Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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DISCURSO *

O Brasil e o Acesso Democrático
aos Benefícios do Espaço

Min. Antônio Guerreiro
Diretor-Geral do Departamento de Temas Especiais
Ministério das Relações Exteriores

 

"Antes de mais nada, quero agradecer, em nome do Ministro da Ciência e Tecnologia, Embaixador Ronaldo Sardenberg, o honroso convite para estar aqui e poder tecer alguns breves comentários sobre assuntos relativos à área espacial. O Ministro Sardenberg, impossibilitado de comparecer a este evento em função de outros compromissos previamente assumidos, pediu-me que transmitisse a este importante fórum os votos de maior sucesso em suas discussões, que certamente contribuirão para o melhor entendimento de questões da maior relevância para todos aqueles lidam com temas espaciais.

A alguns olhos mais argutos pode não ter passado despercebido o fato de o Ministro Sardenberg - atualmente à frente do Ministério da Ciência e Tecnologia - ter solicitado que um integrante de outra pasta - a das Relações Exteriores – viesse representá-lo nesta ocasião. Creio que a partir dessa constatação, que certamente ocorreu a muitos dos senhores, eu poderia iniciar minhas palavras, ressaltando que a dimensão política e a tecnológica seguem visceralmente imbricadas quando se trata de questões espaciais. Hoje em dia, a atividade espacial depende cada vez mais dos setores de alta tecnologia, o que não tem, de maneira alguma, diminuído a importância dos fatores políticos na conformação das atividades espaciais.

É exatamente sobre essa dimensão política que quero dar o maior enfoque de minhas palavras. Essa dimensão é, naturalmente, dominada por três questões que eu consideraria fundamentais: primeiramente, a dos usos, pacíficos ou não, do espaço exterior; em segundo lugar, a do papel a ser desempenhado pelos Estados – e pelo Sistema das Nações Unidas – frente à crescente valorização dos aspectos comerciais e privados da atividades espaciais; e, finalmente, a questão da cooperação internacional como componente fundamental para garantir a todos os povos os benefícios das atividades espaciais.

Com relação à primeira questão, há que se considerar um conceito fundamental: as tecnologias usadas para construir veículos lançadores de satélites são as mesmas, com pequenas adaptações, que se usam para construir mísseis balísticos. O Brasil assumiu um compromisso indelével com os ideais de não-proliferação dessas tecnologias de uso dual, no entendimento de que tais ideais são coerentes com a defesa dos usos pacíficos do espaço exterior e conducentes à paz e à segurança internacionais. Este compromisso ficou consubstanciado na adesão do Brasil, em 1995, ao Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (Missile Technology Control Regime – MTCR).

É importante frisar que, mesmo antes do estabelecimento do MTCR, em 1987, a comunidade internacional já procurava, por outras maneiras, evitar que as tecnologias correlatas à ciência espacial constituíssem ameaça à sobrevivência da humanidade. Dessa forma, em um período de menos de 20 anos, de 1961 a 1979, foram negociados, no âmbito das Nações Unidas, cinco tratados multilaterais que contemplam, em seus textos, o princípio do usos pacíficos do espaço exterior.

O mais abrangente desses cinco tratados é, sem dúvida, o primeiro, que entrou em vigor em 1967, ficando conhecido como "Tratado do Espaço Exterior". Foram negociados, igualmente, o "Tratado de Resgate e Salvamento de Astronautas" (1968), a "Convenção de Responsabilidade" (1972), a "Convenção de Registro de Objetos Lançados ao Espaço" (1976) e o "Tratado da Lua" (1979). O Brasil é signatário dos três primeiros. No que se refere à Convenção de Registro, encontra-se em avançado estágio o processo de consultas internas com vistas a sua assinatura.

A eficácia desses cinco tratados na manutenção dos usos pacíficos do espaço exterior já foi, por vezes, questionada. Creio que a abordagem mais correta para essa questão deve partir da análise do contexto histórico em que eles foram negociados. Àquela época, o mundo vivia o período da confrontação bipolar. Em razão da necessidade de contenção mútua, as duas superpotências imprimiram forte ritmo à negociação de uma moldura jurídica para as atividades espaciais. Apesar desse passo acelerado, e talvez até mesmo por causa dele, a linguagem dos tratados então negociados é deliberadamente evasiva, deixando indefinidos alguns termos-chave, como, por exemplo, o que vem a ser, exatamente, "uso pacífico" do espaço exterior. À falta de uma condição explícita e determinante, a avaliação da eficácia dos cinco tratados se faz com base em constatações empíricas.

Com efeito, se considerarmos a relação numérica entre o número de satélites para fins militares e os de aplicações civis orbitando a Terra, chegaremos à conclusão de que o espaço exterior é um dos ambientes mais militarizados aos quais o ser humano tem acesso. Sob esse ponto de vista, os "cinco tratados" poderiam parecer apenas letra morta. Por outro lado, até o momento, armamento algum foi jamais colocado em órbita, e nenhum objeto espacial foi danificado como resultado de ações militares. Seria bastante razoável creditar o ineditismo de agressões militares no espaço exterior à eficácia dos "cinco tratados".

A questão da eficácia dos cinco tratados tem sido levantada conjuntamente com especulações sobre a própria necessidade de existência do Comitê das Nações Unidas para os Usos Pacíficos do Espaço Exterior (COPUOS). No período da Guerra Fria, a intensidade dos debates no COPUOS refletia o protagonismo estatal nas atividades espaciais, essencial ao equilíbrio na repartição do poder entre os dois blocos. Com o fim da confrontação bipolar, a exploração espacial ganhou um impulso diferente, desta vez movido por interesses privados. O vertiginoso crescimento da demanda por serviços como os de telecomunicações incentivou grandes corporações internacionais a financiarem a pesquisa e a se integrarem no mercado de serviços espaciais.

Como resultado dessa orientação crescentemente comercial e privada das atividades espaciais, a função reguladora estatal tem sido enfraquecida, em níveis diversos. O COPUOS – organismo intergovernamental por excelência - não tem escapado dos efeitos dessa tendência. Nas últimas de suas sessões, bem com nas de seus subcomitês Científico e Jurídico, tenho observado, e com muita preocupação, crescente apatia por parte de algumas delegações. Creio ser este o momento de nos dedicarmos – agentes estatais ou não – a uma reflexão profunda sobre o futuro do COPUOS. Gostaria, portanto, de deixar aqui minha singela contribuição a esse debate.

Logicamente, um exercício de reflexão sobre o futuro do COPUOS deve partir da avaliação do que queremos e esperamos deste organismo. Nesses tempos em que o setor privado, com sua lógica e seu tempo próprios, assume importância cada vez maior no âmbito da exploração espacial, o que esperar de um organismo intergovernamental? O fato é que, muito embora a vertente privada das atividades espaciais venha ganhando indiscutível força, os Estados Nacionais, por intermédio de suas agências espaciais ou órgãos equivalentes, continuam a ser os atores prioritários na conformação da atividade espacial internacional. Portanto, o COPUOS deve ser preservado como locus privilegiado para o intercâmbio de informações entre Estados; para a promoção de maior e mais profundo conhecimento mútuo entre os agentes implementadores dos diversos programas espaciais; para o aprimoramento da moldura jurídica internacional das atividades espaciais; para o estabelecimento de vínculos cooperativos entre as partes, e o fortalecimento dos já existentes; enfim, para integrar todos os Estados às atividades do espaço, garantindo amplo acesso aos benefícios delas decorrentes. Por essa razão, o Brasil tem sido um firme defensor da revitalização da agenda do COPUOS e de seus órgãos subsidiários.

Evidentemente, apoiar o fortalecimento do COPUOS não significa querer desmerecer iniciativas suplementares não-governamentais e privadas. É necessário, contudo, que tais iniciativas compartilhem dos objetivos maiores identificados pelos Governos. E é fundamental que a atuação conjunta de Governos e da iniciativa privada seja norteada pela constante busca do equilíbrio entre os benefícios da comercialização e a cooperação para o desenvolvimento.

Gostaria, agora, de chamar a atenção para a última das questões a que me referi no início: a cooperação internacional. As atividades espaciais, como já disse anteriormente, podem ser facilmente transformadas em atividades bélicas. Nesse sentido, cresce de importância o estabelecimento de vínculos cooperativos entre os diversos programas espaciais, na medida em que estes podem traduzir-se em laços de confiança que acabam por desencorajar usos não-pacíficos do espaço.

A esse respeito, creio que o Brasil pode oferecer sua contribuição. Temos acordos de cooperação para os usos pacíficos do espaço com a Argentina, a China, os Estados Unidos, a França, a Rússia e, mais recentemente, com a Ucrânia. Procuramos, assim, estabelecer relações pautadas pela transparência, as quais resultam em benefícios para os programas espaciais de ambos os lados e estimulam o desenvolvimento tecnológico voltado para a paz e a prosperidade.

O Brasil foi, igualmente, um dos principais patrocinadores, nas Nações Unidas, de dois documentos que, cremos, dão novo impulso ao espírito cooperativo das atividades espaciais: a Resolução AGNU 51/122, sobre os benefícios espaciais, e a "Declaração de Viena sobre o Espaço e o Desenvolvimento Humano", documento final da Unispace III. Em nosso entendimento, a Resolução 51/122 atende aos anseios tanto dos países em desenvolvimento quanto dos desenvolvidos, refletindo adequadamente as novas tendências da atividade espacial. A Resolução 51/122 constitui um chamamento para que governos ou entes privados estejam sensíveis a sua linguagem inovadora e encontrem formas flexíveis de cooperação, adequadas ao atual contexto de privatização e comercialização das atividades espaciais.

O futuro das atividades espaciais é promissor, mas sua concretização pressupõe acesso democrático aos benefícios dela decorrentes. Nesse sentido, cumpre transformar em ações concretas a estratégia consolidada na "Declaração de Viena", a qual dá ênfase à capacitação endógena e ao aproveitamento dos recursos humanos e materiais dos países em desenvolvimento. Estabelecer essa nova sinergia, em que os países em desenvolvimento não participam somente como recipiendários das tecnologias espaciais, é nosso maior desafio. Conclamamos a todos a enfrentá-lo. Muito obrigado."

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* Texto do discurso proferido pelo Ministro Antônio Guerreiro, em nome do Ministro da Ciência e Tecnologia, Embaixador Ronaldo Sardenberg, por ocasião do jantar em homenagem aos participantes do Colóquio Internacional de Direito Espacial (parte do 51º Congresso Internacional de Astronáutica), realizado no Palácio da Cidade, no Rio de Janeiro, na noite de 5 de outubro de 2000:

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