Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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O Conceito de "Estado Lançador"

Álvaro Fabricio dos Santos
Chefe da Assessoria Jurídica
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE

Um dos temas de maior discussão na atualidade, no âmbito do Direito Espacial, diz respeito à conceituação de "Estado Lançador".

Para se ter uma idéia da importância dada à matéria, vale mencionar que o Subcomitê Jurídico do COPUOS (Commitee on Peaceful Use of Outer Space) possui um Grupo de Trabalho destinado exclusivamente ao exame do tema. As atividades de referido Grupo tiveram início na 39ª Sessão, realizada no período de 27/03 a 06/04/2000, e ainda se estenderão por mais 2 (dois) anos.

Contudo, pergunta-se qual a dificuldade ou importância de mencionado assunto, vez que os Instrumentos Internacionais vigentes já contemplam uma definição clara sobre o "Estado Lançador". Nas palavras do professor francês Armel Kerrest, ao apresentar o tema na 39ª Sessão do Subcomitê Jurídico do COPUOS, "em 99% de todos os casos, o sistema criado em torno da noção de Estado Lançador tem servido e ainda serve para o objetivo que lhe foi dado. Todavia, em 1% dos casos alguns problemas podem ocorrer" (1). Obviamente, essa estatística desestimula um estudo específico sobre a matéria, face à sua reduzida aplicabilidade prática.

Não obstante, a despeito da estatística apresentada pelo Prof. Kerrest, parece que a matéria requer uma análise mais aprofundada, objetivando regulá-la, antes que algum incidente fático venha a ocorrer.

O conceito hoje vigente de "Estado Lançador" é bastante amplo e, justamente aí, reside a necessidade de aplicação de uma interpretação restritiva, de maneira a obter-se uma definição precisa do Estado responsável por um determinado lançamento espacial. A diversidade de interpretações pode gerar pretextos para alegar-se isenção de responsabilidade, na eventual ocorrência de sinistros. Há, portanto, que se determinar o "responsável principal", ou seja, o Estado que, em primeiro plano, responderá pelas conseqüências advindas de um lançamento espacial.

Segundo o art. 7º do Tratado de 1967 (Tratado sobre os Princípios Reguladores dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes), "Estado Lançador" é todo aquele que procede ou manda proceder o lançamento de um objeto ao espaço cósmico, ou ainda, qualquer Estado-Parte cujo território ou instalações servirem ao lançamento de um objeto no espaço cósmico ou no espaço aéreo, inclusive na Lua e demais corpos celestes.

A Convenção de 1972 (Convenção Sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais) reiterou o conceito de "Estado Lançador" trazido pelo Tratado de 1967. Nos termos da alínea "c", de seu art. 1º, "Estado Lançador" é "um Estado que lança ou promove o lançamento de um objeto espacial" (inciso I); ou "um Estado de cujo território ou de cujas instalações é lançado um objeto espacial" (inciso II).

Para rematar, cite-se ainda o conceito expresso na alínea "a" do art. 1º da Convenção de 1975 (Convenção Relativa ao Registro de Objetos Lançados no Espaço Cósmico), segundo o qual "Estado Lançador" significa: "O Estado que lança ou promove o lançamento de um objeto espacial" (inciso I); ou "o Estado de cujo território ou base é lançado um objeto espacial" (inciso II).

Observe-se que os conceitos trazidos pelos 3 (três) Instrumentos Internacionais são praticamente idênticos. Registre-se que o Tratado de 1967, ao definir o "Estado Lançador", adjetiva-o como Estado-Parte de referido Instrumento. Disso se dessumiria, em uma interpretação literal, que um Estado que ainda não aderiu ao Tratado de 1967 não poderia ser conceituado como "Estado Lançador". Parece, contudo, que essa imperfeição foi notada nas Convenções de 1972 e 1975, para as quais qualquer Estado pode ser um potencial "Estado Lançador".

Constata-se, ainda, que a Convenção de 1975, conforme versão em português, refere-se à "base" de lançamentos de um Estado, enquanto que o Tratado de 1967 e a Convenção de 1972 reportam-se às "instalações" de um Estado. Parece que a expressão "base" é adequada às instalações físicas de um determinado Estado. Em casos de guerra, por exemplo, a base de lançamentos poderia ser instalada em território de um outro País aliado ou beligerante. Por seu turno, o termo "instalações" é melhor adaptado aos dias atuais, quando os lançamentos podem ser realizados em águas internacionais ou no espaço aéreo.

Os Instrumentos Internacionais vigentes também procuraram disciplinar a questão da responsabilidade estatal nos lançamentos espaciais. O art. 6º do Tratado de 1967 estabelece que "os Estados-Parte do Tratado têm a responsabilidade internacional das atividades nacionais realizadas no espaço cósmico" e que, no caso de atividades realizadas por uma organização internacional no espaço cósmico, "a responsabilidade no que se refere às disposições do presente Tratado caberá a esta organização internacional e aos Estados-Parte do Tratado que fazem parte de referida organização. Por seu turno, o art. 7º do referido Tratado disciplina que o Estado Lançador "será responsável do ponto de vista internacional pelos danos causados a outro Estado-Parte do Tratado ou a suas pessoas naturais pelo referido objeto ou por seus elementos constitutivos". Também o art. 5º da Convenção de 1972, em seu item 1, estabelece que "sempre que dois ou mais Estados, juntamente, lancem um objeto espacial eles serão, solidária e individualmente, responsáveis por qualquer dos danos causados". O item 3 desse mesmo dispositivo deixa assente que "um Estado de cujo território ou de cujas instalações é lançado um objeto espacial será considerado como Participante no lançamento conjunto".

Há que se destacar a atualidade e propriedade dos três Instrumentos Internacionais aqui citados. Constata-se que, apesar de decorridas cerca de três décadas da aprovação de referidos Instrumentos, os mesmos ainda se encontram plenamente aplicáveis.

É curioso observar que, à época de elaboração dos Instrumentos Internacionais, não se cogitava da possibilidade de lançamentos realizados a partir de águas internacionais (sea launch), ou do espaço aéreo (caso dos lançamentos dos dois Satélites Brasileiros de Coleta de Dados – SCD-1 e SCD-2, realizados pelo foguete Pegasus, instalado em um avião). Contudo, os Instrumentos Internacionais já englobavam no conceito de "Estado Lançador", não só o território do país, mas também suas bases ou instalações (2) .

Por outro lado, há que se considerar um aspecto histórico de inegável interferência nos Instrumentos Internacionais anteriormente citados. Rememore-se que, à época da aprovação dos mesmos, vivia-se sob a égide da "guerra fria", quando norte-americanos e russos disputavam a supremacia bélica e tecnológica do Planeta.

Depreende-se dos textos dos Instrumentos Internacionais que as atividades espaciais sempre seriam realizadas pelos Estados ou sob a aprovação e fiscalização destes. Certamente, àquela época, não se imaginava que a iniciativa privada teria um interesse tão intenso pelo espaço cósmico.

Nos dias de hoje, muitos satélites, em especial os de comunicação, são produzidos por empresas particulares, sem qualquer participação estatal. Também as atividades de lançamento de objetos espaciais têm sido realizadas por empresas privadas.

Neste contexto é que se denota a falta de uma definição precisa para o "Estado Lançador", ou seja, para o Estado que será o principal responsável na eventualidade de um sinistro decorrente do lançamento de um objeto espacial.

Preceitua o item 2 do Art. 2º da Convenção de 1975 que "quando houver dois ou mais Estados Lançadores relacionados com qualquer objeto espacial, eles decidirão, em conjunto, qual deles registrará o objeto".

Portanto, todos os problemas poderiam ser facilmente resolvidos se imaginássemos que o Estado Lançador, assim considerado o principal responsável, seria aquele que houvesse efetivado o registro do objeto espacial. Ao Estado Lançador, na hipótese de lançamento conjunto com outros países, restaria o direito de regresso contra os outros Estados participantes, fundamentado no art. 5º da Convenção de 1972.

Entretanto, na prática, sabe-se que os problemas não se resolverão de forma tão singela, mormente quando se tem em conta a expressiva presença da iniciativa privada nas atividades espaciais.

No âmbito espacial, é inegável que o canibalismo de um mercado globalizado pode trazer riscos à Humanidade; é inegável que os interesses comerciais podem se sobrepor às questões de segurança do Planeta.

Essas preocupações também merecem reflexão por parte das autoridades governamentais brasileiras, principalmente no momento atual, quando já se iniciou a comercialização de parte da área do Centro de Lançamentos de Alcântara - CLA, no Maranhão, com empresas estrangeiras. Face à sua posição geográfica privilegiada, diz-se que o CLA possui elevado potencial comercial, servindo de base de lançamento para empresas estrangeiras. Oportuno mencionar que o The New York Times Journal, em sua publicação de 23/05/2000, trouxe uma reportagem sobre o CLA. Na matéria, diz-se que "no negócio de lançamento de satélites, a localização é tudo. Em razão desse simples fato, a base espacial que o Governo Brasileiro construiu e agora está sendo disponibilizada a empresas e governos estrangeiros, pode tornar-se, brevemente, uma propriedade muito valiosa" (3).

Tomando-se por referência o exemplo do CLA, podem ser suscitadas diversas questões que revelam a importância da matéria em apreço.

Em termos comerciais, sabe-se que, quanto maior o número de exigências, menor a probabilidade de efetivação do contrato. Desta forma, se for exigido, para a realização de um lançamento espacial, a identificação da carga útil do satélite, a especificação do destino que será dado às informações captadas ou sinais transmitidos, a contratação de seguro total, entre outras, certamente não haverá interesse pela celebração do contrato.

Por outro lado, a ausência de informações capazes de identificar o objeto que vai ser lançado ao espaço cósmico, pode fazer com que o Estado de onde ocorreu o lançamento seja considerado negligente perante a comunidade internacional.

A título ilustrativo e para melhor compreensão do tema, imagine-se o lançamento, realizado a partir do CLA, de um objeto espacial fabricado pelo país "A", em um veículo lançador do país "B".

De acordo com o conceito de "Estado Lançador" hoje vigente, ele poderia ser o Brasil (Estado de cujas instalações ocorre o lançamento), o país "A" (Estado que manda proceder o lançamento), ou o país "B" (Estado que promove o lançamento).

Para tornar a questão mais interessante, imagine-se que o Brasil não teve acesso às informações da carga útil do objeto lançado e tampouco exigiu a contratação de seguro, vez que tais exigências afastariam o interesse pela escolha do CLA. Considere-se, ainda, que o registro do objeto espacial foi feito pelo próprio país "A", que também o fabricou e mandou proceder o lançamento.

Após lançado o objeto ao espaço cósmico, soube-se que sua carga útil era constituída de uma substância química que poderia causar risco à Humanidade, caso ocorresse uma explosão do satélite.

Obviamente, em uma situação dessas, todos os países envolvidos procurariam eximir-se de responsabilidade, atribuindo a culpa um ao outro.

Poder-se-ía chegar a uma solução singela, qual seja, o país "A", que fabricou o objeto espacial, mandou proceder o seu lançamento e foi responsável por seu registro é quem deveria responder por todos os danos.

Entretanto, nada se imputaria ao país "B" ou ao Brasil (respectivamente, aquele que promoveu o lançamento e aquele que permitiu a utilização de seu território para tanto) que apenas atentaram para seus interesses comerciais, sem qualquer preocupação com o risco impingido à Humanidade.

Note-se que uma solução superficial poderia ensejar outras situações ainda mais críticas. Supondo que a responsabilidade fosse atribuída exclusivamente ao país responsável pelo registro do objeto espacial, abrir-se-ía a possibilidade de conluio para a consumação de objetivos escusos. No exemplo citado, o país "B" ou o Brasil, conluiados com o país "A", também poderiam ter interesse nos resultados que adviriam do indigitado lançamento.

Enfatize-se que o aspecto comercial, que foi o determinante para a participação do país "B" e do Brasil, na prática passou a ter importância secundária, face ao risco iminente causado à população da Terra (risco este que teve a contribuição direta dos citados países).

Destarte, não seria correto imputar penalidades a todos os envolvidos naquele indigitado lançamento? Não seria justo que os três países arcassem com os custos para o resgate ou expulsão daquele objeto da órbita terrestre?

Parece, porém, ainda fazendo remissão ao exemplo colocado em pauta, que, caso o país "B" e o Brasil tivessem exigido do país "A" todas as informações relativas ao objeto espacial a ser lançado, tais como, objetivo da missão e identificação de sua carga útil, não lhes seria imputável qualquer culpa. Na espécie, o ilícito seria imputável exclusivamente ao país "A".

Observe-se que o exemplo trazido à colação revela a presença de entidades governamentais, que podem ser penalizadas mediante embargos comerciais ou outras retaliações da comunidade internacional. Supondo, entretanto, que os envolvidos fossem empresas privadas de três países distintos, a aplicação de penalidades seria mais difícil, ante os obstáculos da legislação interna de cada nação. Neste diapasão, constata-se que a aplicação da mencionada regra do art. 5º da Convenção de 1972 poderia ser comprometida.

Ao que se pressupõe, o Estado que promove o registro do objeto espacial detém todos os elementos capazes de identificá-lo, sendo conhecedor de suas especificações técnicas e de sua finalidade. Assim, parece razoável qualificar como "Estado Lançador", ou principal responsável, aquele que promove o registro do objeto espacial, sem embargo da responsabilidade de quaisquer outros Estados que participem do lançamento, quer seja promovendo-o, quer seja autorizando a realização em seu território.

Existe ainda outra questão interessante que diz respeito aos lançamentos promovidos por Estados que não aderiram ao Tratado de 1967 ou às Convenções de 1972 e 1975. Referidos Estados podem ser considerados "Estados Lançadores"?

Destaque-se que o Brasil ainda não assinou a Convenção de 1975 (Convenção Relativa ao Registro de Objetos Lançados no Espaço Cósmico), mas, consoante informado pelo Chefe da Delegação Brasileira na 39ª Sessão do Subcomitê Jurídico do COPUOS, deve fazê-lo brevemente, ante o crescente desenvolvimento das suas atividades espaciais (4).

Suponha-se que um Estado não signatário do Tratado de 1967 e das Convenções de 1972 e 1975 deseje efetuar um lançamento a partir do CLA. Na hipótese de sinistro, seria o Brasil considerado o principal responsável pois, apesar de não ser signatário da Convenção de 1975, ratificou o Tratado de 1967 e a Convenção de 1972? Lembre-se que o Brasil não foi signatário da Convenção de 1972 e, portanto, a princípio, não teria obrigação de registrar o objeto espacial, a despeito da ratificação dos outros dois instrumentos internacionais.

Constata-se que a adesão aos Instrumentos Internacionais que regulam as atividades espaciais também vai se tornando condição essencial à realização das mesmas. Infelizmente, ainda existem Nações que causam preocupação à Humanidade e que são potenciais ameaças à paz mundial. Em função destes casos, torna-se imperiosa a sujeição dos Estados aos Instrumentos Internacionais vigentes, como forma de assegurar-se uma exploração pacífica e eqüitativa do espaço cósmico, a despeito do nível de desenvolvimento tecnológico dos países.

Como se verifica, as dúvidas referentes ao tema "Estado Lançador" são muitas e, provavelmente, aumentarão. Já se tem notícia de consórcio de empresas de países distintos para fabricação e lançamento de objetos espaciais.

O que parece irrefutável é a responsabilidade dos Estados pelas atividades espaciais (seja de fabricação ou de lançamento) das empresas privadas neles sediadas. Referida responsabilidade é extensiva a quaisquer outros Estados que participem do lançamento, ainda que com interesses estritamente comerciais. Para tanto, esses Estados deverão ter acesso a todas as informações necessárias, de modo a verificar se não existe risco à Humanidade, ou se não há afronta aos Instrumentos Internacionais aprovados pela Assembléia Geral das Nações Unidas. Para consecução desse objetivo, mister se faz que os Estados adotem procedimentos uniformes de fiscalização, relegando a segundo plano os aspectos meramente comerciais da operação.

Já se disse que o futuro da Humanidade está no espaço e, com base nessa assertiva, compete aos Estados zelar para que ele seja explorado de maneira comedida, racional e segura.

Notas:

1 "The Notion of Launching State in the Light of Space Activities" – Armel Kerrest – Professor da Universidade de Brest – França. (Voltar)

2 Essa particularidade foi observada em reunião do Núcleo de Estudos da SBDA, realizada aos 02 de junho de 2000  (Voltar)

3 A Developing Nation on the Frontier of Space" – artigo escrito por Larry Rother  (Voltar)

4 O motivo alegado para a não adesão do Brasil à Convenção de 1975 é a falta de informações no procedimento de registro. Ao ver das autoridades brasileiras, à época, os dados a serem fornecidos para registro deveriam ser satisfatoriamente detalhados, de modo a incluir a natureza, objetivos e riscos associados aos objetos lançados no espaço cósmico  (Voltar)

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