como a soberania também se constitui, em última análise, em uma abstração, o direito estatal que dela deriva para realmente valer, de maneira genérica e obrigatória, necessita de algum tipo de elemento concreto, que tenha a capacidade de viabilizar, sob o ponto de vista efetivo, a indispensável concreção do chamado poder de império (poder sobre todas as coisas no território estatal) e do denominado poder de dominação (poder sobre todas as pessoas no território estatal), inerentes ao poder político derivado da soberania. Este elemento de efetivação se traduz, em última análise, pela sinérgica existência de uma força coerciva de natureza múltipla (política, econômica, militar e/ou psicossocial), mas que, de modo derradeiro, se perfaz por meio de uma inexorável existência de capacidade política no sentido amplo da
expressão.

Desta feita, é sempre lícito concluir, neste diapasão, que a soberania (e o Direito dela decorrente), embora inicialmente estabelecida por consenso, somente se efetiva, de modo amplo e pleno, com o necessário respaldo em uma capacidade de força efetiva, em mãos do Estado, que seja facilmente perceptível pelos diversos indivíduos que compõem a comunidade social, transformando a inicial abstração da soberania em uma acepção concreta e a percepção ficcional do direito em uma realidade universal e visível.

(Não é por outro motivo que, nos Estados desprovidos de instrumentos de força coativa real, onde inexiste a garantia derradeira da imposição do direito estatal interno, é sempre possível (embora indesejável) que grupos de indivíduos se estabeleçam de forma marginal (e paralela ao Estado), tornando refém de sua vontade (não legítima) toda a sociedade organizada, independentemente da natural contrariedade que tal fato necessariamente acarreta.)

Assim, de modo objetivo, é possível analisar didaticamente a anatomia da soberania, desvendando os seus variados graus de exteriorização (desde o sentido mais abstrato até o mais concreto) e caracterizando conceitualmente as expressões poder (como elemento teórico de exteriorização da soberania abstrata, em que a mesma é revestida de autoridade, faculdade e possibilidade de ação, forjando a sua concepção teórica) e força (na qualidade de elemento efetivo de concreção do poder, em que o mesmo é dotado de vigor e robustez em termos práticos, forjando a concepção da soberania em termos efetivos). n

Referências:

* Mestre e Doutor em Direito Público, Magistrado Federal e autor de inúmeras obras jurídicas, dentre as quais "Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica", 4ª edição, Forense Universitária, 2001, RJ (189 ps.) e "Vícios de Capacidade Subjetiva do Julgador: Do Impedimento e da Suspeição do Magistrado nos Processos Civil, Penal e Trabalhista", 3ª edição, Forense, 2001, RJ (469 ps.).     (Volta)

1 Dalmo de Abreu Dallari, in Elementos de Teoria Geral do Estado, 18ª ed., São Paulo, Saraiva, 1994, ps. 60-61.     (Volta)

2 Giorgio Balladore Pallieri, in Diretto Constituzionale, 4ª ed., Milão, 1955, p. 10.     (Volta)

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