Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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Direito: Noção, Conceituação
e Finalidade Social

Reis Friede *

Estudar e analisar a noção, a conceituação e a própria finalidade social do Direito é, antes de tudo, entender e compreender o gênero humano em suas inerentes características relacionais intrínsecas e sócio-políticas.

Nesse aspecto analítico, resta absolutamente fundamental a percepção de que o homem, - inserido em uma realidade notadamente dicotômica, em que o raciocínio binário destaca-se como uma efetiva imposição lógica -, também constitui-se em um fenômeno dotado de nítida bipolaridade: o ser existencial (caracterizado pela sua autonomia, seu individualismo (personalismo e singularidade), seu egocentrismo (subjetivismo) e pela sua independência) e o ser coexistencial (caracterizado pela sua derivação, seu universalismo (generalismo e pluralidade), seu altruísmo (objetivismo) e pela sua dependência).

O ser existencial faz parte do chamado mundo natural, composto pelos reinos animal, vegetal, mineral e protozoário, e imposto pela realidade originária (estática) da natureza humana individual, onde o homem constitui-se em apenas mais um aspecto vivo de uma realidade universal, sem qualquer caracterização distintiva.

O ser coexistencial, por sua vez, insere-se no denominado mundo cultural, composto pela inteligência criativa do gênero humano e imposto pela realidade transformadora (derivada), dinâmica e dialética, da natureza humana coletiva, onde o homem constitui-se em sinérgico elemento de alteração, mudança e desenvolvimento de suas próprias condições de vida.

Da imperiosa necessidade de compatibilização de ambas realidades – que, em essência, também ostentam nítido aspecto de antinomia, na medida em que simultaneamente se apresentam como realidades opostas e complementares –, surgiu a base norteadora do que convencionamos chamar de regramento, objetivando, em última análise, limitar o aspecto existencial do homem, permitindo a sua convivência grupal e o seu pleno
desenvolvimento social.

1. Noção de Direito

Da própria constatação fática de que ao homem, como ente individual, seria impossível o objetivo de transformar a natureza, - como uma genuína e insuperável necessidade empírica de todo o gênero humano -, admite-se conclusivamente que o mundo cultural, - onde se insere o ser coexistencial em virtual oposição ao ser individual inerente ao mundo natural -, é, independente de outras considerações, também uma imposição circunstancial da realidade humana associativa (gregária), forjando a concepção última da inafastável necessidade de um regramento disciplinador que, dentre outras finalidades, viabilize a coexistência humana em sociedade, disciplinando as atividades de cooperação (onde há convergência de interesses) e de concorrência (onde há paralelismo de interesses).

(Dentro desta linha de raciocínio, podemos afirmar que o Direito surge com o primeiro encontro entre dois homens, na qualidade de seres individuais, onde a autonomia, o individualismo, o egoísmo, a independência e a ferocidade necessitavam de algum limite para propiciar uma convivência harmoniosa e plenamente efetiva. Não obstante este Direito recém-nascido ser bem distinto da noção que conhecemos hoje, inegavelmente tal regramento disciplinador de condutas humanas já pode ser considerado conceitualmente como Direito.)

1.1. Origem das Sociedades e dos Agrupamentos Sociais

Muito embora não possamos deixar de reconhecer a existência de algumas controvérsias a respeito do tema, é fato que modernamente a doutrina mais festejada tem defendido a tese segundo a qual o homem possui, independentemente de outros fatores, uma necessidade instintiva e insuperável de associação, o que, em última análise, forjou os primeiros agrupamentos sociais e, posteriormente, as sociedades primitivas.

"A primeira causa de agregação de uns homens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto de sociabilidade em todos inato; a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum" (Cícero, in República, vol. I, p. 15).

Em essência, Aristóteles, com sua célebre afirmação "o homem é naturalmente um animal político", (A Política. vol. I, p. 9), foi o primeiro estudioso a defender a idéia do impulso associativo natural, seguido, em Roma (séc. I a. C.), por Cícero e, na idade medieval, por São Tomás de Aquino. Modernamente, como bem 1embra Dalmo de Abreu Dallari 1 "são muitos os autores que se filiam a essa mesma corrente de opinião, estando entre eles o notável italiano Ranelletti, que enfoca diretamente o problema, com argumentos, preciosos e colhidos na observação da realidade. Diz ele que, onde quer que se observe o homem, seja qual for a época, mesmo nas mais remotas a que se possa volver, o homem sempre é encontrado em estado de convivência e combinação com os outros, por mais rude e selvagem que possa ser na sua origem. O homem singular, completamente isolado e vivendo só, próximo aos seus semelhantes mas sem nenhuma relação com eles, não se encontra na realidade da vida".

Para Ranelletti, "o homem é induzido fundamentalmente por uma necessidade natural, porque o associar-se com os outros seres humanos é para ele condição essencial de vida. Só em tais uniões e com o concurso dos outros é que o homem pode conseguir todos os meios necessários para satisfazer as suas necessidades e, portanto, conservar e melhorar a si mesmo, conseguindo atingir os fins de sua existência. Em suma, só na convivência e com a cooperação dos semelhantes, o homem pode beneficiar-se das energias dos conhecimentos, da produção e da experiência dos outros, acumulados através de gerações, obtendo assim os meios necessários para que possa atingir os fins de sua existência, desenvolvendo todo o seu potencial de aperfeiçoamento no campo intelectual, moral ou técnico 2

1.2. Origem das Sociedades e dos Vínculos Sociais

É natural que o homem, desejoso de viver em comunidade, procure estabelecer associações (agrupamentos sociais no sentido amplo) a partir de algum tipo de identidade para com os seus semelhantes. Esta identidade natural que o compele a aproximar-se de outros é estabelecida inicialmente através da observação quanto à presença de vínculos comuns, tais como a identidade racial (vínculo mais imediato, em face de sua própria evidência, posto que independe de uma mínima convivência) e, de uma forma mais complexa (e posterior, dada a necessidade de estabelecimento de uma mínima convivência), as identidades lingüísticas, religiosas (ou de crença no sentido amplo, o que inclui eventualmente o próprio ateísmo), etc.

Sendo, pois, inerente ao gênero humano a aproximação inicial com aquele que julga mais próximo (ou seja, com aquele dotado de um ou mais vínculos em comum), o agrupamento social que passa a ser estabelecido acaba por conceber a própria noção de vinculação social (ou de vínculos sociais), dando origem, em última análise, ao vínculo maior da identidade nacional ou da nacionalidade (gérmen que origina a Nação em seu conceito primitivo) e, posteriormente, até mesmo o conceito mais complexo de cidadania.

1.3. Sociedade, Nação e Estado

Se considerarmos a expressão agrupamento humano como a forma mais primitiva de associação humana e, no extremo oposto, o Estado como sua derivação mais complexa, podemos entender o fenômeno humano associativo, à luz das teorias política e jurídica, como um conjunto básico (e inicial) de vinculações naturais, que se transmudam em vinculações sociais, originando, num primeiro momento, as sociedades (desde as mais primitivas até as mais complexas), passando pelas Nações, e, a partir do estabelecimento de um território fixo adicionado ao pacto (com a substituição, a partir deste momento, da prevalência da teoria do impulso associativo natural pela prevalência da teoria contratualista) pelo rompimento da prevalência do individual em nome do coletivo, concebendo-se um poder abstrato supremo e impiedoso denominado soberania, chegando finalmente aos Estados, como modalidades últimas de agregação humana.

(Deve ser registrado, com o intuito de evitar possíveis confusões, que a teoria do pacto contratualista desenvolvida, sobretudo, por Rousseau, somente pode e deve ser considerada (mesmo que parcialmente) no instante da formação do agrupamento humano mais complexo denominado Estado, pois somente neste momento é que, inicialmente, por decisão de cada membro da sociedade nacional, ou seja, da Nação (posteriormente, vale assinalar que o pacto é uma efetiva imposição), se estabelece - de comum acordo - um poder abstrato e supremo (denominado soberania) que passa a comandar, de forma coletiva, os membros da comunidade, obrigando-os a sujeitarem-se ao regramento comum (e fundamental) estabelecido (denominado Constituição), independentemente de suas vontades individuais, caracterizando a noção básica da prevalência do interesse público sobre o interesse privado, em nome do bem comum. Nesse momento, continua a predominar – sob a ótica originaria - a teoria do impulso associativo natural a que nos referimos inicialmente (em contraposição à teoria contratualista), posto que o desejo associativo (independentemente de seu grau) é inerente ao ser humano; porém, na transformação da Nação em Estado, há de estabelecer necessariamente (pelo menos no que tange ao momento inicial) o pacto social de concessão ou autorização que permitirá, em última análise, a construção de um poder coletivo (e abstrato) prevalente sobre a vontade individual originaria e inerente ao ser humano).

1.4. Conceito de Estado

A par desta concepção evolutiva, podemos conceituar Estado, em termos objetivos, dentro de um conceito contemporâneo, portanto, como toda associação ou grupo de pessoas fixado sobre determinado território, dotado de poder soberano. É, pois, o Estado, em síntese, um agrupamento humano em território definido, politicamente organizado, que, em geral, guarda a idéia de Nação. Daí exatamente a construção do conceito sintético de Nação política e juridicamente organizada para definir conclusivamente o termo Estado. Dissemos que o Estado, "em geral, guarda a idéia de Nação", porque nem sempre, todavia, estes dois vocábulos conjugam-se para explicar determinados grupos sociais, embora, freqüentemente, o Estado encerre o sentido de Nação.

"Nação é uma comunidade de base cultural. Pertencem à mesma Nação todos quantos nascem num
certo ambiente cultural feito de tradições e costumes, geralmente expresso numa língua comum, atualizado num idêntico conceito de vida e dinamizado pelas mesmas aspirações de futuro e os mesmos ideais coletivos. Embora a Nação tenda a ser um Estado, não há necessariamente coincidência entre Nação e Estado: há Nações que ainda não são Estados (pela sua pequenez, por exemplo) ou que estão repartidas por vários Estados, e Estados que não correspondem a Nações, como geralmente acontece nos países novos onde acorrem todos os dias emigrantes provenientes dos mais diversos cantos do globo, cada qual com o seu facies próprio. É que, em muitos casos, em vez de ser a Nação que dá origem ao Estado é o Estado que, depois de fundado, vai, pelo convívio dos indivíduos e pela unidade de governo, criando a comunidade nacional: é o que passa, por exemplo, nos Estados Unidos da América"
3

Nação deriva do verbo latino nascere, referindo-se, portanto, ao conjunto de pessoas de mesma origem racial. É unidade étnica, herança histórica e destino comuns de um mesmo grupo social, muito embora, contemporaneamente, como já afirmamos, seu sentido específico seja mais elástico para abranger qualquer vínculo (ou vários deles) em comum, tais como: raça, religião, credo, língua, etc.

É conveniente lembrar que a Nação pode ser constituída de vários Estados (ex.: a grande Nação muçulmana). Por outro lado, a Nação pode estar também contida em apenas um Estado (ex.: a Nação basca na Espanha). De qualquer forma, a Nação é gérmen que dá origem ao Estado, como foi o caso da Itália antes da unificação.

Temos, então, que uma Nação pode existir como comunidade histórica e cultural, independentemente de autonomia política ou soberania estatal (Gerard J. Mongone).

"O homem não é escravo nem de sua raça, nem de sua língua, nem de sua religião, nem do curso dos rios,
nem da direção das cadeias de montanhas. Uma agregação de homens, sã de espírito e cálida de coração, cria uma consciência moral que se chama Nação" (Ernesto Renam, In Que É Uma Nação).

O conceito de Estado evoluiu com o tempo: surgiu do termo polis, na Grécia, civitas em Roma e estado durante a Idade Média, tendo sido Maquiavel, no entanto, o introdutor do termo Estado na literatura científica.

"A palavra Estado, derivada do latim status, surgiu na Renascença com o significado em que hoje a
utilizamos, assim isolada e no sentido de nomear, sob feição gramatical, alguma coisa em sua
substância. (...) Deve-se a Nicolau Maquiavel (1469-1527) a inclusão desse termo na literatura
política, por meio, em pleno século XVI, de seu tão celebrizado Il Principe, escrito em 1513, publicado
após sua morte apenas em 1531, e em cujo início se lê, como primeira frase, o seguinte: ‘Todos os
Estados, todos os domínios tiveram e têm poder sobre os homens, são Estados e são ou repúblicas ou
principados’ (O Príncipe, p. 7). É que antes da consagração obrada pelo discutido florentino, não
possuía o vocábulo Estado a penetração que alcançou a partir da época renascentista, em virtude
mesmo da aceitação, até aí, de outros nomes pelos quais fora designada a instituição política em
epígrafe.

Os helênicos chamaram o Estado de polis, que quer dizer cidade de onde provém o termo política, a arte ou ciência de governar a cidade. (...) Entre os romanos o Estado é a civitas, isto é, a comunidade dos habitantes ou a res publica, isto é, a coisa comum a todos. Com o crescimento de Roma e sua conseqüente expansão ao mundo então conhecido, modifica-se o conceito de Estado que se amplia para o de imperium, convertendo-se a res populi em res imperantis. (...)

O período medieval dispõe de diversas expressões para designar as unidades políticas. Ao lado de
imperium
, aparece o termo regnum, delas procedendo império e reino. Ademais, volta-se a falar em cidade e agora em terra para designar respectivamente cidades livres e domínios territoriais. Pelo medievo pela era moderna, encontra-se o emprego da palavra Estado para designar as classes do reino.
São os três estados: 1) clero, 2) nobreza e 3) povo, os quais na França se chamavam Estados Gerais, na Inglaterra ‘Parlamento’, na Espanha e Portugal ‘Corte do Reino’.
Foi quando a palavra estados, no sentido hodierno, começou a ter curso na Itália, onde, ante o
caráter especial dos Estados existentes, império ou regno era demais a città ou terra era muito pouco, usando-se, pois, aquele termo que se unia ao nome de uma cidade, por exemplo, Stato de Firenze.
É provável que, ainda aí, esse vocábulo correspondesse ao antigo significado de status, isto é, situação, ordem, condição, havendo algum informe, no entanto, de que no século XIV já se encontra na Inglaterra a palavra status como equivalente de Estado.

O certo, porém, é que, do século XVI em diante, o termo italiano stato se incorpora à linguagem
corrente, adquire foros de universalidade e se generaliza, para designar a todo Estado, na tradução
correspondente de qualquer língua"
4.

Por outro prisma, a acepção do termo Estado pode ser demasiado ampla, se levarmos em consideração as correntes formadas em vários campos de conhecimento que o estudam:

a) Sociológica: Estado é um fenômeno social onde existe uma integração de forças/estratos sociais.

b) Filosófica: Estado é um fenômeno cultural/político.

c) Jurídica: Estado é uma entidade geradora de direito positivo.

d) Política: Estado é considerado uma Nação politicamente organizada; sendo organização sua palavra-chave, pressupondo, para tal, governantes e governados.

Paulo Bonavides, a propósito do tema, destaca a necessidade de um ponto de apoio no elemento histórico para a concretização efetiva de uma Teoria do Estado, não obstante o reconhecimento de seus princípios abstratos, mesclando, destarte, sua posição interpretativa com instrumentos teóricos da filosofia política "para bem compreender e avaliar os fenômenos do poder e organização do Estado" 5

"Os gregos são os mais significativos antepassados de nossa formação. Se os romanos nos ensinaram a aplicar a lei, os gregos nos ensinaram a pensar. Um pensamento que, na religião filosófica do direito e do Estado, se volve invariavelmente para os alicerces éticos.

O advento dos Sofistas na grécia marcou no quadro daquela época a emergência de uma crise sem precedente no Mediterrâneo da desintegração e colapso daquilo que outrora foi a hegemonia dos povos gregos" 6

Defensor do caráter teleo1ógico do Estado, o professor Bonavides argumenta que as doutrinas do pragmatismo jurídico ignoram o problema dos fins do Estado. Também, revela-nos o autor a importância das correntes da teleologia estatal, apoiadas no jusnaturalismo, "para sedimentar a consciência jurídica dos povos civilizados" (ob. cit.), precipuamente com relação à ordem política. Esta consciência política, preconizada e elaborada pelos filósofos do direito e que tem como tema fundamental justamente a teleologia estatal, institui o direito social e o direito individual, sob o ponto de vista da teoria do Estado, como o mesmo direito, "tomado apenas para prismas diferentes" (ob. cit.).

De um modo geral, entretanto, o Estado comumente é definido conceitualmente como a organização político-administrativo-jurídica do grupo social que ocupa um território fixo, possui um povo e está submetido a uma soberania.

O território abrange, de forma simplória, algumas partes componentes, tais como: o solo, o subsolo, o espaço aéreo, o mar territorial, a plataforma submarina, navios e aeronaves de guerra (em qualquer lugar do planeta, incluindo o território estatal estrangeiro), navios mercantes e aviões comerciais (no espaço livre, ou seja, nas áreas internacionais não pertencentes a nenhum Estado soberano) e, para alguns autores - apesar da existência de inúmeras controvérsias -, as sedes das representações diplomáticas no exterior (embaixadas).

O povo, por sua vez, engloba o somatório de nacionais no solo pátrio e no exterior, não se identificando, pois, com o conceito de população, que inclui os estrangeiros no território estatal.

A soberania, por fim, traduz-se no elemento abstrato, de matiz político, que permite, em última análise, a
indispensável concreção aos denominados elementos perceptíveis (povo e território), viabilizando o Estado como inexorável realidade efetiva (vinculação político-jurídica).

Já, no que concerne especificamente à formação efetiva dos Estados, é importante consignar a existência de uma série de teorias explicativas que, de uma determinada maneira, aludem, ainda que por vias transversas, à origem primeira da sociedade e dos agrupamentos sociais.

De qualquer forma, vale assinalar que os Estados, de modo geral, possuem, alternativamente, ou uma formação originária (partindo de agrupamentos humanos que, desenvolvendo uma concepção própria de coletividade, estabelecem um território fixo e uma vinculação político-jurídica) ou uma formação derivada (partindo de outros Estados preexistentes) por fracionamento (natural ou impositivo) ou união territorial.

No que concerne exclusivamente à primeira hipótese, (formação originária) é que, em última instância, é possível proceder-se a um estudo mais apropriado (e aprofundado) das mencionadas teorias, dividindo-as em dois grupos: as teorias que sustentam a formação natural (não contratual) do Estado (onde a naturalidade é a tônica principal, existindo divergências apenas no que alude à origem), tais como as teorias familiar (matriarcal e patriarcal), de força (conquista), patrimonial, e da potencialidade (desenvolvimento interno) e as teorias que sustentam a formação forçada ou artificial (contratual) do Estado (onde a voluntariedade inicial e a compulsoriedade posterior são as tônicas principais, existindo, igualmente, divergências no que se refere à origem), tais como a do contrato social, organicista e do equilíbrio social.)

2. Ordenamento Social

Independentemente da maior ou menor complexidade da organização humana (agrupamentos sociais, sociedades, Nação e Estado), a imperiosa necessidade de um regramento disciplinador, conforme já consignado, revela-se como elemento fundamental de viabilização última da convivência (e, em termos primitivos, da própria coexistência) humana.

Se, por um lado, o gênero humano necessita, por uma imposição de sua própria natureza, associar-se em diferentes níveis evolutivos de complexidade com outros de sua espécie para, num segundo momento, dominar e desenvolver suas próprias condicionantes de vida (e o seu habitat), por outro passou a prescindir de um igualmente crescente mecanismo de ordenação, capaz, em todas as situações, de resolver eventuais conflitos, amoldando a individualidade inerente ao ser existencial à coletividade característica do ser coexistencial.

Sob este prisma analítico, surge exatamente a noção de ordenamento social, traduzindo, por seu turno, a idéia básica de prover ordem à sociedade, em todos os seus diferentes e possíveis estágios perceptivos.

2.1. Instituições

O ordenamento social, em sua concepção estrutural, também se encontra inexoravelmente fundado em determinados alicerces que são estabelecidos, em sua concepção originária, em circunstâncias peculiares do ser humano (razão e emoção) que, por sua vez, originam os costumes.

São exatamente estes alicerces, - que, em uma analogia metafórica, funcionam como autênticas fundações de onde são construídos os pilares e as colunas, na qualidade de sustentáculos primordiais da sociedade -, que convencionamos denominar de instituições, ou, em outras palavras, entidades fictícias em que o homem decidiu acreditar com o intuito de preservação não só individual, mas, sobretudo, grupal.

Nesse sentido, podem e devem ser entendidos como instituições básicas aquelas imprescindíveis, de maneira geral, a todas as sociedades, independentemente de suas peculiaridades, e que correspondem às necessidades básicas de reprodução (família), manutenção (propriedade) e defesa (Estado) do gênero humano; e, como instituições secundárias (de caráter complementar), a igreja, a escola, o sindicato, o parlamento, etc.

(É importante observar que apenas os seres vivos dotados do atributo da inteligência, ou seja o gênero humano, é capaz de construir e conceber, considerando, acima de tudo, que os demais animais integrantes do mundo natural, reputados irracionais, não possuem a capacidade de compartilhar crenças inerentes ao mundo cultural.)

2.1.1. Família

A família é a instituição básica e pioneira que, durante toda a existência do homem civilizado, foi responsável pelo objetivo fundamental de reprodução da espécie humana, não obstante as suas amplas conseqüências de ordem sentimental, psicológica, moral, ética, educacional, religiosa, econômica, social, além de jurídica.

Em princípio, a instituição da família estabelece-se pelo casamento com prole, caracterizando o conceito de família legítima, ainda que a chamada união estável (hoje reconhecida pelo nosso Direito) também permita a concepção familiar, quando desta originam-se filhos.

(É importante observar que a simples união de direito (casamento) ou união de fato (união estável) entre um homem e uma mulher, sem filhos, não origina a família (e sim apenas a figura jurídica do casal), considerando o objetivo maior de caráter reprodutivo que caracteriza a família.)

A família, como gênero, também comporta duas espécies básicas: a família monogâmica (em que a união se dá apenas entre um único homem e uma única mulher, como a expressamente admitida no Brasil – art. 226 da CF/88) e a família poligâmica (em que, ao contrário, um único homem pode se unir com várias mulheres (poliginia) ou várias mulheres podem se unir com um mesmo homem (poliandria).

Sobre o tema vertente, é oportuno ainda esclarecer que alguns autores, - em absoluta dissonância com a doutrina mais abalizada sobre a questão -, interpretam a família não como uma instituição, mas sim como um contrato, um acordo, um contrato-instituição, ou mesmo como um ato-condição.

2.1.2. Propriedade

A propriedade, logo após a família, é considerada a segunda mais importante instituição.

Assegurada a imperiosa necessidade de reprodução – e, portanto, de perpetuação da espécie humana -, resta, em conse-qüência, de modo absolutamente fundamental, garantir a manutenção da existência do homem, provendo, em última análise, os meios de desenvolvimento do gênero humano, o que somente pode ser realizado através da produção de bens e riquezas por intermédio da instituição da propriedade que, neste contexto analítico, pode ser privada (ou seja, inerente a cada indivíduo, como é o caso dos países capitalistas, como o Brasil) ou coletiva (relativa ao Estado, como detentor único dos meios de produção, como são exemplos alguns países (supostamente em vias de extinção) reputados socialistas, como Cuba, Coréia do Norte, China (ainda que com algumas restrições), etc.)

2.1.3. Estado

Não obstante ser reputado, em uma concepção evolutiva, apenas como a terceira instituição fundamental – posto que, de fato, algumas Nações mantêm instituições estáveis (família e propriedade) e projetam um Direito (ainda que primitivo) independentemente de sua presença -, o Estado, mais do que a família e a propriedade, representa a síntese institucional responsável última (porém não exclusivamente) pela concretização do próprio Direito que é pelo mesmo produzido (função estatal-legislativa procedida por intermédio da lei em seu sentido amplo) ou não (Direito costumeiro ou consuetudinário produzido difusamente em sociedade), mas que pelo mesmo é, em qualquer hipótese, assegurado e garantido (função de projeção efetiva).

De um modo geral, os mais renomados autores conceituam o Estado como a organização político-administrativo-jurídica do grupo social que possui uma identidade nacional (povo), ocupa um território fixo e está submetido a uma soberania.

Por efeito, além dos pressupostos básicos de caracterização do Estado, - ou seja, o elemento humano (povo) e o elemento físico (território) -, que possuem existência concreta, há ainda um elemento abstratosoberania –, de existência ficcional, que comporta-se como verdadeiro poder institucionalizador, traduzindo, em última instância, o poder que tem o Estado de se organizar jurídica e politicamente e de fazer valer, no seu território, a universalidade de suas decisões.

3. Ordenamento Social e Ordenamento Jurídico

Em sua tradução primária de regramento comportamental, o ordenamento social também se caracteriza pela efetiva existência de diversos métodos e de um conjunto harmônico de preceitos fundamentais que tem por escopo de atuação padronizar as condutas individuais, realizando um genuíno processo de sociabilização, através de uma forma típica de controle social, em que a uniformização de atitudes de cada ser individual é concebida em benefício do ente coletivo, gerando uma conduta comum, como resultado da própria aplicação do ordenamento social.

Todavia, na praxis cotidiana, nem sempre o objetivo de estabelecer uma conduta uniforme, que permita a plena viabilidade da coexistência (harmônica e pacífica) entre seres individuais (diferentes em sua formação matricial originária), é perseguido igualmente por todos os membros de uma coletividade, forjando a concepção conceitual da insociabilidade e da misantropia (aversão à sociedade e ao convívio social).

Nesse exato momento, mais do que em qualquer outro, é que o ordenamento social se faz necessário, procurando estabelecer, ainda que de forma cogente e imperativa, o equilíbrio e as condições últimas para a sobrevivência da sociedade organizada, através, sobretudo, de uma sinérgica normatização.

A imposição de uma normatização técnica e própria para atingir especificamente esse desiderato, traduz, como
resultado, o que convencionamos designar, em seu sentido amplo, por norma jurídica que, por sua vez, em seu conjunto, convencionalmente nominamos de ordenamento jurídico.

Destarte, é cediço concluir que, em termos acadêmicos, o ordenamento jurídico (onde se insere o conceito básico de Direito) nada mais é do que uma espécie do gênero ordenamento social.

4. Conceito de Direito

O vocábulo Direito, em sua acepção mais abrangente, pode ser empregado nos mais variados sentidos. Pode expressar o conjunto de regras jurídicas (Direito como norma (norma agendi), Direito objetivo), assim como igualmente também pode traduzir uma faculdade de exigibilidade de conduta (Direito como faculdade (facultas agendi), Direito subjetivo). Também pode referir-se a um conjunto valorativo (valor do justo, da segurança, do bem comum), como ainda a uma ciência, ou seja, um setor da conduta humana que investiga e sistematiza os fatos sociais.

Em uma conceituação ampla, o Direito também pode ser entendido simplesmente como um fenômeno social que permite, através de uma ordenação disciplinadora de condutas, as bases da convivência social.

"Direito é o conjunto de regras de organização e conduta que, consagradas pelo Estado, se impõem
coativamente, visando a disciplina da convivência social." – Hermes Lima.

"Direito é uma ordem de conduta humana. Uma ordem e um sistema de regras." – Hans Kelsen.

"Direito é um conjunto de normas gerais e positivas que regulam a vida social." – Radbruch.

Nesse sentido particular, resta dizer que, não obstante o Direito atingir o seu apogeu através do surgimento do Estado, na qualidade de Nação jurídica e politicamente organizada (ou seja, por intermédio da forma mais avançada de coletividade humana), a existência do Direito, como conjunto de normas gerais e positivas, transcende em muito a este limitado elemento criador e irradiador de disciplinas normativas, para também abranger outros pólos transestatais (e, muitas vezes, transnacionais e transociais), reduzidos a agrupamentos humanos básicos e elementares.

(Nesse particular, vale consignar a efetiva existência do Direito não só nos primórdios dos agrupamentos
humanos
que deram origem, na linha evolutiva, às sociedades, às Nações e aos Estados, como ainda aos agrupamentos humanos paraestatais e transestatais, existentes, respectivamente, em paralelo com o Estado (v.g., ordenamento social imposto pelos traficantes de drogas nas favelas cariocas), ou independentemente do Estado (v.g., ordenamento social existente nas comunidades silvícolas da Amazônia brasileira).

Portanto, é correto concluir que o Direito não se constitui propriamente em um monopólio do Estado
(embora este seja o seu mais íntimo desejo), transcendendo, em muito, a esfera estatal (até porque, no espectro evolutivo humano, já era conhecido e praticado durante o surgimento das sociedades primitivas), ainda que reconhecidamente seja, por meio da força cogente e organizada do Estado, - capaz de supostamente impor uma efetiva supremacia normativa -, que o Direito se realiza em sua plenitude, como instrumento de harmonia social, indispensável ao progresso e ao desenvolvimento do homem que se deseja civilizado.

5. Finalidade Social do Direito

A par do conceito de Direito, em sua inerente abrangência e complexidade, também resta importante esclarecer, em complementação elucidativa, a finalidade social do Direito.

Se o Direito é, acima de tudo, ordenação viabilizadora da convivência humana, sua finalidade não poderia ser outra, salvo a de permitir a própria existência de uma sociedade organizada em qualquer de seus níveis de complexidade: agrupamento social primitivo, sociedade propriamente dita, Nação e Estado.

Não é por outro motivo que, de forma simplificada, a doutrina tem registrado, com notável ênfase, o Direito como um conjunto de regras obrigatórias que, limitando a atuação do ser individual em favor do ser coexistencial, - da pessoa particular em favor da coletiva -, objetivam viabilizar, através de estruturas e valores próprios, a convivência harmônica e produtiva em sociedade.

Também, sob uma ótica mais específica, seria lícito afirmar que o Direito, genericamente considerado, alude a algumas finalidades próprias (que, em alguma medida, se confundem com seus valores axiológicos), tais como: segurança, justiça e bem comum, ou mesmo outras que, em certo sentido, já se encontram contidas nas anteriormente men-cionadas (ordem, certeza, paz, garantia, etc.).

 

Referências:

*Mestre e Doutor em Direito Público, Magistrado Federal e autor de inúmeras obras jurídicas, dentre as quais "Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica", 4ª edição, Forense Universitária, 2001, RJ (189 ps.) e "Vícios de Capacidade Subjetiva do Julgador: Do Impedimento e da Suspeição do Magistrado nos Processos Civil, Penal e Trabalhista", 3ª edição, Forense, 2001, RJ (469 ps.).      Volta

1 Dalmo de Abreu Dallari (Elementos de Teoria Geral do Estado, 18a ed., São Paulo, Saraiva, 1994, ps. 8-9).     Volta

2 Oreste Ranelletti, in Instituzioni di Diritto Pubblico, Parte Geral, p. 3 (ob. cit., ps. 8-9).     Volta

3 Marcello Caetano, in Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 6a ed., Lisboa, Coimbra Ed., 1972, tomo I, p. 123).      Volta

4 Anderson De Menezes, in Teoria Geral do Estado, 7a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, ps. 41-43.     Volta

5 Paulo Bonavides, in Teoria do Estado, 2a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980.     Volta

6 Paulo Bonavides, in Teoria do Estado, 2a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980.     Volta

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