Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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ENTREVISTA *
Kai-Uwe Schrogl

"Estado Lançador" Abre Caminho ao Debate
de Grandes Questões Atuais

"A discussão do conceito de ‘Estado lançador’ toca pela primeira vez a questão das atividades espaciais comerciais e privadas", afirma o Dr. Kai-Uwe Schrogl, presidente do Grupo de Trabalho do Subcomitê Jurídico do Copuos, que estuda o assunto.

    O dr. Kai-Uwe Schrogl chefia a área de Estratégias de Negócios e Relações Exteriores (Business Strategies and External Relations) do Centro Aeroespacial Alemão (German Aerospace Center) e preside o Grupo de Trabalho constituído pelo Subcomitê Jurídico do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (Copuos) com a tarefa de examinar o conceito jurídico de "Estado Lançador" pelo período de três anos, que começou este ano.

    Ele participou do 51º Congresso Internacional de Astronáutica, realizado no Rio de Janeiro de 2 a 6 de outubro passado, e, em 11 de outubro, visitou a sede da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), onde conversou demoradamente com um grupo de membros do Núcleo de Estudos de Direito Espacial sobre os problemas relativos à definição de "Estado lançador", que também vem sendo analisada em sucessivas reuniões do Núcleo.

    Ao final do encontro, ficou acertado que o dr. Kai-Uwe Schrogl responderia uma série de perguntas a serem formuladas pela editoria da "Revista Brasileira de Direito Aeroespacial". Do trato, rigorosamente cumprido, resultou a entrevista que se segue:

    1. Por que e como a questão do conceito jurídico de "Estado lançador" foi proposta no Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (Copuos)? Qual foi o contexto histórico e a trajetória dessa proposta?

- O conceito jurídico de "Estado lançador" fazia parte da proposta européia para aperfeiçoar a Convenção de Registro (1). Essa iniciativa, de 1998, foi discutida de modo bastante controverso no Subcomitê Jurídico do Copuos. As delegações não foram capazes de entrar em acordo sobre um pacote de propostas concretas para alterar a Convenção de Registro, mas concordaram, pelo menos, com a opinião de que o conceito jurídico de "Estado lançador" deveria ser analisado à luz das evoluções recentes. Foi então que o Subcomitê Jurídico decidiu criar um Grupo de Trabalho dedicado a esse tema por um período de três anos, iniciado em 2000.

    2. Por que os Estados deveriam adotar uma nova visão frente à definição jurídica de "Estado lançador"?

- Havia uma razão muito concreta para trazer à tona este assunto. Era a criação da empresa privada Sea Launch, anunciando o lançamento de satélites a partir de uma plataforma ancorada em alto mar, no Oceano Pacífico – fora, portanto, das águas territoriais de qualquer país. À época, surgiu também a preocupação de que poderia ser muito difícil identificar o Estado lançador, portador da responsabilidade estatal (responsability) e da responsabilidade civil (liability) pela nova empresa (venture). Isso se devia ao grande número de parceiros internacionais integrantes do projeto, liderado por empresas dos EUA e da Rússia, e também ao fato de que sua sede fora registrada nas Ilhas Cayman. Hoje, a preocupação já não existe, porque não só os EUA mas também o Reino Unido licenciaram a empresa, tornando-se, eles próprios, seus Estados lançadores. Um problema latente continua existindo: na era das atividades espaciais privadas, seremos capazes de identificar o "Estado lançador" responsável por um acidente efetivo ou, na pior das hipóteses, poderá não haver Estado lançador de modo algum e os prejuízos, neste caso, não serão reparados?

    3. Será possível alterar de algum modo o conceito jurídico de "Estado lançador"?

- As discussões a respeito apenas começaram e, em 2001, vamos analisar possíveis insuficiências do conceito. O Grupo de Trabalho, porém, não tem mandato para alterar nenhum texto jurídico. Teremos simplesmente de examinar de perto possíveis problemas de aplicação do conceito. Algumas delegações já apontaram questões como a da realização de lançamentos a partir do alto mar ou do espaço aéreo, bem como a da venda de objetos espaciais já colocados em órbita.

    4. É possível reduzir ou minimizar a responsabilidade civil de um Estado lançador sobre um objeto espacial que já não está sob seu controle e sua propriedade?

- Dentro do regime jurídico em vigor, isso só é possível se os parceiros em questão concordarem com estes termos. Se eles não criarem disposições com tal alcance, o proprietário original (de um objeto espacial) permanecerá responsável mesmo se abandonar por completo o seu controle. Esta é uma das questões que certamente serão levantadas nas deliberações do próximo ano. Como eu disse, o mandato do Grupo de Trabalho não permite que tenha como objetivo mudar os tratados internacionais, mas nós podemos, pelo menos, identificar problemas que tenham surgido nos últimos anos no quadro da crescente comercialização e privatização das atividades espaciais. Por aí, podemos abrir caminho a mais considerações sobre tais problemas no Subcomitê Jurídico com base no modo comum de entendê-los. Esse entendimento comum não é fácil de ser atingido nas organizações internacionais, sendo, portanto, em si mesmo uma vantagem capaz de levar a medidas concretas no futuro.

    5. Qual pode ser o papel da legislação nacional neste tipo de problemas?

- A legislação nacional que trata do licenciamento (autorização) das atividades espaciais é o vínculo entre as obrigações internacionais dos Estados partes dos tratados espaciais, e de suas organizações privadas. Através do licenciamento, o Estado dá a conhecer seu status como "Estado lançador" responsável, o que, em geral, é uma boa notícia para a comunidade internacional, potencialmente ameaçada por acidentes. Como o problema da interpretação do conceito jurídico de Estado lançador surgiu com as atividades espaciais privadas, o estabelecimento de sistemas nacionais de licenciamento poderia ser visto como um meio bastante eficiente de resolver muitos dos problemas emergentes.

    6. Países emergentes nas atividades espaciais, como o Brasil, poderão ter uma contribuição positiva nas discussões em torno da definição de "Estado Lançador"?

- Todos os 61 países membros do Copuos estão chamados a participar ativamente das discussões. A meu ver, no entanto, uma expectativa particular está dirigida ao Brasil. Isso não se deve apenas ao papel fundamental desempenhado pelo Brasil, junto com minha delegação, na elaboração da Declaração sobre Benefícios Espaciais (2), de 1996. Isso é especialmente verdade em vista da situação do Brasil, de país certamente não emergente, mas com capacidades espaciais muito mais amadurecidas, que o transformam em forte participante nesta área. Convertendo Alcântara em centro internacional de lançamentos espaciais, o Brasil se tornará um concorrente no setor. E com especial atenção se observará como o Brasil se comporta com relação às suas obrigações internacionais decorrentes dos tratados espaciais, que são, para este efeito, o Tratado do Espaço (3), a Convenção de Responsabilidade (4) e a Convenção de Registro. Este último, no entanto, ainda não foi ratificado nem assinado por seu país. Além disso, o Brasil pode, em particular, ajudar a convencer os países em desenvolvimento de que nós não devemos admitir nas atividades espaciais a síndrome da "bandeira de conveniência", que temos nos serviços de navegação marítima, pela qual as organizações privadas se registram em países com menos regulamentação e portanto com menor nível de proteção do interesse comum.

    7. Quais poderão ser os resultados do Grupo de Trabalho do Subcomitê Jurídico do Copuos sobre a revisão do conceito de "Estados lançador"? Poderá o Grupo de Trabalho formular propostas concretas ao Subcomitê Jurídico?

- Como eu disse antes, o Grupo de Trabalho, seguramente, não vai propor a mudança de nenhum tratado internacional vigente. Mas nós podemos enfocar o tema em dois níveis. No primeiro nível, poderíamos identificar e nos entender em torno de problemas de aplicação do conceito e propor soluções mediante, por exemplo, interpretações acertadas de comum acordo. Num segundo nível, poderíamos ter como objetivo a identificação de blocos básicos de construção para os regimes de licenciamento nos países. O prazo de três anos para a nossa tarefa é bem curto se levarmos em conta que o Grupo de Trabalho terá só um punhado de reuniões durante o período de duas semanas por ano. Essa é apenas a impressão baseada nas discussões havidas durante a primeira sessão. O resultado vai depender por inteiro das opiniões dos Estados membros, que hão decidir nas próximas duas sessões que tipo de propostas seremos capazes de levar adiante por consenso.

    8. Gostaria de acrescentar alguma indicação ou observação sobre esse assunto?

- Com o tema do conceito jurídico de "Estado lançador", estamos, pela primeira vez no Subcomitê Jurídico, tocando na questão mais ampla das atividades espaciais comerciais e privadas. Até agora, ninguém tinha uma idéia clara sobre como tratar desta nova e vasta área, que pode ser vista como a terceira fase do desenvolvimento do Direito Espacial, seguindo-se à primeira fase, caracterizada pela elaboração dos projetos de tratados espaciais, e à segunda, quando se adotaram as resoluções temáticas da Assembléia Geral das Nações Unidas (5). Este é um momento bastante decisivo do processo e as delegações que participam do Subcomitê Jurídico têm consciência disso. Isso as torna cautelosas, por um lado, mas, por outro, também muito empenhadas em alcançar um resultado substantivo.

Referências

(1) Convenção Relativa ao Registro de Objetos Lançados ao Espaço Cósmico, adotada pela Assembléia Geral da ONU em 12 de novembro de 1974 e aberta à assinatura em 14 de janeiro de 1975; entrou em vigor em 15 de setembro de 1976. Foi assinada por 4 países e ratificada por 42. O Brasil não está entre eles.

(2) Declaração sobre a Cooperação Internacional na Exploração e Uso do Espaço Exterior em Benefício e no Interesse de todos os Estados, Levando em Especial Consideração as Necessidades dos Países em Desenvolvimento, que integra a Resolução 51/122 aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 13 de dezembro de 1996.

(3) Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes, aprovado pela Assembléia Geral da ONU em 19 de dezembro de 1966 e aberto à assinatura em 27 de janeiro de 1967; entrou em vigor em 10 de outubro de 1967. Já foi assinado por 27 países e ratificado por 96, inclusive o Brasil.

(4) Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais, aprovado pela Assembléia Geral da ONU em 29 de novembro de 1971 e aberta à assinatura em 29 de março de 1972; entrou em vigor em 1º de setembro de 1972. Já foi assinada por 26 países e ratificada por 71, inclusive o Brasil.

(5) Princípios Reguladores do Uso pelos Estados de Satélites Artificiais da Terra para Transmissão Direta Internacional de Televisão, Resolução nº 37/92, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1982; Princípios sobre Sensoriamento Remoto, Resolução nº 41/65, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 9 de dezembro de 1986; Princípios Relativos ao Uso de Fontes de Energia Nuclear no Espaço Exterior, Resolução 47/68, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 14 de dezembro de 1992; e a já citada Declaração sobre a Cooperação Internacional na Exploração e Uso do Espaço Exterior em Benefício e no Interesse de todos os Estados, Levando em Especial Consideração as Necessidades dos Países em Desenvolvimento

Nota:

    Todos os documentos citados acima encontram-se no Livro "Direito Espacial – Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições em vigor", editado pela Agência Espacial Brasileira (AEB) e Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), 1997. A maioria pode ser obtida neste site, em "Textos".

* Entrevista concedida a José Monserrat Filho   (Volta)

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