Revista Brasileira de Direito Aeroespacial
A ciência espacial e o Direito Espacial *
Gabriel Lafferranderie **
1. Introdução
Os benefícios a serem adquiridos pela exploração e uso do espaço para fins científicos no interesse de toda a Humanidade estiveram entre os primeiros e principais argumentos apresentados para justificar as atividades espaciais.
Seguindo a Resolução 1962 (XVIII), adotada pela Assembléia Geral da ONU em 13 de dezembro de 1963 sob o título de "Declaração dos Princípios Jurídicos Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Exterior", o Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes, conhecido como o Tratado do Espaço, assinado em 27 de janeiro de 1967, enfatizou dois princípios em particular:1. "Haverá liberdade de pesquisa científica no espaço exterior"; para tanto, o espaço exterior será "livre para a exploração e uso" e "não sujeito à apropriação nacional", e
2. Liberdade de acesso para os países, independente de seu estágio de desenvolvimento científico; para este fim, a cooperação internacional contribuirá para o desenvolvimento científico.
As pesquisas científicas e a comunidade científica internacional são mencionadas em vários dispositivos no Tratado do Espaço e, depois, no Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e em Outros Corpos Celestes, o Acordo da Lua, assinado em 18 de dezembro de 1979: ver, por exemplo, o Artigo XI do Tratado do Espaço ou os Artigos 5.1, 6.3, 7.3 e 11 do Acordo da Lua. Cinco Tratados e uma série de princípios foram aprovados pela Assembléia Geral das Nações Unidas, mas não há nenhum texto que trate especificamente dos benefícios das ciências espaciais e dos acordos de cooperação neste campo. Isto tem sido deixado para as potências espaciais, que devem organizar suas pesquisas científicas de modo a refletir as aspirações do Tratado do Espaço.Por ciência espacial entende-se aqui, sobretudo, a astronomia, a radioastronomia, a astrofísica e a ciência planetária: em outras palavras, é a chamada ciência espacial básica. Estas atividades são conduzidas pela humanidade -- de tempos em tempos, com a ajuda de novos instrumentos como observatórios astronômicos, muitos deles ainda na Terra, mas outros já voando à bordo de espaçonaves.
Graças a estas espaçonaves criadas por engenheiros e cientistas, temos sido capazes de estudar o cometa de Halley ou o impacto do ShoemakerLevy 9 em Júpiter, rever nossos novos cálculos sobre a idade e o tamanho do Universo, descobrir novas galáxias e estrelas, e perguntar -- "estamos sós?".
Os novos veículos lançadoras e as novas tecnologias devem ser dirigidas a um objetivo simples de entender: expandir nossa capacitação na Terra em benefício de toda a humanidade; precisamente isso é o que visam as atividades científicas espaciais.
O Direito espacial, em sua definição ampla, traçou as novas fronteiras para todas as atividades no Espaço, que se referem à cooperação internacional para a condução concreta de projetos espaciais. Que observações estamos compelidos a fazer a partir de todos estes projetos e acordos? É possível melhorar esta situação dentro do espírito do Tratado do Espaço?
2. Cooperação Internacional
A cooperação científica entre as principais agências espaciais desempenha importante papel. Exemplos:
a) Entre a Agência Espacial Européia (ESA) e a Nasa:
- IUE (International Ultraviolet Explorer, lançado em 1978);
- HST (Hubble Space Telescope, lançado em 1990);
- Isso (Infrared Space Observatory, lançado em 1995);
- Soho ( The Solar Heliospheric Observatory, lançado em 1995).
As seguintes missões cooperativas estão em desenvolvimento:
- A missão conjunta Esa/Nasa Cassini, rumo a Júpiter, em que a Esa participa com a sonda Huygens destinada a Titan (um dos satélites naturais de Júpiter}, lançado 15 de outubro de 1997.
- Integral - The International Gamma Ray Observatory, programa de cooperação Esa/Rússia, do qual a Rússia participa com o lançador Próton em troca de tempo de observação científica (lançamento previsto para 2001).
- Roseta, sonda que vai ao encontro com o cometa para análise in situ de seu material, a ser lançada em 2003.
A colaboração internacional deve assumir crescente importância. De fato, com o decréscimo dos recursos alocados às ciências espaciais, poder-se-ia esperar o aumento da colaboração e da coordenação. Mas as novas gerações de missões da Nasa são menores e parece que não haver lugar para a colaboração.
A situação é muito similar no Japão; claro, há troca de informações e tempo aberto para observações, mas pouca área para colaboração efetiva. As oportunidades de colaboração com a Russa diminuíram consideravelmente nos últimos anos.
Tornar o programa científico da Esa disponível para ajudar as pesquisas científicas espaciais em países em desenvolvimento é parte da política oficial da Esa. Cientistas de países não-membros da Esa podem se candidatar a um limitado número de bolsas de estudo ou treinamento. Eles também podem se unir aos grupos científicos que fornecem instrumentos às missões científicas da Esa. A Esa dispôs-se a divulgar anúncios de oportunidade nos países em desenvolvimento, com os quais mantém algum acordo, e a ajudá-los no estabelecimento de contato com grupos europeus, quando para tanto for solicitada.
b) Coordenação
Outra forma de colaboração é a constituição de um clube em que todos os membros apresentam suas missões para evitar duplicidade e estimular a aplicação de recursos. Os acordos são menos formais e implicam menos compromissos; os encargos ficam com os membros comprometidos. Exemplos:
- "International Mars Working Group" (Grupo Internacional de Trabalho sobre Marte), fundado em 1993, que inclui 11 agências espaciais e institutos;
- "International Lunar Exploration Working Group" (Grupo de Trabalho para a Exploração Internacional da Lua) , fundado em 1994;
- "Interagency Consultative Group for space science" (Grupo Consultivo Interagências para Ciências Espaciais), IACG, que entra em ação quando as missões já estão aprovadas e buscam coordenação com as operações científicas de missões em andamento. Dois temas principais foram selecionados: o Cometa de Halley, que, na verdade, levou à fundação do IACG, e as campanhas de observações físicas solares-terrestres, para as quais é essencial que todas as espaçonaves em órbita realizam observações coordenadas.
c) Papel do Uncopuos (Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior)
A porta de entrada, obviamente, é o Subcomitê Técnico-Científico do Copuos, cujos membros trocam informações sobre seus programas e planos. Pouco espaço é deixado para planos de ação em comum em qualquer área particular da atividade científica.
Quanto ao Subcomitê Jurídico do Copuos, deve-se mencionar o projeto de declaração, aprovado em junho de 1996, sobre o princípio do benefício comum contido no Artigo 1, parágrafo 1, do Tratado do Espaço.
Felizmente, o Escritório das Nações Unidas para Assuntos Espaciais percebeu que um esforço no campo da ciência espacial básica também é importante. Daí a organização do simpósio da ONU/Esa sobre ciência espacial básica, promovido desde 1991 e freqüentado por centenas de participantes de mais de 50 países.
d) Papel de outras instituições
As questões da ciência espacial não podem ser tratadas de forma isolada; elas requerem a coordenação de esforços de organizações intergovernamentais (como o Uncopuos, a União Internacional de Telecomunicações - ITU, etc.) e de instituições profissionais (como o Comitê de Pesquisa Espacial - Cospar, a União Astronômica Internacional - IAU). Os legisladores devem compreender os aspectos científicos, a urgência, o meio ambiente e, tal como os cientistas, conhecer as regras e avaliar as melhorias e limitações a ser consideradas. Simpósios em clima aberto certamente ajudariam a fomentar o necessário entendimento mútuo.
3. Questões a serem enfrentadas
- Acesso e uso de dados científicos: em geral, um memorando de entendimento (por exemplo entre Esa e Nasa) contém artigos sobre o acesso e o uso de dados científicos. O acessos a dados, em principio, é aberto a todos os cientistas no mundo (sujeito a um período inicial, durante o qual o acesso é reservado aos pesquisadores principais). Em geral, os observatórios concedem certo tempo às equipes que construíram os instrumentos e aos parceiros que criaram a missão, bem como um "tempo aberto" a quem tenha sido selecionado por um comitê ad hoc de alocação de tempo de observação, mediante pedido encaminhado na forma apropriada, com a comprovação de que dispõe de recursos (humanos e financeiros) para efetuar a análise dos dados.
No entanto, cabe destacar que os acordos têm sido deixados inteiramente nas mãos dos signatários dos memorandos de entendimentos e nenhuma recomendação especial, oriunda por exemplo da comunidade científica, tem sido formulada (até onde o autor saiba).
- As observações de radioastronomia desde a Terra começam a ser prejudicadas pela poluição causada por varias atividades humanas. Inúmeros projetos em gestação podem tornar impossível a observação astronômica a partir da Terra (como os anúncios luminosos no céu à noite);
- As planejadas constelações de satélites, como Iridium ou Teledisc, são fontes de grandes preocupações. Sabe-se que as radiofreqüências são um recurso natural limitado e seu uso para a ciência espacial deve ser protegido, e não abandonado à competição econômica, especialmente em atividades comerciais.
- Discutindo ciência espacial, também encontramos, obviamente, temas comuns a outras atividades espaciais, como o da responsabilidade. Exemplo: o uso de material radioativo à bordo de objetos espaciais para sua propulsão; a conservação do meio ambiente dos corpos celestes. Atividades industriais na Lua podem impossibilitar seu estudo ou a realização de pesquisas com dados de lá.
- A idéia de preservar o lado escuro da Lua têm sido apresentada como parte do princípio de conduzir as atividades em benefício da humanidade, mas isto envolve o estabelecimento de um observatório extraordinariamente caro e não suficiente, ele próprio, para garantir uma missão à Lua e o assentamento humano lá. Todas as missões planetárias devem assegurar que o meio ambiente do corpo celeste visado seja apenas minimamente afetado.
- Há também o caso especial dos direitos de propriedade intelectual, que vai desde o acesso e o uso de dados científicos até o acesso e o uso de informações técnicas para o desenvolvimento em conjunto de instrumentos científicos, sem esquecer o ensino dos conhecimentos adquiridos.
Por fim, a questão do lixo espacial: os dejetos espaciais devem prejudicar cada vez mais as observações astronômicas. É preciso notar que os dispositivos sobre a realização de atividades científicas no espaço integram textos de memorandos que nem sequer mencionam o Direito Espacial, especialmente os propósitos do Tratado do Espaço; os arranjos para que se levem em conta os interesses da comunidade científica são deixadas nas mãos das agências espaciais.
Por tudo isto, devemos estimular a elaboração de um projeto (em parceria, por exemplo, com a ITU, o Cospar, a União Astronômica Internacional, etc.) de princípios sobre a salvaguarda de objetivos científicos, a condução de atividades científicas espaciais no âmbito internacional, etc., como diretrizes para a redação de memorandos de entendimento ou acordos, a fim de que os interesses dos outros não sejam ignorados.
As atividades espaciais devem nos capacitar a ir ao encontro do futuro, a reconstruir permanentemente nossos conhecimentos sobre nosso passado ou nosso futuro, a descobrir novas estrelas e galáxias, a sonhar e a estar convencidos de que a raça humana é extraordinária. Temos o dever de repassar este sonho às gerações futuras.
********************************
Notas:
* Este artigo é parte do livro "Outlook on Space Law over the Next 30 Years Essays published for the 30th Aniversary of the Outer Space Treaty", organizado por Gabriel Lafferranderie e Daphné Crowther, e editado em 1997 pela Kluwer Law International, da Holanda. Foi traduzido para o português por Marcelo de Cicco, com revisão técnica de José Monserrat Filho. (Volta ao texto)
** Chefe do Departamento Jurídico da Agência Espacial Européia (Esa) e membro da diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial. (Volta ao texto)