Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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Direito Processual Aeronáutico

Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

1 - Conceito

O direito processual aeronáutico, no sentido lato, é o estudo conjunto de institutos advindos do direito processual e de tratados internacionais, que são utilizados e aplicados, formalmente, para a composição dos conflitos de interesses resultantes da exploração econômica da atividade aérea.

No sentido estrito, o direito processual aeronáutico é o conjunto de normas do direito processual comum aplicadas usualmente para composição dos litígios do direito material aeronáutico, tais como os institutos de competência, prazos processuais, procedimentos, medidas cautelares específicas como arresto, seqüestro e penhoras de aeronaves, protestos, notificações e interpelações judiciais.

Os diversos ramos e divisões do processo estão sujeitos a regulamentação jurídica própria, através de várias disciplinas jurídicas que promovem a sistematização de cada um.

O processo é o instrumento de que se serve o Estado para o exercício da função jurisdicional relativamente aos vários ramos do direito : daí o reconhecimento comum de que há um processo civil, penal, militar, eleitoral, trabalhista, tributário, entre outros, tendo em vista, principalmente, a importância e a autonomia científica de cada um deles.

Quando o direito de alguém é contrariado, não podendo naturalmente ser satisfeito, o estado poderá ser chamado a dirimi-lo através do exercício de sua função jurisdicional, que é possível ser feita com a cooperação das partes envolvidas no conflito de interesses ou com a participação de somente uma delas (o demandado poderá ficar revel) segundo a aplicação de regras jurídicas específicas.

Ao conjunto de atividades de cooperação e de exercício de poderes, faculdades, deveres, ônus que determinam tal atividade denomina-se processo.

Denomina-se direito processual o complexo de normas e princípios que regem tal sistema de trabalho.

Ao lado dele, existe o direito material; que é o conjunto de regras disciplinadoras de relações jurídicas substanciais referentes aos bens materiais e imateriais das pessoas grupadas setorialmente pelos diversos ramos de direito (civil, comercial, trabalhista, tributário, administrativo, previdenciário, penal, etc.)

Insere-se o direito processual aeronáutico em um dos segmentos do direito aeronáutico que, em sentido lato, pode ser compreendido como o conjunto de regras reguladoras das relações jurídicas nascidas da utilização do espaço aéreo; no sentido restrito, ser o direito constituído pelo complexo de regras que regem a aviação civil; há, ainda, o conceito bastante difundido, de caráter ainda mais estreito, de que o direito aeronáutico corresponderia ao sistema de regras jurídicas relativas à aeronave e sua circulação.1

Parece-nos que a segunda idéia é a mais adequada para a expressão do que seja o seu objeto e fins.

Um ramo da ciência jurídica diz-se autônoma quando apresenta características próprias, distintas das demais.

Inobstante a crescente importância econômica do direito aeronáutico, fruto da democratização e massificação do transporte de pessoas e de cargas, é inadequado cogitar-se da sua autonomia científica, bem como do direito processual aeronáutico, porquanto satisfatoriamente atendidos pelas regras e institutos do direito civil, comercial e processual civil e pela inexistência de institutos que lhe seja específico, apesar de seu caráter particularista.

Assinale-se, contudo, a necessidade de dar-se ao direito aeronáutico um tratamento especial por sua originalidade, centrado numa ordem jurídica em constante renovação.

Nem mesmo o direito marítimo, com seu tradicionalismo e suas regras reconhecidamente particularíssimas, tem necessidade de ter um direito processual ancilar, para a sua existência e aplicação. 2

2 - Fontes do Direito Processual Aeronáutico

No sentido geral, fonte designa o princípio ou causa donde provem efeitos. Podem ser diretas ou substanciais e indiretas ou formais.

Do ponto de vista jurídico, a fonte indica o modo, as formas e os meios pelos quais o direito se revela.

As fontes diretas são as Leis, as Convenções e os Tratados Internacionais; modernamente as leis são fontes de direito por excelência.

As leis são apenas a expressão formal do direito no tempo e espaço jurídico; o direito não se contém por inteiro na lei, encontrando difuso em outras fontes : os costumes, a jurisprudência e os princípios gerais de direito que lhe são complementares.

Assim o é no estágio atual da cultura jurídico-política dos Estados Contemporâneos.

As fontes indiretas são os costumes, a jurisprudência e a doutrina e, por vezes, o direito comparado.

O direito processual aeronáutico brasileiro tem por fontes a Constituição Federal de 1988 3, O Código Brasileiro de Aeronáutica, de 1986, lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986, as Convenções e os Tratados Internacionais, a que aderiu o Brasil sobre a utilização do espaço aéreo, como decorrência de sua ancilaridade como o direito de navegação aérea e disposições legais do Código de Processo Civil comum.

3 – Fontes Diretas

A - TRATADOS E CONVENÇÕES

O CBA dispõe no seu art. 1º que o direito aeronáutico é regulado pelos Tratados, Convenções e Atos Internacionais de que o Brasil seja parte, por este Código e a legislação complementar.

Gize-se, preliminarmente, à guisa de introdução ao tema, que Convenção e Tratado, hodiernamente são consideradas expressões sinônimas.

Outrora, empregava-se o termo Convenção, para indicar acordos entre os Estados objetivando assuntos de natureza econômica, comercial ou administrativamente e Tratado, para acordos de caráter político.

Tal distinção hoje encontra-se superada. 4

Os Tratados e Convenções Internacionais se incorporam ao direito mediante leis que os ratifiquem. Tornam-se, pois, conteúdo da fonte principal (Hildebrando Acioli, "A retificação e a promulgação de tratados em face da Constituição", Revista Forense, 126/30).

Tratados e Convenções Internacionais estão incorporadas ao sistema do direito aeronáutico brasileiro, conforme regra expressa do art. 1º do CBA.

Como Tratados Internacionais temos os chamados Tratados Multilaterais, que podem se divididos da seguinte forma :

1º - de direito geral:
a) de Paris, de 1910;
b) de Madri, de 1926;
c) de Havana, de 1928;
d) de Chicago, de 1944;

2º - de caráter especial :

I – sobre aeronaves :
a) de Bruxelas, de 1938;
b) de Genebra, de 1948;

II – sobre responsabilidade civil :
a) de Varsóvia, de 1929;
b) de Haia, de 1955;
c) de Montreal, de 1966 (mero acordo entre os transportadores);
d) de Guatemala, de 1971;
e) de Montreal, de 1975;
f) de Guadalajara, de 1961;
g) de Roma, de 1933;
h) de Roma, de 1952;

III – sobre Direito Penal :
a) de Tóquio, de 1963;
b) de Haia, de 1970;
c) de Montreal, de 1971.

Cabe assinalar, por sua atualidade e transcendência, as conclusões da recente reunião de maio de 1999, em Montreal, com o fim de estabelecer nova regulamentação de Transporte Aéreo, sob a forma de Convenção que reestruturou sistematicamente o transporte aéreo internacional de pessoas, bagagens, cargas e a responsabilidade civil do transportador estabelecendo critérios atualizados para indenização do dano.

A novel convenção atualiza e consolida as antigas regras das Convenções de Varsóvia e as supra citadas de que a sucederam e complementaram, estando em vias de entrar em vigor com a esperada adesão dos países membros que participaram de sua elaboração, inclusive o Brasil. 5

4 - Fontes Indiretas

A - COSTUMES

Costume, do latim, consuetudo, é "a regra do direito que funda seu valor na tradição e não na autoridade do legislador".6

Costume é o uso geral, constante e notório, observado na convicção de corresponder a uma necessidade jurídica.

Regra de conduta habitualmente obedecida, sua força coativa credencia-o como fonte formal de direito. 7

No dizer de Brethe de La Gressaye e Laborde Lacoste, o costume é, em síntese, um uso juridicamente obrigatório. 8

"Nos Estados constitucionais modernos o costume perdeu parte de sua importância como fonte do direito, dada a existência de órgão especialmente destinado a elaborar as normas de conduta social."

A lição é de Eduardo Espínola, que acrescenta : Mas, apesar da tendência francamente reconhecida do Estado a legislar em excesso, expedindo multidão de leis, não raro precipitadas e inadequadas, que logo são substituídas por outras, o órgão legislativo do Estado não prevê todas as hipóteses, ou, ainda, em alguns casos, deixa intencionalmente que determinadas relações se rejam por usos e costumes (Tratado de Direito Civil Brasileiro, I, pág. 445).

O art. 1º do Código Brasileiro de Aeronáutica não inclui o costume como fonte do direito aeronáutico.

Inobstante vários juristas modernos põem em destaque a importância das normas consuetudinárias.

À propósito, Videla Escalada disserta :

"el transcurso de los últimos veinte años há sido de gran importancia para la formación de verdaderos hábitos jurídicos, que han adquirido categoria de costumbres y llegado a tener preeminencia en la formación del derecho y la consagración de principios y normas jurídicas, que alcanzan vigencia em la legislación positiva o resultan, por si mismos, fuentes de derecho". E o consagrado jurista argentino menciona o direito de passagem inocente e algumas elaborações da Internacional Air Transport Association (IATA), como suas condições gerais de transporte que as empresas filiadas devem observar em suas relações com os usuários e que se encontram nos documentos de transporte e cujas estipulações o usuário não pode questionar. 9

Por outro lado, observa Eduardo Hamilton que "el Derecho Aéreo es en gran parte consuetudinario" 10 enquanto Agustin Rodriguez Jurado Hijo 11 acrescenta que o costume "contribuyo, en considerable proporción, a la existencia de esta rama de las ciencias jurídicas".

Em sentido contrário ao reconhecimento do costume como fonte de direito, a opinião de outros vários especialistas em direito aeronáutico, tais como Tapia Salinas 12, Otto Riese. 13

Para uma exposição pormenorizada sobre o tema consulte-se o trabalho de Luis Ivani de Amorim Araujo, em seu Curso de Direito Aeronáutico, Revista Forense, 1998, p. 20/21.

B - JURISPRUDÊNCIA

A jurisprudência, do latim, jurisprudência, ciência do direito, é o conjunto de decisões dos Tribunais sobre questões de direito.

Também sua inclusão como fonte formal de direito é discutida, principalmente nos sistemas jurídicos de legislação escrita, contrários à common law.

Orlando Gomes observa que a jurisprudência se forma mediante o labor interpretativo dos tribunais, no exercício de sua função específica. Interpretando e aplicando o direito positivo, é irrecusável a importância do papel dos tribunais na formação do Direito, sobretudo porque se lhe reconhece, modernamente, o poder de preencher as lacunas do ordenamento jurídico no julgamento de casos concretos. 14

A jurisprudência é fonte de direito, primeiro, porque interpreta e aplica a norma positiva, dando-lhe inteligência e precisando o alcance do direito em tese; segundo, porque aplica os princípio gerais, a equidade, a analogia, na falta de uma norma específica e explícita; e, por último, porque tem uma força construtiva e preservativa da uniformidade dos julgados e da unidade do direito.

A tendência moderna é a sua aceitação como fonte formal de direito, como por exemplo, o poder normativo da Justiça do Trabalho e o prestígio da aplicação das Súmulas de Jurisprudência Dominante, do Supremo Tribunal Federal, desde 1963 15 e do Superior Tribunal de Justiça, desde sua criação, em 1988 que, de regra, são utilizadas pelo juizes e tribunais inferiores na fundamentação de suas decisões, mesmo não dispondo do efeito obrigatório, pelo prestígio das cortes que emanaram : o primeiro, guardião da Constituição, o segundo, unificador das decisões infraconstitucionais.

Assinale-se, inclusive, que há projeto de reforma constitucional para estabelecimento de Súmulas Vinculantes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com muita probabilidade de ser aprovada na próxima propalada Reforma do Poder Judiciário, embora haja importantes segmentos profissionais, contrários à sua aprovação.16

No plano do direito processual positivo, a jurisprudência já tem utilização real quando nos Tribunais os recursos interpostos podem ter negado seu seguimento, ser inadmissíveis, improcedente e prejudicados ou quando contrários as Súmulas do respectivo Tribunal ou Tribunal superior. 17

C - DOUTRINA

A doutrina, do latim, doctrina, da raiz "docere"- ensinar, é obra dos que estudam o Direito nos seus múltiplos aspectos, filosófico, científico e técnico, em tratados, manuais, monografias, ensaios ou comentários sobre o direito positivo.

Segundo Pedro Nunes, a doutrina é "o conjunto de idéias, opiniões, juízos críticos, conceitos e reflexões teóricas que os autores expõem e defendem, no estudo e ensino do direito e interpretações das leis." 18

Por seu intermédio criam-se as noções gerais, os conceitos, classificações, as teorias e o sistema jurídico.

A doutrina tem valor exclusivamente moral, porque, diferentemente da jurisprudência, não tem o poder de dizer do direito e de ser aplicada em determinado litígio.

As opiniões doutrinárias podem influenciar o legislador na produção legislativa do País e, sobretudo, os juizes nas suas sentenças e acórdãos, dando-lhes os seus fundamentos e indicando a orientação do tribunais nos julgamentos das questões que lhe são afetas.

D - DIREITO COMPARADO

Por último, ainda que breve, uma referência ao Direito Comparado que vem ser o ramo da ciência jurídica que tem por objeto a comparação sistemática das instituições jurídicas dos diversos países mediante a investigação e confrontações de textos legais e crítica de suas instituições, diferenciações e analogias. 19

Embora não seja fonte formal de direito, não deixa de ser importante meio de auxiliar para sua análise, compreensão e desenvolvimento de institutos jurídicos, particularmente em relação ao direito aeronáutico, entre outras razões, por seu marcante cosmopolitismo.


1 LOÏC GRARD, Le droit aérien, Ed. Presses Universitaires de France, 1995.   (Volta ao texto).

2 No sentido contrário, pela autonomia do Direito Aeronáutico, as opiniões de JÔNATAS MILHOMENS, Direito Aeronáutico, Ed. Nacional de Direito, 1956 e JOSÉ DA SILVA PACHECO, Comentários ao Código Brasileiro de Aeronáutica, Ed. Forense, 2ª edição, pag. 24, 1998, especialmente OSCAR DA CUNHA em conferência proferida no SBDA, em 1951, publicado na Revista Jurídica da Faculdade Nacional de Direito, vol. XI, 1952/53, pags. 75/95, na qual faz erudita exposição sobre as três correntes doutrinárias sobre a matéria : a que prega a especialidade da disciplina, a que sustenta a sua autonomia e a que a nega, enfaticamente.   (Volta ao texto).

3 CF, art. 22, I.   (Volta ao texto).

4 Cf. o art. 2º, I da Convenção sobre o Direito dos Tratados, de Viena, de 1969, dispondo que o tratado significa um acordo internacional celebrado por escrito e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mias instrumentos conexos, quqlquer que seja sua denominação específica.   (Volta ao texto).

5 Para o conhecimento de seu texto, em português, em versão não oficial e se ter informações complementares sobre ele, consulte-se a Revista da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial, vol. 79, especialmente o artigo de José da Silva Pacheco, (idem, ibidem).    (Volta ao texto).

6 HENRI CAPITANT, Vocabulário Jurídico, V. Costumes, Ed. Depalma, Buenos Aires, 1973.   (Volta ao texto).

7 ORLANDO GOMES, Introdução ao Direito Civil, Ed. Forense, 1977, pág. 58, item 25.   (Volta ao texto).

8 Introduction générale à l’étude de droit, Librarie du Recueil Sirey, 1947.   (Volta ao texto).

9 FEDERICO VIDELA ESCALADA, Derecho Aeronáutico, Buenos Aires, 1969, pag. 231.   (Volta ao texto).

10 EDUARDO HAMILTON, Manual de Derecho Aéreo, Santiago, Chile, 1960, p. 16.   (Volta ao texto).

11 AGUSTIN RODRIGUEZ JURADO HIJO, Teoría y Práctica de Derecho Aeronáutico, Buenos Aires, 1963, pág. 27.     (Volta ao texto).

12 LUÍS TAPIAS SALINAS, Manual de Derecho Aeronáutico, Barcelona, 1994.   (Volta ao texto).

13 OTTO RIESE, Précis de Droit Aérien, Paris, 1951, p. 35.   (Volta ao texto).

 

14 Introdução ao Direito Civil, Editora Forense, 5ª edição, pag. 62, 1977.  (Volta ao texto).

15 Foi o Ministro Victor Nunes Leal quem introduziu no Brasil, acerca de 40 anos, como membro da Comissão de Jurisprudência do STF a experiência bem sucedida das Súmulas, inspiradas na doutrina do ‘stare decisis’ e nos ‘restatements oflaws’ do direito anglo-americano, que impõe a obrigação de serem respeitados os precedentes judiciais que seriam inalteráveis pelo Juiz.   (Volta ao texto).

16 A nova redação proposta do art. 102, III, § 2º, da Constituição Federal, pela comissão especial de emenda constitucional que reforma a estrutura do Poder Judiciário dispõe "as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratória de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal."   (Volta ao texto).

17 CPC, art. 557.  (Volta ao texto).

18 PEDRO NUNES, Dicionário de Tecnologia Jurídica, Ed. Freitas Bastos, 8ª edição, pag. 539.   (Volta ao texto).

19 HENRI CAPITANT, Vocabulário Jurídico, Ed. Depalma, Buenos Aires, 1973.   (Volta ao texto).

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