Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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Avaliação de Casos Aeronáuticos
nas Américas Central e do Sul:
Uma Perspectiva Aul-Americana*

Javier A. Carvallo**

O Comitê Organizador do Seminário 1 incumbiu-me de apresentar elementos a serem levados em consideração na avaliação de casos aeronáuticos sob a ótica de um advogado sul-americano.

Considerando as limitações relativas, em termos gerais, às situações casuísticas concretas, ilustrar-se-á a situação atual dos países sul-americanos no que se refere aos quatro aspectos mais importantes para a avaliação de casos aeronáuticos, a saber:

n A difícil coexistência entre as Convenções Internacionais e a legislação local;

n Os limites de responsabilidade civil da companhia aérea e os meios para se romper tais limites;

n Danos passíveis de processos judiciais e quantias outorgadas em julgamentos recentes; e

n Tribunais com jurisdição e organizações envolvidos em acidentes aeronáuticos.

Considerando esses aspectos, podem ser fornecidos elementos simples, que serão úteis para a compreensão de que maneira situações litigiosas resultantes de acidentes aeronáuticos foram resolvidas pelos sistemas legais vigentes nesses países.

I) A difícil coexistência dos Tratados Internacionais e da legislação doméstica

A história das conferências internacionais de Paris, de 1925, e de Varsóvia, de 1929, mostra claramente que, mesmo naquela época, já previa-se que a aviação uniria territórios com diferentes idiomas, usos e sistemas legais. Portanto, foi considerado necessário estabelecer uma uniformidade em algumas questões relativas à legislação substantiva. O procedimento para se alcançar tal harmonização foi estruturado com base no Tratado Original (a "Convenção de Varsóvia") e em uma série posterior de Protocolos Adicionais, os quais, uma vez ratificados, foram implementados nos sistemas legais dos Estados- Membros.

Nenhum desses Tratados jamais pretendeu instituir um único órgão normativo em questões relativas à Legislação Aeronáutica nos Estados-Membros; pelo contrário, no artigo primeiro da Convenção de Varsóvia – que é o ponto de partida de todos os outros Protocolos – especifica-se cuidadosamente que sua área de atuação está "limitada ao transporte internacional de pessoas, bagagem ou mercadoria", considerando-se, como reza o próprio Tratado, "as condições estabelecidas pelas Partes".

Esta é a razão pela qual tornou-se necessário para cada Estado-Membro regular as mesmas questões, como já mencionado no Tratado em questão, no que tange à área doméstica, propiciando, entretanto, o que se denominou de "difícil coexistência" entre o sistema de Varsóvia e Haia e as legislações domésticas dos Estados-Membros.

A América Latina não foi uma exceção a essa regra. Portanto, a determinação da legislação substantiva aplicável é a primeira questão a ser resolvida por qualquer pessoa chamada a intervir em um caso concreto, antes de qualquer litígio quanto à responsabilidade civil de uma companhia aérea. Como será visto adiante, não se trata de uma questão simples, já que a resolução de um mesmo problema pode diferir dramaticamente, dependendo do país. Tampouco, há um número suficiente de casos que permita a elaboração de critérios claros na maioria dessas questões conflitantes.

Em arbitragem ocorrida no Chile relativa ao acidente de um Boeing 737 pertencente à companhia aérea peruana Faucett, em Arequipa, no Peru, em 29 de fevereiro de 1996, alguns reclamantes questionaram a aplicabilidade da legislação peruana, baseados no fato de que a aeronave acidentada estava fazendo um vôo doméstico entre as cidades peruanas de Lima e Tacna, com uma escala em Arequipa, quando a perda ocorrida custou a vida de todos os passageiros e membros da tripulação.

A defesa da companhia aérea argumentou corretamente que a grande maioria dos casos deveriam ser resolvidos com base nas cláusulas das Convenções de Varsóvia e de Haia – às quais o Peru e o Chile são Membros – baseados no fato de que os bilhetes aéreos haviam sido adquiridos na Agência Geral da referida companhia aérea em Santiago do Chile.

O árbitro nomeado para julgar o caso em questão declarou que o local de compra do bilhete aéreo era irrelevante e sentenciou de acordo com as cláusulas da legislação doméstica peruana, considerando o caráter doméstico do vôo 2.

As decisões dos tribunais argentinos parecem seguir o mesmo curso, baseadas na Legislação Aeronáutica argentina válida em seus território, espaço aéreo e suas águas jurisdicionais para afirmar que sua esfera de influência se estende às operações de transporte aéreo ocorridas entre dois pontos dentro do território. A República da Argentina é Membro da Convenção de Varsóvia e aderiu ao Protocolo Complementar de Haia, assim como aos Protocolos Adicionais 1,2 e 4 de Montreal firmados no Canadá em 25 de setembro de 1975.

No Uruguai, não houve aparentemente maiores conflitos, desde a Legislação Aeronáutica de 1974, apesar da Convenção de Varsóvia ter sido ratificada após essa data, de modo que no caso de possíveis controvérsias entre os dois textos, prevalecem as cláusulas do Tratado.

O Brasil ratificou a Convenção de Varsóvia, o Protocolo de Haia e os Protocolos Adicionais 1, 2 e 4 de Montreal, de 1975, todos considerados válidos. As aeronaves de bandeira doméstica, entretanto, seguem o Código Brasileiro de Aeronáutica, promulgado em 1986.

Entretanto, a aprovação, em 1991, do Código de Defesa do Consumidor alterou a legislação de casos e a tendência dos tribunais brasileiros tem sido a de privilegiar a aplicação das normas anteriores, no caso de bandeiras domésticas e internacionais, apesar dos tribunais superiores do país ainda não terem se declarado sobre a questão.

No Peru, a Convenção de Varsóvia, o Protocolo de Haia e os Protocolos Adicionais 1, 2 e 4 de Montreal coexistem com a nova Legislação Aeronáutica Civil, publicada em 10 de maio de 2000, e que estará válida uma vez suas regulações forem publicadas. Esse conjunto de regras reconhece a total validade das convenções internacionais às quais o Peru é Membro, mas é ainda prematuro determinar a maneira pela qual seus tribunais irão aplicar as novas cláusulas.

No Chile, a situação é especialmente confusa. Na verdade, a promulgação e implementação do Sistema Varsóvia-Haia em 1979 foi seguida pela aprovação em 1990 da Legislação Aeronáutica da República do Chile, que não apenas falhou em esclarecer o que aconteceria doravante com as convenções internacionais, como também afirmou em um dos seus artigos que "as aeronaves, de bandeira nacional ou internacional, dentro do território ou do espaço aéreo chilenos, assim como as pessoas e objetos a bordo, estavam submetidos às legislação e jurisdição dos tribunais e autoridades chilenos" 3.

A derrogação implícita das regras relativas à área de aplicação da Convenção de Varsóvia, por essa legislação posterior, fez com que várias decisões se baseassem a partir de então na Legislação Aeronáutica chilena, excluindo completamente as cláusulas do citado Tratado, que diferem substancialmente em alguns aspectos. Um tribunal considerou que, mesmo no caso de uma carga ter sido perdida durante um vôo internacional, deveria ser aplicada a legislação doméstica 4.

Em outra decisão relativa à perda da carga embarcada em Toronto, no Canadá, com destino a Santiago do Chile, "as regras da Legislação Aeronáutica chilena, assim como da Convenção de Varsóvia" foram levadas em consideração, condenando a transportadora ao pagamento total da soma reclamada, sem direito a apelar aos limites de responsabilidade de quaisquer dos dispositivos acima referidos 5.

Resta analisar de que maneira as cláusulas dos Protocolos Adicionais 1 e 2 de Montreal, de 1975, serão interpretadas no Chile, onde foram recentemente promulgados em dezembro de 1977, e, por essa razão, derrogam – também implicitamente –algumas das cláusulas da Legislação Aeronáutica já mencionada.

Tornou-se claro, portanto, que a questão da legislação aplicável em cada caso concreto constitui uma questão primor-dial que deve ser analisada a cada vez com base na legislação do país em que estiver ocorrendo o julgamento.

II) A perda do direito da companhia aérea em invocar o limite de responsabilidade civil

A Convenção de Varsóvia inclui um sistema de responsabilidade civil limitada cuja implantação foi precisamente um de seus objetivos. Acreditou-se que a única forma de se estimular o investimento de capital necessário ao desenvolvimento da Aviação Comercial era limitar sua exposição à responsabilidade civil.

Isso não impede a possível perda desse direito, no caso de uma companhia aérea ser culpada por qualquer conduta sancionada pelo Artigo 25 do Tratado aprovado em 1929, modificado posteriormente pelo Artigo XII do Protocolo Complementar de 1955 de Haia.

A grande maioria dos países latino-americanos ratificou e implementou a Convenção de Varsóvia e o Protocolo Complementar de 1955 de Haia, à única exceção do Uruguai, que reconhece apenas o primeiro, e da Bolívia e do Panamá que não aderiram ao sistema da Convenção de Varsóvia. Por outro lado, quase metade desses países firmaram e ratificaram os Protocolos Adicionais 1 e 2 de Montreal, de 1975, cujos tratados internacionais, como se sabe, foram basicamente criados para padronizar os limites de responsabilidade civil no SDR. Simultaneamente, seis desses países (Argentina, Brasil, Colômbia, Guatemala, Honduras e Venezuela) depositaram os instrumentos de ratificação e promulgaram o Protocolo nº 4, que transforma radicalmente o sistema tradicional de responsabilidade civil subjetiva (isto é a responsabilidade civil baseada na negligência) da Convenção de Varsóvia em um sistema de estrita responsabilidade civil com causas específicas de isenção, exceto em caso de atraso onde o critério de responsabilidade civil subjetiva é mantido.

Isso resultou em confusões no que se refere aos limites de responsabilidade civil aplicáveis, devido à coexistência de vários tratados internacionais e da legislação local que geralmente contêm normas contraditórias. Se acrescentarmos a esse fato a escassa legislação nessa matéria, nos encontraremos em uma área confusa no que tange à regulação e aos limites de responsabilidade civil, cuja unidade de valor (Franco Poincaré, SDR ou unidades locais como a "Unidad de Fomento", no Chile) deveria ser aplicável em cada caso concreto.

Por outro lado, a situação é igualmente confusa no que se refere à possibilidade de quebra dos limites de responsabilidade civil.

Nesse aspecto, o Chile é o país que apresentou o maior número de incertezas até hoje, posto que seus tribunais adotaram a tese da preeminência da Legislação Aeronáutica sobre os Tratados de Varsóvia-Haia. Por conseguinte, foi aplicado o Artigo 172 da Legislação Aeronáutica doméstica em casos de transporte internacional, o que permite que se exceda os limites de responsabilidade civil em caso de "dolo ou negligência", sem que, para isso, essa exigência seja maior ou igual ao dolo, i.e, má conduta intencional, como no caso do Artigo 25 da Convenção de Varsóvia. Considerando que essa tese vigora no Chile, podemos concluir que qualquer conduta negligente da companhia aérea ou de seus dependentes, por menor que seja, causará a perda do direito à responsabilidade civil limitada devido à presença da negligência. Por exemplo, um tribunal chileno recentemente determinou que a destruição e o dano da carga transportada constituiu uma quebra de contrato e, portanto, pressupôs a negligência da companhia aérea, o que motivou sua sentença – baseada na Legislação Aeronáutica – ao pagamento total dos danos reclamados, sem outorgar à companhia aérea o direito de invocar qualquer limite de responsabilidade civil  6.

Porém o Chile não é o único país com incertezas; no Brasil, como já foi dito, a nova tendência dos tribunais em aplicar o Código de Defesa do Consumidor de 1991 teve por consequência imediata a concessão de valores de indenização muito acima dos previstos pelas convenções internacionais já citadas, excedendo, assim seus limites.

Por outro lado, apesar da nova Legislação Aeronáutica peruana ter por objetivo manter-se a mais próxima possível das convenções internacionais a que o país aderiu, é difícil prever de que maneira os tribunais aplicarão as normas. Felizmente, dentre as novas cláusulas, nenhuma é considerada equivalente ao Artigo 125 da legislação precedente, o que impediu a companhia aérea de apelar aos limites legais se, no momento do acidente existisse um seguro para valores superiores. Foi precisamente a essa norma que o árbitro do caso Faucett se referiu, como um dos argumentos para justificar a sentença de pagamento de somas muito acima das estabelecidas pelos limites da mesma legislação  7.

No Uruguai, os tribunais foram particularmente rigorosos ao determinarem se a companhia aérea tinha o direito de invocar os limites de responsabilidade civil. Em vários casos de perda de carga, argumentou-se que o fato da companhia aérea não ter uma explicação razoável para a perda (o que, obviamente, nunca ocorre na prática) é considerado uma falta equivalente a uma grande negligência e, portanto, equivalente ao dolo ou à má conduta intencional, propiciando sentenças cujas somas excedem os limites dispostos tanto na Convenção de Varsóvia quanto na Legislação Aeronáutica, dependendo do caso 8.

A legislação aeronáutica argentina permite a inaplicabilidade dos limites dos danos "no caso da perda ser causada por dolo da companhia aérea" 9. Esse critério foi levado em consideração em seus tribunais, os quais atribuíram à intenção ao dano um alcance conceitual consideravelmente maior. Por conseguinte, casos de grande negligência foram assimilados como dolo, de modo a evitar a aplicação desses limites 10. As decisões judiciais relativas à aplicação da Convenção de Varsóvia seguiram a mesma direção.

Em resumo, a situação latino-americana com relação à aplicação de danos limitados continua a ser absolutamente incerta, devido à disparidade dos tratados internacionais válidos em cada país, às diferenças e contradições entre os tratados e as legislações domésticas e à clara resistência dos tribunais locais em reconhecerem o direito legal da companhia aérea invocar os limites, favorecendo, ao contrário, aqueles que contratam seus serviços.

III) Danos passíveis de reclamação e quantias indenizatórias recentemente concedidas

Os sistemas legais da maioria dos países latino-americanos estão estruturados com base no sistema de "Código Civil" e especialmente no Código Civil Napoleônico. Nesses sistemas, os danos são classificados de acordo com duas categorias principais: I) os danos pecuniários e II) os danos não pecuniários. Os primeiros incluem danos reais e lucros cessantes; os segundos consistem apenas em "danos morais" ou dor e sofrimento.

Danos reais

Os danos reais são definidos como "a perda real sofrida pelo credor" – nesse caso a vítima imediata – e totalizam a perda real e concreta dos ativos.

Perda de receita futura ou "lucro cessante"

A perda da receita ou de lucro, entretanto, constitui-se do que não foi ganho ou recebido devido ao fato ocorrido. Nesse caso, tenta-se determinar, com razoável grau de certeza, a quantia prevista de receita que a pessoa deixará de obter durante sua vida útil como provedor de recursos financeiros. Como resultado, e de um modo geral, a perda da futura receita deve apresentar as seguintes características:

- A perda da receita deve ser certa: Os casos analisados na maioria dos países latino-americanos parecem concordar que os danos pela perda de receita só podem ser concedidos se forem financeiramente quantificáveis no momento do acidente, e não meramente possíveis ou hipotéticos, como, por exemplo, com base na potencialidade da pessoa, considerando seu grau de estudos, sua posição social e outros fatores.

- As perdas devem ser reais: Os custos que a vítima teria caso o acidente não tivesse ocorrido devem ser calculados e subtraídos. Essa é a consequência lógica dos princípios que sustentam essa instituição legal, assim como o sistema legal dos países latino-americanos.

- A dupla indenização não é permitida: Benefícios de seguros, pensões e todos os outros benefícios que os reclamantes poderiam vir a receber devido ao mesmo fato. Nessa categoria, nenhum dano pode ser reclamado por uma perda que foi reparada, independente desse reparo ter sido fornecido pela pessoa que causou o dano ou por um terceiro.

Considerando esses aspectos, as seguintes regras gerais para se calcular a perda da receita ou dos lucros nesses sistemas legais pode ser determinada, cuja aplicação, obviamente, varia de acordo com as especificidades de cada caso.

- Renda Mensal: Equivale à renda proveniente de mão de obra, excluindo, é claro, os benefícios provenientes de investimentos ou bens de capital cujos herdeiros, ou a própria vítima, dependendo do caso, continuará recebendo após o acidente.

- Deduções: Taxas e Contribuições Provisionadas. São as quantias que jamais constituíram receita para a vítima imediata.

- Incapacidade ou Pensão da Viúva ou do Viúvo: Equivale à receita que substitui os recursos produzidos pela vítima.

- Despesas Médias Mensais da Vítima Imediata: A vítima necessariamente reservava parte de sua receita às despesas pessoais. Para determinar essa soma, pode-se utilizar as estatísticas públicas, estudos, ou consultas a empresas do setor privado.

- Danos ou Benefícios provenientes de Seguros ou de Outras Fontes: Por exemplo, no caso de um seguro de vida que a vítima possa ter contraído em prol de seus herdeiros legais no caso de óbito.

- Extrapolação Temporária da "Perda Líquida Mensal": A renda Mensal, menos a Dedução determina a "Perda Líquida Mensal" que deve ser extrapolada ao longo do tempo, considerando os seguintes fatores:

- Vida Útil: Equivale à idade de aposentadoria legal, o que, na maioria dos países latino-americanos, significa a idade de 65 anos para os homens e de 60 anos para as mulheres. Portanto, a limitação temporária da Perda Líquida Mensal equivale à diferença entre 65 ou 60 anos e a idade da vítima quando de seu óbito ou incapacidade.

- Beneficiários: Esse é um segundo elemento a ser considerado. No caso de um parceiro, a limitação temporária será a previamente indicada, sendo equivalente à idade com a qual a vítima imediata ter-se-ia aposentado e teria recebido uma aposentadoria agora substituída por uma pensão da viúva ou do viúvo. No caso de filhos ou outros beneficiários, a limitação temporária é determinada pelo período de dependência dessas pessoas para subsistência, com base na renda da vítima, por exemplo, no caso de filhos (no Chile):

n até os 18 anos;

n até os 24 anos para filhos universitários.

Sem limite de tempo, caso sejam incapazes de prover sustento próprio.

- Forma de Pagamento dos Danos: Finalmente, e já que a renda teórica é determinada com base mensal durante a vida útil da vítima, não se pode cometer o erro de multiplicar a Perda Líquida Mensal pelo número aplicável de meses para fixar o valor dos danos, já que isso resultaria na arrecadação adiantada de capital que é suscetível de gerar renda adicional sem juros. Deve-se, entretanto, descontar uma quantia , com base na taxa de juros atual para operações de médio e longo prazos. O resultado desses cálculos equivalerá ao valor dos danos para a perda de receita.

Danos morais

Esses danos, entretanto, se referem à esfera não pecuniária, o que torna sua avaliação econômica muito complicada. Eles incluem todos os aspectos extremamente pessoais que resultam da experiência de dor e sofrimento. Por essa razão, concluiu-se que essa categoria deveria ser deixada à avaliação subjetiva do juiz, que deveria – teoricamente – determinar o valor com base nas faixas fixadas pelas decisões judiciais de cada país, como a única forma de evitar um tratamento desigual ou discriminatório.

Em qualquer circunstância, deve ficar claro que o conceito primário de danos morais em nossos sistemas legais não tem um fundamento punitivo; pelo contrário, no sistema legal continental, os danos morais apresentam uma natureza estritamente compensatória, assim como todos os outros danos nesses sistema. A decisão do caso Faucett, previamente citado, é bastante esclarecedora a esse respeito, quando argumenta que "o principal critério a ser levado em consideração nessa matéria certamente deve ser a importância e a gravidade da perda sofrida. Esse é o padrão para os danos, já que este é o objetivo pelo qual a ação é tomada. Portanto, não pode ser usado para razões preventivas ou punitivas, para as quais existem meios legais que não os reparos a danos" 11.

Por conseguinte, no que se refere aos valores desses danos, os casos legais em todos os países latino-americanos oscilam entre diversificados parâmetros de avaliação.

No Chile, a tendência em conceder danos relativamente modestos para a dor e o sofrimento sofreu uma mudança, iniciando com uma série de julgamentos relativos à violação dos direitos humanos por órgãos do estado, dentre os quais a maior indenização foi dada a uma jovem senhora de nome Carmen Gloria Quintana, presa em 1986 por uma patrulha militar do exército chileno, e depois ferida por uma bomba. Ela recebeu 578.313 dólares pelos danos morais causados pelas lesões permanentes em seu rosto e em outras partes de seu corpo 12 .

Em termos de Legislação Aeronáutica, o caso Faucett merece novamente ser citado por ter sentenciado a companhia aérea ao pagamento de 193.925 dólares a cada um de seus pais pelos danos morais causados pela perda de um menor.

A tendência no Uruguai tem sido a de se fixar valores de aproximadamente 50.000 dólares pelos danos morais causados pela perda de um parente. Na Argentina, entretanto, esses valores tendem a ser substancialmente mais elevados, sendo que no Brasil eles são absolutamente imprevisíveis, facilmente totalizando mais de um milhão de dólares.

No Peru, as poucas decisões judiciais de que se tem conhecimento estipularam valores mais modestos de danos, variando de 30.000 a 100.000 dólares. Entretanto, esses também tendem a aumentar como se pode observar nas audiências de conciliação obrigatórias que fazem parte dos procedimentos normais.

Em resumo, conclui-se que toda rigidez formal envolvendo os danos não pecuniários no sistema legal das nações latino-americanas pode ser facilmente "compensada" por aquele que toma a decisão e usa seu poder discrecionário para determinar os danos não pecuniários. Parece haver duas maneiras de se estabelecer um equilíbrio: (a) Julgamento por pessoas de prestígio e integridade reconhecidos; ou, ao contrário, (b) Usando todos os meios para se obter uma revisão da decisão em primeira instância pelos tribunais superiores, se houver uma certeza razoável quanto a sua prudência e equidade, o que só pode ser conhecido após um estudo de suas decisões.

IV) Tribunais competentes e órgãos intervenientes em acidentes aeronáuticos

Um acidente aeronáutico pode estabelecer três tipos de responsabilidade civil:

a) Administrativa, relacionada aos poderes normais das autoridades aeronáuticas de cada país para punir violações de regras por pessoas a bordo ou prestando assistência em solo.

b) Criminal, correspondendo às sanções daqueles que cometem crimes aeronáuticos, como por exemplo, voam alcolizados ou drogados, ou desempenham qualquer atividade aeronáutica sem a licença exigida.

c) Civil, relacionada aos danos reclamados por qualquer terceira parte, a bordo ou em solo, que tenha sido afetada por um acidente aeronáutico.

Esse caráter triplo da responsabilidade civil aeronáutica resulta na intervenção de vários órgãos públicos em caso de acidente aeronáutico. O problema não é tanto causado pela própria função desempenhada por esses órgãos, mas pelas consequências de suas ações nos procedimentos judiciais resultantes do acidente investigado.

Na verdade, estamos nos referindo a entidades estaduais com amplos poderes para investigarem acidentes aeronáuticos e prestarem declarações sobre suas causas, geralmente sem a imparcialidade necessária e sem oferecerem quaisquer mecanismos para revogar suas conclusões. Ao mesmo tempo, já que grande parte de suas ações não são governadas por regras de procedimento, é praticamente impossível garantir que quaisquer das partes envolvidas sejam ouvidas, façam relatos ou formulem apelações de todo tipo para corrigirem irregularidades ou erros.

Apesar dessa situação existir – em vários graus – em todos os países latino-americanos, boa referência é o caso do Chile, posto que é o melhor conhecido.

Nesse país, a investigação por razões administrativas cabe à Junta Geral de Aviação Civil, uma agência subordinada às Forças Armadas no Chile, responsável, no caso de acidentes aeronáuticos, em determinar as causas do acidente, adotar medidas para impedir novos acidentes e definir responsabilidades civis administrativas para as violações à legislação e às regras aeronáuticas.

É essa mesma entidade que administra os aeroportos públicos no Chile, controla o tráfego aéreo, emite certificados de aeronavegabilidade de aeronaves, emite licenças para a tripulação, instala e opera serviços de telecomunicação e rádio, dentre várias atividades. Considerando esses aspectos, resta saber se esse órgão é suficientemente independente para estabelecer suas próprias responsabilidades, se necessário, em caso de um acidente aeronáutico causado por um erro do controlador de vôo ou por uma condição deficiente de um instrumento sob seu controle.

Entretanto, qualquer acidente aeronáutico, independente de sua seriedade ou natureza, que resulte em lesão ou óbito de pessoas, é julgado por um Juiz Aeronáutico, também oficial das Forças Armadas chilenas, cujas ações são governadas pelos procedimentos estabelecidos pelo Código de Justiça Militar Chileno. Esse tribunal especial prossegue com a investigação, simultaneamente com aquela feita pela "Junta Geral de Aviação Civil", entretanto, atendo-se à existência de crimes aeronáuticos passíveis de receberem punição penal.

A independência desse Juiz Aeronáutico é também, a priori, questionável pelas razões já expostas, apesar de que sua decisão pode ser revisada por uma Corte Marcial – uma Corte composta de cinco juizes, dois civis e três oficiais das Forças Armadas – e, finalmente, pela Corte Suprema da República do Chile.

Finalmente, o julgamento por possível responsabilidade civil é tentado perante os tribunais de justiça ordinários que, por meio de procedimentos processuais têm o poder de conceder as indenizações apropriadas. Infelizmente, trata-se de juizes não especializados que resolvem toda sorte de problemas e carecem de experiência técnica para considerar ou questionar as conclusões da investigação oficial. Portanto, eles tendem a seguir as conclusões dessas investigações em todos os aspectos. Suas decisões, em qualquer caso, podem ser revisadas pelos tribunais compostos de plenários, Cortes de Apelação e a Corte Suprema, as quais têm o poder de revisar os fatos e a legislação sobre a qual a decisão em primeira instância se baseou, mesmo se, na prática, eles não tendem a exercer esse direito, pelas razões já expostas.

Em resumo, os procedimentos apresentam deficiências estruturais que dão origem à eventual carência de imparcialidade e à indisponibilidade de claros procedimentos e controles no âmbito dos órgãos estatais responsáveis pela determinação das causas do acidente.

No Chile, a solução para esses casos particularmente sérios foi a de tentar levar o caso à arbitragem, procedimento aparentemente mais apropriado para resolver essas deficiências. No resto dos países latino-americanos, entretanto, a grande maioria de processos importantes é julgada pelos Tribunais de Justiça Ordinários.

Apesar dos países latino-americanos terem sistemas e organizações jurídicos semelhantes, há diferenças importantes entre eles no que se refere à aplicação da Legislação Aeronáutica. Entretanto, o quadro jurídico geral é semelhante, assim como as tendências.

É notável verificar a rapidez do avanço da jurisprudência nos últimos dez anos, especialmente no que se refere às quantias estabelecidas por danos extra-patrimoniais. Entretanto, essa situação não estará fora de controle no que se refere aos valores de natureza compensatória das indenizações em todos os sistemas relacionados ao Código Civil.

Em geral, foram identificados os aspectos mais importantes a serem considerados nos casos aeronáuticos. Os outros aspectos dependerão dos méritos e elementos de cada caso. n

Referências:

* O autor reconhece a assistência inestimável do Dr. Jorge Velarde Rodrigo, Elías & Medrano, do Dr Joaquín Reyes, Estudio Reyes Rius, do Dr Eduardo Cosentino, Langbehn & Cosentino, do Sr. José Gabriel Assis de Almeida, Assis de Almeida Advogados, do Sr Emilio Sahurie, da Sra Loreto Moraga, do Sr Javier Yañez e do Sr Radoslav Depolo, Estudio Carvallo..    Volta

** Advogado, Estudio Carvallo, Chile.     Volta

1 Texto da apresentação feita no Seminário Aviation Issues in the New Millenium, organizado pela International Bar Association, em Washington, em outubro de 2000..    Volta

2 A sentença proferida pelo Juiz Sr. Juan Achurra, em 30 de janeiro de 1998, em Santiago do Chile, declarou, em seu inciso 18º, o seguinte: "Nenhuma controvérsia existe quanto ao fato do contrato de transporte ter sido acordado no Peru, tampouco há dúvida, na opinião do Juiz, que a legislação substantiva aplicável resolva os aspectos fundamentais da questão na legislação peruana.".    Volta

3 Citação literal da primeira cláusula do Artigo 2º da Legislação Aeronáutica chilena, promulgada em 9 de janeiro de 1990..     Volta

4 O inciso 10º da sentença decretada em 26 de junho de 1996 pelo Juiz Don Mario Carozza da 6º Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santiago declara literalmente: "Apesar de ser verdade que o contrato de transporte aéreo válido entre as Partes menciona a Convenção de Varsóvia, o que poderia ser aplicado na execução desse contrato, isso não exclui a aplicabilidade da Legislação Aeronáutica de nosso país, principalmente considerando que a legislação nacional, sendo posterior a dito Tratado, aumenta as exceções relativas à responsabilidade civil da companhia aérea normalmente estabelecida em legislações que regulam o transporte aéreo sob uma ótica quanto à viabilidade de sua atividade econômica.".     Volta

5 O inciso 15º da sentença decretada em 5 de novembro de 1996 pela Juíza Sra Patricia Gómez da 14º Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santiago faz referência indiscriminada às cláusulas da Legislação Aeronáutica chilena e das Convenções de Varsóvia e Haia, sem indicar sua hierarquia interna..    Volta

6 A parte relevante do inciso 26º da decisão decretada em 2 de julho de 2000 pela Juíza Sra Jessica Gonzalez da 12º Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santiago determina o seguinte: "A companhia aérea será responsável pelo valor total da mercadoria somente no caso de sua "culpa" ou dolus (artigo 150 da Legislação Aeronáutica); já que a defesa não pôde anuir foi provada nesse caso que sua culpa é presumida. Já que a defesa não forneceu uma prova das circunstâncias imprevistas alegadas de Atos de Deus, tampouco tomou os devidos cuidados, a perda da mercadoria pode ser imputada por sua negligência.".     Volta

7 O inciso 49º do julgamento realizado pelo Juiz Sr Juan Achurra determina: "A apólice de seguros da Faucett inclui sua inteira frota de aeronaves e cobre a fuselagem das aeronaves, das peças sobressalentes e a responsabilidade civil resultante de suas operações. Quanto à aeronave acidentada, um Boeing 737 com licença OB-1451 e 122 assentos e a cobertura do seguro por perda total equivale a uma cobertura de US$ 200.000.000. – Esta seria, portanto, a perda máxima a ser indenizada em caso de responsabilidade civil.".    Volta

8 O ponto 4º do inciso II da sentença proferida em 21 de dezembro de 1995 pelo Juiz Sr John Pérez da 21º Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Montevidéu determina: "O fato de uma companhia aérea não ter nenhuma indicação do que ocorreu a uma carga entregue aos seus cuidados mostra falta de controle, desordem administrativa e a incompetência e negligência de seu pessoal administrativo, constituindo grande negligência.".    Volta

9 Citação literal de parte do Artigo 147 da Legislação Aeronáutica argentina..    Volta

10 Limites estabelecidos pela decisão em "Regis de Cabrera e Outros v. Aeroclub Argentino" ( "La Ley" Magazine, 110-151)..    Volta

11 Citação literal de parte do inciso 60º da sentença do Juiz Sr Juan Achurra no caso Faucett..    Volta

12 Quintana v. o Estado chileno, 28º Tribunal Cível de Santiago, Autos nº 1418-90. A decisão em primeira instância foi anunciada em 25 de julho de 1997. O inciso 26º determina que o réu não pode desempenhar nenhuma atividade normal, que sua aparência física foi completamente alterada e que os ferimentos lhe causam permanente angústia e dor que não desaparecerão com o tempo.    Volta

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