Revista Brasileira de Direito Aeroespacial
Regime Jurídico Aplicado ao Direito Aeronáutico
Jorge Neves
Administrador e Bacharel em Direito com extensão em Direito Aeronáutico.
Presidente da Sata Serviços Auxiliares de Transporte Aéreo S/A
- Paulo Soto
Advogado e Mestrando em Direito na U E RJ
Introdução
A aplicação da lei no espaço sempre foi controvertida e, muitas vezes, a escolha da lei aplicável ao caso concreto é muito difícil. Este tema remonta às origens do Direito, na Península Itálica, mais precisamente em Bolonha, onde os glosadores iniciaram o estudo da ciência do Direito. A questão do conflito de leis, quando as relações situam-se no campo das relações internacionais, envolve o universo multiestatal onde coexistem o Direito Internacional Público e o Direito Internacional Privado, envolvendo a soberania e os interesses de todos os agentes que participam das relações internacionais, sejam pessoas de direito público ou pessoas de direito privado. Inúmeros doutrinadores , destacando-se o trabalho do mestre Savigny, tentaram soluções para o conflito de leis, sendo que até hoje, como menciona Juenger *, três métodos básicos foram consolidando-se para lidar com as questões entre Estados, sendo eles :
a atribuição de um alcance espacial para normas locais;
a determinação da sede das relações jurídicas;
a busca de soluções substantivas.
Antes de passarmos à análise específica do tema no campo do Direito Aeronáutico, é importante mencionar a construção norte-americana denominada "forum shopping " que refere-se à estratégia adotada para litígios que envolvam conflito de leis entre estados que compõem a federação dos Estados Unidos. Esta prática possibilita a escolha do foro cujo direito material e processual sejam mais favoráveis ao autor da demanda.
Relativamente ao Direito Aeronáutico existem algumas teses sobre a lei aplicável aos litígios decorrentes das atividades de transporte aéreo. A Convenção de Chicago, em sue artigo 11, estabelece que no período compreendido entre a entrada e a saída de uma aeronave de um Estado no território de outro Estado, a lei que deverá ser observada será àquela do Estado no qual a aeronave encontra-se em vôo ou aterrissada. Além do disposto na citada convenção, também é logicamente aceitável a aplicação da lei do território do Estado sobrevoado, uma vez que aceita-se pacificamente a teoria da soberania do Estado sobre o espaço aéreo correspondente ao seu território. Temos que neste momento chamar atenção para a diferença técnica que existe entre o sobrevôo e a operação regular de entrada, pouso e saída de aeronave explorando serviços aéreos internacionais entre dois Estados, daí a existência da tese relativa ao território sobrevoado e da disposição convencional citada.
As aeronaves que estejam voando em áreas não sujeitas à soberania de nenhum Estado, estarão sujeitas à lei do Estado de matrícula da aeronave. Sabemos que durante a execução do transporte aéreo inúmeras situações poderão ocorrer, tais como : nascimento e óbito a bordo, lesões e morte decorrentes de condições verificada em rota e muitas outras. Na situação do vôo estar sendo efetuado em espaço aéreo internacional, a lei da bandeira da aeronave terá aplicação. Existem, também, as teses que defendem como aplicável a lei do ponto de partida da aeronave ou a lei do ponto de chegada da aeronave porém, ambas teorias apresentam pontos suscetíveis de questionamento. Àquela relativa à aplicação da lei do ponto de chegada da aeronave é questionada em face da decisão quanto ao aeroporto de chegada poder ser tomada pelo comandante, favorecendo a escolha do local no qual a lei seja mais interessante ou favorável ao caso que deverá ser enquadrado juridicamente. Em contrapartida, a lei do ponto de partida apresenta enormes dificuldades de aplicação em face dos princípios universalmente aceitos quanto às hipóteses de extraterritorialidade das leis.
O exame da lei aplicável passará certamente pelo exame do tipo de transporte que está sendo executado, se doméstico ou internacional. Relativamente ao último, temos a aplicação do Sistema Varsóvia de 1929 que foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n. 20.704 de 24 de novembro de 1931, além dos Protocolos de Haia e de Montreal e da Convenção de Guadalajara, todos incorporados ao direito pátrio e vigentes. Na situação do transporte executado ser doméstico, aplica-se a lei n. 7.565 de 19 de dezembro de 1986, conhecida como Código Brasileiro de Aeronáutica, e a Portaria n. 957/GM5 que trata das condições gerais de transporte.
As normas internacionais acima referidas são as atualmente em vigor no Brasil, havendo outros textos legais e acordos privados internacionais, realizados entre empresas aéreas, também aplicáveis mas não juridicamente no ordenamento nacional. Feita esta observação, o tema discutido neste artigo estará vinculado aos instrumentos jurídicos citados e aos quais remetem-se os autores para determinar qual a conclusão quanto à questão proposta sobre a definição de quando o transporte aeronáutico será considerado internacional e quando será considerado doméstico.
Tal determinação terá aplicação prática na própria definição de qual o regime legal aplicável a cada caso , se a legislação aeronáutica internacional, o sistema Varsóvia- Haia ou se a legislação aeronáutica nacional com origem no poder legislativo nacional.
Portanto, é através de tal discussão que estabelecem-se todas as demais respeitante ao direito aeronáutico, já que estabelecer o regime jurídico aplicável ao caso é o ponto de partida para qualquer discussão doutrinária jurídica.
As Liberdades do Ar
Importante, também, para o estudo do tema proposto é a determinação das regras sobre as Liberdades do Ar, bem como o conteúdo das mesmas, para estabelecer-se em paralelo a solução quanto à questão proposta sobre quando o vôo será considerado internacional, e quando o será de mera cabotagem.
A Convenção de Chicago de 1944 consagrou o princípio da soberania estatal sobre o espaço aéreo, de acordo como a entendia a corrente inglesa que propunha uma liberdade regulamentada, com a determinação de tarifas, itinerários, definidos tais pontos através de acordos multilaterais ou bilaterais entre os Estados interessados em estabelecer acordos de serviços aéreos regulares internacionais de navegação aérea. Este princípio prevaleceu sobre a posição que defendia a completa liberdade, regulamentando-se o mercado autonomamente pelas regras da livre concorrência. Nesta mesma convenção, foram estabelecidas as liberdades do ar, inicialmente cinco, hoje oito.
As liberdades do ar classificam-se em fundamentais e mercantis. As primeiras referem-se às 1a e 2a liberdades que estabelecem, respectivamente, o direito de sobrevôo ou de passagem inofensiva ou de trânsito inocente e o direito de pouso técnico para reabastecimento e reparação de pane verificada na aeronave. Existem doutrinadores que defendem que a 1a Liberdade abrange a 2a Liberdade, uma vez que permitido o sobrevôo, existe sempre a possibilidade de pouso por razões técnicas.
As 3a, 4a e 5a Liberdades são as denominadas mercantis, uma vez que envolvem tráfego entre os Estados com movimentação comercial relativa ao transporte de passageiros, mala postal e carga. A 3a Liberdade corresponde ao privilégio de desembarcar passageiros, mala postal e carga no território de uma Alta Parte Contratante em aeronave de nacionalidade do Estado de origem do vôo. A 4a Liberdade corresponde ao reconhecimento por parte de um Estado do privilégio de embarcar passageiros, mala postal e carga com destino ao território de nacionalidade da aeronave. Estas duas liberdades constituem o que se chama tecnicamente de direito de tráfego direto entre dois Estados.
A 5a Liberdade é o reconhecimento por um Estado do privilégio de transporte de passageiros, mala postal e carga comercial de/para dois Estados por aeronave de nacionalidade de um terceiro Estado.
Atualmente já fala-se da existência de outras três liberdades do ar. A 6a Liberdade é a possibilidade de embarcar ou desembarcar passageiros, mala postal e carga comercial destinados ou procedentes de um Estado situado aquém ou além do Estado de nacionalidade da aeronave, com escala intermediária neste último, sendo resultante da combinação da 3a e 4a Liberdades. A 7a Liberdade é o privilégio de embarcar ou desembarca passageiros, mala postal ou carga comercial destinados ou procedentes a um Estado, em aeronave de bandeira de um terceiro Estado e operada por transportador aéreo de mesma nacionalidade da aeronave sem escala neste último Estado. A 8a Liberdade corresponde ao privilégio de exploração do serviço de navegação aérea de cabotagem ou doméstica por aeronave de bandeira estrangeira e operada por empresa de transporte aéreo de mesma nacionalidade da aeronave.
O estudo das Liberdades do Ar é importante quanto à solução da questão proposta pois permite visualizar melhor o tipo de transporte envolvido. Assim, enquanto se tratar de vôo que se aproveite apenas das duas primeiras liberdades do ar , teremos meramente transporte nacional e, por outro lado, quando se tratar de vôo que se utilize de qualquer outra das cinco liberdades, será transporte internacional. Tal fato comprova-se da análise das normas que tangem sobre a matéria que é analisada a seguir.
Regime Jurídico Aplicável Segundo a Legislação Aeronáutica
O Código Brasileiro de Aeronáutica estabelece a regra geral quanto à determinação do transporte ser nacional ou internacional em seu artigo 215 :
" Art. 215 Considera-se doméstico e é regido por este código, todo transporte em que os pontos de partida, intermediários e de destino estejam situados em território nacional. "
Tal critério é pacífico mesmo em relação à jurisprudência e legislação internacional, contudo quanto a 2a Liberdade do Ar existem divergências normativas no conceito internacional, embora no Brasil a brilhante redação do texto legal do Código Brasileiro de Aeronáutica, prevendo tal dilema, estabelece regras claras quanto à hipótese no parágrafo único do mesmo artigo 215 :
" Art. 215 Parágrafo Único O transporte não perderá esse caráter se, por motivo de força maior, a aeronave fizer escala em território estrangeiro, estando, porém, em território brasileiro os seus pontos de partida e destino. "
Apesar de tal dispositivo legal procurar sanar a questão, surgem novas divergências partindo de interpretações do artigo, uma vez que parece este ter condicionado à força maior a exclusão da aplicação do regime do Sistema Varsóvia Haia no lugar do Código Brasileiro de Aeronáutica, ou seja, só seria considerada a aplicação da Lei brasileira no lugar do Sistema Varsóvia-Haia quando a escala em território estrangeiro caracterize-se por ser pouso técnico por motivo imprevisível e inevitável ligado, em regra, a algum fenômeno da natureza, desvinculado de qualquer ação ou omissão do transportador ou de seus prepostos.
Se não atendida a condição prevista expressamente no preceito normativo, será aplicável o Sistema Varsóvia-Haia, um vez que, com base inclusive em jurisprudência internacional ( EUA/1949 sobre julgamento da KLM Royal Dutch Airline ) interpretando o Art. 8o da Convenção de Varsóvia :
" Art. 8o O conhecimento aéreo deverá mencionar :
( ... )
c- As paradas previstas, ressalvada ao transportador a faculdade de estipular que as poderá alterar, em caso de necessidade, sem que essa alteração retire ao transporte o caráter de internacional."
" O transportador aéreo tem conhecimentos técnicos profissionais específicos que garantem conhecer de antemão o regime jurídico aplicável se realizar escala em território estrangeiro. " **, prosperando tal entendimento mesmo que se trate de pouso técnico, quando o mesmo não tiver como causa direta a força maior.
Tendo em vista as regras acima expostas e determinados os critérios de consideração do transporte aéreo como nacional ou internacional, define-se qual o regime jurídico aplicável a cada caso. Assim, ao serviço de transporte aéreo doméstico serão aplicadas as normas da Lei n. 7.565 de 19 de dezembro de 1986, o Código Brasileiro de Aeronáutica CBA; e a Portaria n. 957/GM5, emitida pelo Comando da Aeronáutica, artigos 1o ., caput, e parágrafos 2o ., e 3o .; 3o ao 10o ; e 215, e parágrafo Único, CBA.
Tratando-se de serviço de transporte aéreo internacional, segundo os critérios expostos ao longo deste artigo, serão aplicáveis as normas que em conjunto formam o denominado Sistema Varsóvia-Haia, que são : Convenção de Varsóvia de 1929 Decreto n. 20.704 de 24 de novembro de 1931; Protocolo Adicional de Haia de 1955 Decreto n. 56.463 de 15 de julho de 1965; Protocolos Adicionais de Montreal nos. 1,2 3e 4 de 1975 Decreto Legislativo 22 de 28 de maio de 1979; Convenção Internacional de Guadalajara promulgada pelo Decreto n. 60.967 de julho de 1967.
O transporte aéreo internacional é definido ainda pelos artigos 1o . caput, e parágrafo 1o .; 14; 204; 214; e 215, a contrário senso; todos do Código Brasileiro de Aeronáutica; combinados com os artigos 1o .; e incisos, principalmente o II,; 2o .; 31; e 34 da Convenção de Varsóvia; bem como os artigos 1o .;2o .; e 18 do Protocolo Adicional de Haia; e Ainda o 3o do Protocolo Adicional de Montreal .
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Notas:
* Junger, Friedrich K. Conflito de Leis na América e Europa. (Volta ao texto).
** Primera Jornada del Derecho del Transporte Aereo ; 10 de junho de 1999; Montevideo - Uruguai . (Volta ao texto).
Bibliografia :
. Pacheco, José da Silva, Comentários ao Código Brasileiro de Aeronáutica. Rio de Janeiro, 1998. Editora Forense.
. Escalada, Frederico N. Videla, Manual de Derecho Aeronautico. Buenos Aires, 1996. Editora Zavalia.
. Jurado, Rodriguez, Teoría y Práctica Del Derecho Aeronáutico. Buenos Aires, 1986. Editora Depalma.