Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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Interesses e Necessidades dos Países em Desenvolvimento
no Direito Espacial (*)

José Monserrat Filho (**)

"Assim como a missão da ciência é conceber o inconcebível,
uma das missões mais apaixonantes do direito
é conciliar o que muitas vezes parece irreconciliável."
Pierre-Marie Martin (1)

Introdução

Este trabalho procura examinar o significado, a amplitude e a importância da expressão "interesses e necessidades dos países em desenvolvimento" e de suas fórmulas correlatas e assemelhadas, introduzidas em importantes documentos internacionais destinados a regulamentar as atividades espaciais dos Estados.

A tarefa me parece oportuna e necessária diante da contradição que se constata hoje entre o princípio consagrado no Artigo 1º do Tratado do Espaço, segundo o qual "a exploração e o uso do espaço cósmico (…) deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade" (2), e o crescente desnível de conhecimentos científicos e tecnológicos, inclusive e especialmente na área espacial, que separa o grande número de países em desenvolvimento do pequeno grupo de países desenvolvidos.

O estudo do grave descompasso entre o princípio e a realidade em campo tão essencial para o desenvolvimento de todos os países e da humanidade como um todo é indispensável a qualquer esforço para primeiro conter, depois reduzir e afinal eliminar as diferenças cada vez maiores entre as populações pobres e ricas da Terra.

A superação deste problema crucial passa necessariamente por um progresso mais impetuoso, generalizado e abrangente da exploração e uso do espaço exterior, com a mobilização ativa de mais e mais países.

Penso que esse desafio exige decisiva intervenção dos Estados, em ações conjuntas, eqüitativas e planejadas – com a participação imprescindível e devidamente remunerada das empresas privadas --, para definir, em termos precisos e práticos, e implementar, com eficiência e espírito público, um programa mínimo de atendimento aos interesses legítimos e às necessidades mais prementes dos países em desenvolvimento neste setor estratégico.

O objetivo central deve ser a criação de condições de vida bem mais equilibradas e justas em nosso planeta, o que, por sua vez, virá dar maior vigor e um sentido ético superior ao avanço do gênero humano pelo espaço cósmico e por outros corpos celestes.

As referências aos países em desenvolvimento no Direito Espacial

1. Não há menção direta aos países em desenvolvimento na principal fonte do Direito Espacial hoje, o já citado Tratado do Espaço.

Mas seu Artigo 1º, como vimos, reza que:

1) "A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade."

2) "O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade…"

O primeiro parágrafo encerra o princípio do "interesse comum" de toda a humanidade nas atividades espaciais, proposto já no início da introdução do tratado. Ele determina que as atividades espaciais beneficiem todos os países e levem na devida conta os interesses de todos os países, sejam eles desenvolvidos ou não do ponto de vista econômico e científico. Isto deixa claro que o bem e os interesses dos países em desenvolvimento não podem ser minimizados, desconsiderados ou excluídos. E a definição da exploração e uso do espaço como "incumbência de toda a humanidade" reitera o dever de incluir a totalidade dos países e povos neste empreendimento de extraordinário impacto econômico, social e cultural. Não é admissível, portanto, que uma atividade de tamanha relevância fique restrita aos poucos países desenvolvidos. Até porque, quanto mais países dela participarem, melhor para o conjunto da comunidade internacional.

O segundo parágrafo, que estabelece o princípio do livre acesso ao espaço por todos os países, pode ser interpretado como um reforço ao direito de acesso dos países em desenvolvimento. Ele enfatiza a exigência de tratamento não-discriminatório, em condições de igualdade, que têm especial significado, exatamente, nas relações entre países em desenvolvimento e desenvolvidos.

2. O termo "interesses e necessidades dos países em desenvolvimento" aparece, pela primeira vez em um documento do Direito Espacial, no polêmico Artigo 11 do Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e em outros Corpos Celestes, de 1979, conhecido como o "Acordo da Lua" (3).

Este artigo é justamente aquele que define a Lua e seus recursos naturais "patrimônio comum da humanidade" e propõe a instituição de "um regime internacional (…) para regulamentar a exploração dos recursos naturais da Lua, quando esta exploração estiver a ponto de se tornar possível".

Um dos quatro principais objetivos do regime internacional, segundo o ponto 7 do Acordo da Lua, é o de "promover a participação eqüitativa de todos os Estados-Partes nos benefícios auferidos destes recursos (lunares), tendo especial consideração para com os interesses e necessidades dos países em desenvolvimento, bem como para com os esforços dos Estados que contribuíram, direta ou indiretamente, na exploração da Lua".

Este é o princípio da divisão de benefícios. Ele permitiria que os países em desenvolvimento tirassem proveito dos recursos lunares, ao lado dos países desenvolvidos detentores de recursos tecnológicos e financeiros para promover a exploração da Lua. Seu fim último seria impedir que a utilização dos recursos lunares aumentasse ainda mais a já grande diferença existente entre os países em desenvolvimento e os desenvolvidos.

Mas os países desenvolvidos acabaram recusando a idéia de compartilhar benefícios. Em função disto, o Acordo da Lua é hoje o instrumento com o menor número de países participantes e o mais questionado dos cinco tratados que compõem o corpus juris spatialis (4), embora tenha sido o que mais longe foi na tentativa de regulamentar "a mais avançada utilização do espaço exterior" (5).

Apesar de aprovado por unanimidade pela Assembléia Geral da ONU, em 5 de dezembro de 1979, e aberto à assinatura logo em 18 de dezembro, levou mais de quatro anos para receber as quatro ratificações necessárias à sua entrada em vigor, o que só aconteceu em 11 de julho de 1984. Foi ratificado, até março de 1999, por apenas 9 países: Austrália, Áustria, Chile, México, Marrocos, Países Baixos, Paquistão, Filipinas e Uruguai. E assinado por cinco: França, Guatemala, Índia, Peru e Romênia. Destes 14 países, apenas França e Índia desenvolvem programas espaciais de envergadura.

Assim, pode-se dizer que a referência aos interesses e necessidades dos países em desenvolvimento no Acordo da Lua ainda está longe de representar uma conquista jurídica efetiva para estes países. Mas, a rica experiência de negociação que resultou neste acordo e as propostas nele contidas não deverão ser facilmente descartadas, por maior que seja o desejo neste sentido de alguns países desenvolvidos. Por enquanto, porém, não há ganhos legais.

3. Os "Princípios Reguladores do Uso pelos Estados de Satélites Artificiais da Terra para Transmissão Direta Internacional de Televisão" (6), aprovados na Resolução 37/92 da Assembléia Geral da ONU de 10 de dezembro de 1982, fazem três menções aos países em desenvolvimento, nos seguintes pontos:

"2. Estas atividades (transmissão direta internacional de televisão por satélite) devem promover a livre difusão e o intercâmbio de informações e conhecimentos nos campos cultural e científico, contribuir para o desenvolvimento da educação e para o progresso social e econômico, especialmente dos países em desenvolvimento, elevar a qualidade de vida de todos os povos e prover o lazer, respeitando devidamente a integridade política e cultural dos Estados."

"6. As atividades no campo da transmissão direta internacional de televisão por satélite devem se fundamentar na cooperação internacional e estimulá-la. Esta cooperação deve ser objeto de acordos adequados. Especial atenção deve ser dada às necessidades dos países em desenvolvimento no uso da transmissão direta internacional de televisão por satélite para acelerar seu desenvolvimento nacional."

"11. Sem prejuízo dos dispositivos pertinentes do Direito Internacional, os Estados devem cooperar em base bilateral ou multilateral, para assegurar a proteção dos direitos autorais e análogos por meio de acordos apropriados entre Estados interessados ou pessoas jurídicas competentes que atuem sob sua jurisdição. Nesta cooperação, eles devem conceder especial atenção ao interesse dos Estados em desenvolvimento no uso da transmissão direta internacional de televisão para acelerar seu desenvolvimento nacional."

Esta resolução foi a primeira e única de todos documentos elaborados pelo Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (Copuos) não aprovada por consenso, como é norma neste órgão. Patrocinada por um grupo de 16 países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil, não logrou o apoio dos países desenvolvidos no Copuos e foi levada à votação na Assembléia Geral da ONU, onde recebeu 107 votos a favor, 13 contra e 13 abstenções.

Os países desenvolvidos lhe negaram apoio por se oporem ao princípio da autorização prévia para a transmissao direta internacional de televisão, que ela adotou por proposta dos países em desenvolvimento em aliança com a ex-URSS e os países do então chamado "bloco socialista".

O grupo majoritário dos países em desenvolvimento e socialistas defendia a regra do consentimento prévio como forma de resguardar sua soberania, impedir a interferência em seus assuntos internos e proteger seus valores nacionais e sua identidade cultural.

Os países desenvolvidos, embora minoritários, contestavam esta regra, argumentando com os princípios, a seu ver superiores a todos os demais, da liberdade de expressão e da livre circulação de informações.

Detentores dos recursos financeiros e tecnológicos necessários a qualquer projeto de comunicação por satélite, inclusive os de transmissão internacional direta de televisão, os países desenvolvidos sabiam que nada neste campo poderia ser resolvido sem eles e que, portanto, a simples decisão majoritária da Assembléia Geral da ONU, na prática, não significaria para eles uma derrota. Até porque as resoluções da ONU, meras recomendações, não têm força obrigatória como os tratados e não representam nenhum compromisso nem mesmo para os países que votaram a seu favor.

Apenas dois anos depois, reagindo à Resolução 37/92 e refletindo a posição dos países desenvolvidos, o Comitê de Ministros do Conselho Europeu adotou, em 7 de dezembro de 1984, a Recomendação R(84)22, que, além de instar os governos da Europa Ocidental a harmonizarem suas legislações sobre o uso de satélites, evidencia sua preferência pelos princípios da liberdade de expressão e livre circulação de informações.

A Europa Ocidental partiu, então, para a regulamentação regional das transmissões internacionais diretas de televisão, levando em conta sua especificidade geográfica e ignorando por completo a Resolução 37/92 da Assembléia Geral da ONU.

Com este espírito, o Comitê de Ministros do Conselho da Europa adotou, em 15 de março de 1989, a Convenção Européia sobre Televisão Transfronteira, dispondo sobre o conteúdo dos programas, sem, no entanto, estabelecer um sistema de controle de cada Estado europeu sobre as transmissões vindas de outros países da região. E a Comunidade Européia, por seu turno, aprovou a diretiva "Televisão sem fronteira", não só permitindo como também estimulando as transmissões regionais de televisão sem qualquer restrição nacional.

Cabe ressaltar que, em função deste enfoque, na Europa, a responsabilidade pelas transmissões internacionais diretas de televisão não é atribuída aos Estados, mas às empresas promotoras das transmissões. Isto configura um afastamento do princípio lavrado no Artigo 6º do Tratado do Espaço de que os Estados são sempre responsáveis pelas atividades espaciais de suas organizações nacionais, sejam elas públicas ou privadas.

Os países em desenvolvimento, portanto, alcançaram uma vitória apenas aparente ao conseguirem aprovar a Resolução 37/92 por larga maioria de votos na Assembléia Geral da ONU. Na realidade, como demonstra toda a experiência dos anos subseqüentes, seu ponto de vista não prevaleceu. Os "Princípios Reguladores do Uso pelos Estados de Satélites Artificiais da Terra para Transmissão Direta Internacional de Televisão" se revelaram impotentes para definir o rumo desta atividade cuja importância em todo o mundo só faz crescer.

Desautorizado pela prática o documento, suas propostas caíram no vazio. Nada consta de concreto ter sido feito, posteriormente, para regulamentar e efetivar os três princípios ali expostos destinados a favorecer os países em desenvolvimento, quais sejam:

- Transmissão direta internacional de televisão como contribuição ao desenvolvimento da educação e o progresso social e econômico, especialmente dos países em desenvolvimento;

- Atenção especial às necessidades dos países em desenvolvimento no uso desta transmissão para acelerar seu desenvolvimento nacional;

- Cooperaçao dos Estados para proteger os direitos autorais e análogos com atenção especial ao interesse dos Estados em desenvolvimento no uso da transmissão direta internacional de televisão para acelerar seu desenvolvimento nacional.

4. Nos "Princípios sobre Sensoriamento Remoto" (7), aprovados na Resolução 41/65 da Assembléia Geral da ONU, de 9 de dezembro de 1986, há duas menções aos países em desenvolvimento:

"Princípio II

As atividades de sensoriamento remoto deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os Estados, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico, social, científico e tecnológico, levando em especial consideração as necessidades dos países em desenvolvimento."

"Princípio XII

O Estado sensoriado deverá ter acesso aos dados primários e processados relativos ao território sob sua jurisdição, assim que forem produzidos, em base não discriminatória e a um custo razoável. O Estado sensoriado deverá ter acesso, também, em base não discriminatória e nas mesmas condições e termos, à informação analisada relativa ao território sob sua jurisdição, disponível nos domínios de qualquer outro Estado participante de atividades de sensoriamento remoto, levando-se em especial consideração as necessidades e interesses dos países em desenvolvimento."

Os "Princípios sobre Sensoriamento Remoto", de 1986, foram aprovados por consenso no Copuos, ao contrário dos princípios sobre transmissão direta internacional de televisão por satélite, em 1982. Em quatro anos, portanto, os países em desenvolvimento se convenceram de que não adiantava derrotar os países desenvolvidos no voto, sobretudo em matéria de tecnologia de ponta que só estes dominam.

A questão do sensoriamento remoto por satélite foi discutida no Subcomitê Jurídico do Copuos durante 15 anos. As divergências entre os dois grupos de países eram fundamentais. Os países em desenvolvimento, mais uma vez, estavam preocupados com a proteção da soberania nacional, o consentimento prévio e o controle pelos países sensoriados da distribuição dos dados coletados sobre seus territórios. Os países desenvolvidos, por sua vez, sustentavam a liberdade de uso e a não discriminação na distribuição das informações obtidas através do espaço. (8) Apesar do confronto, chegou-se, afinal, a um texto consensual.

Mas, se em 1982 a estratégia de isolar os países desenvolvidos não trouxe nenhum ganho real para os países em desenvolvimento, em 1986 o empenho em lograr uma solução de compromisso com eles rendeu bem pouco. Em ambos os casos, no essencial, prevaleceram os interesses deles.

Isto fica claro nos dois princípios (II e XII) que se referem explicitamente aos países em desenvolvimento.

O Princípio II repete, em grande parte, o primeiro parágrafo do Artigo 1º do Tratado do Espaço, já referido. Reza ele que "as atividades de sensoriamento remoto deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os Estados, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico, social, científico e tecnológico". Este, claro, é um modo de frisar que os países pobres e atrasados do ponto de vista científico e tecnológico também devem ser favorecidos por tais atividades. Como se não bastasse, acrescenta-se a expressão "levando em especial consideração as necessidades dos países em desenvolvimento".

Que necessidades seriam estas? Elas nunca foram definidas.

Embora aprovados por consenso no Copuos, os Princípios sobre Sensoriamento Remoto, de caráter meramente recomendativo, jamais tiveram o apoio geral dos países desenvolvidos para se tornarem o ponto de partida da elaboração de amplo acordo (obrigatório) sobre a relevante matéria, que poderia detalhar e consolidar as necessidades dos países em desenvolvimento merecedoras de "especial consideração".

O Princípio XII, por seu turno, trata de questão fundamental para os países em desenvolvimento: o acesso dos países sensoriados aos dados sobre seus territórios obtidos pelos países sensoriadores, em geral países desenvolvidos.

Os países em desenvolvimento defendiam o princípio do acesso prioritário dos países sensoriados aos dados a respeito de seus territórios, mas a proposta foi recusada pelos países desenvolvidos.

O texto aprovado não concede nenhum direito preferencial ao estado sensoriado. Este terá "acesso aos dados primários e processados relativos ao território sob sua jurisdição, assim que forem produzidos, em base não discriminatória e a um custo razoável".

É positivo que o estado sensoriado tenha acesso aos dados primários e processados sobre seu próprio território "assim que forem produzidos, em base não discriminatória e a um custo razoável", mas isto é o mínimo que se poderia esperar. O mais lógico e justo seria que ele tivesse o direito de ser o primeiro a conhecer as informações a respeito de seu território. Os países desenvolvidos, porém, entenderam que tal privilégio seria um estorvo no regime de livre circulação de informações e no mercado aberto de imagens sensoriadas, como o que, afinal, se estabeleceu. Assim, o país sensoriado acabou sendo tratado como qualquer outro país com relação aos dados sobre seu próprio território, inclusive porque o conceito de "custo razoável", elástico e impreciso, depende acima de tudo das chamadas "leis de mercado".

Quanto à informação analisada, a situação do país sensoriado se complica ainda mais. Este tipo de informação tende a pertencer não ao Estado sensoriador mas a empresas privadas. Isto pode dificultar em muito o acesso em base não discriminatória e em condições e termos razoáveis. A informação analisada, no caso, é valioso objeto de comércio, que tem suas próprias normas. Como, então, neste contexto, levar "em especial consideração as necessidades e interesses dos países em desenvolvimento"?

Pelo princípio do acesso não discriminatório aos dados (primados, processados ou analisados) de sensoriamento remoto, conforme a interpretação corrente, este dados:

- Devem estar sempre disponíveis, ainda que à venda -- e neste caso não podem ser retirados arbitrariamente do mercado;

- Devem estar sempre disponíveis em condições iguais para todos os interessados, em direito de uso e em preço;

- Não podem ser oferecidos como exclusividade para um único comprador; e

- Não podem ser vendidos a preços que dificultem sua compra pelos países menos desenvolvidos.

À falta de um acordo internacional, no entanto, não há garantias legais de respeito a estas exigências, contra decisões unilaterais e arbitrárias. Vale lembrar que, durante a "Guerra do Golfo" em 1990 e 1991, a empresa francesa Spot-Image e a norte-americana Eosat cortaram a venda de imagens não só ao Iraque como a outros países árabes.

Os países em desenvolvimento, portanto, tem sérias razões para preconizarem a celebração de um acordo sobre sensoriamento remoto, embora na conjuntura atual do mundo isto seja muito pouco viável, dada a oposição dos mais poderosos países desenvolvidos.

É possível que a necessidade de regular mais apropriadamente este assunto venha a ser realçada pela comercialização por empresas privadas – a iniciar-se em 1999 – de imagens de resolução de 1 metro e até menos – antes de uso exclusivo de operações militares de reconhecimento – que levantam sérios problemas de controle de atividades humanas e industriais. (9)

Basta dizer que tal recurso já é considerado valioso para os programas de "inteligência competitiva", que incluem: avaliação dos projetos de obras do concorrente durante sua construção para avaliar o tipo, a função e os possíveis níveis de produção dos equipamentos a serem instalados; observação dos movimentos de saída de uma fábrica para determinar sua capacidade e seu ritmo de produção; exame dos novos tipos de containers para navios ou do aumento da frota de caminhões ou vagões utilizados na distribuição dos produtos; e monitoramento dos avanços da concorrência no campo das redes de comunicação. (10)

Também enfatizam a carência de um trabalho legislativo internacional mais sério a respeito os comentários de Bin Cheng, professor emérito da Universidade de Londres sobre o que nos resta hoje em matéria de regulamentação do sensoriamento remoto por satélite: "extensão do limite do espaço nacional, criminalização pelo direito nacional dos danos e prejuízos causados fora do país, e apelo ao princípio da boa vizinhança."

Isto significa que as atividades de sensoriamento remoto por satélite, apesar de seu inequívoco caráter inrternacional, continuam, na prática, sendo regidas pelo direito interno de alguns países, o que configura clara anomalia. Não por acaso, Bin Cheng conclui suas considerações perguntando se, afinal, valeu a pena gastar 15 anos na elaboração dos princípios aprovados em 1986. A seu ver, como na fábula de Esopo, a montanha deu a luz a um ridículo rato. (11)

5. A Constituição da União Internacional de Telecomunicações (UIT), aprovada em Genebra em 1992, ora em vigor, salienta, em seu Artigo 44 (ex-Artigo 33 da Convenção da UIT de 1982), "as necessidades especiais dos países em desenvolvimento".

Este artigo, de suma importância, estabelece os princípios gerais que regem a alocação e o uso de posições na órbita geoestacionária e de suas respectivas freqüências de rádio.

Ele está assim formulado:

"1. Os membros devem empenhar-se para limitar o número de freqüências e o espectro utilizado ao mínimo indispensável para assegurar, de maneira satisfatória, o funcionamento dos serviços necessários. Para este fim, tentarão aplicar, no menor prazo possível, os mais recentes avanços técnicos.

2. No uso das faixas de freqüências para serviços de radiocomunicações, os membros devem considerar que as freqüências e a órbita dos satélites geoestacionários são recursos naturais limitados e que devem ser utilizados de forma eficaz e econômica, conforme as disposições dos Regulamentos de Radiocomunicações, para permitir o acesso equitativo a essa órbita e a essas freqüências aos diferentes países ou grupo de países, tendo em conta as necessidades especiais dos países em desenvolvimento e a situação geográfica de determinados países." (12)

A expressão "necessidades especiais dos países em desenvolvimento", neste caso, está relacionada, antes de mais nada, com a garantia de acesso destes países aos recursos órbita/freqüência, definidos como "recursos naturais limitados".

Já na Conferência da UIT de 1963, quando apenas se iniciavam as telecomunicações por satélite, os países em desenvolvimento frisaram que tais recursos naturais poderiam acabar monopolizados pelos países desenvolvidos, se fosse mantida a regra do "first come, first served" (quem primeiro chegar será servido), que também passava a ser adotado para a distribuição de posições orbitais e suas freqüências.

Desde então, nunca mais os países em desenvolvimento deixaram de reiterar esta preocupação, que se tornou crescente. Tanto que dela nasceu a proposta de um novo princípio: o do acesso equitativo à órbita geoestacionária – a chamada "órbita milionária", por onde ainda hoje se realizam os mais prósperos sistemas de telecomunicações por satélite, seja para serviços fixos ou móveis, seja para serviços de radiodifusão.

Na Conferência da UIT de 1977, o novo princípio materializou-se pela primeira vez na decisão adotada de congelar a regra do "first come, first served" para transmissão direta de televisão, abrindo caminho a uma solução que atendesse de alguma forma os anseios dos países em desenvolvimento.

A seguir, a Conferência da UIT de 1979 aprovou duas recomendações sobre o tema.

A primeira, formulando um apelo em prol dos direitos iguais de todos os países no uso dos recursos órbita/freqüência, indica que o registro da freqüência e seu uso não conferem prioridade permanente a qualquer Estado ou grupo de Estados e não podem impedir o estabelecimento dos sistemas espaciais de outros Estados.

E a segunda, que convoca a Conferência da UIT de 1985/88, define como um de seus objetivos o de "garantir na prática, para todos os países, o acesso equitativo à órbita de satélites geoestacionários e às faixas de freqüência alocadas para os serviços espaciais". (13)

Em 1982, nesta mesma linha, a Unispace II – 2ª Conferência das Nações Unidas sobre a Exploração e o Uso Pacífico do Espaço Exterior (a 1ª for a realizada em 1968 e a 3ª está marcada para julho de 1999), convocada em grande parte por pressão dos países em desenvolvimento, tratou do acesso de todos os países aos benefícios das atividades espaciais, em especial aos benefícios da utilização da órbita geoestacionária e suas freqüências. O encontro reconheceu que as posições na órbita geoestacionária e suas freqüências são recursos únicos e que a otimização de seu uso exige um "planejamento e/ou organização" capaz de levar em conta necessidades presentes e futuras e, especificamente, as necessidades dos países em desenvolvimento.

A Conferência da UIT de 1985/88, por fim, ao mesmo tempo em que manteve a regra do "first come, first served", aprovou um plano de alocação a priori, permitindo que cada Estado satisfaça suas necessidades para o estabelecimento de um serviço nacional, tendo assegurado, pelo menos, uma posição orbital, dentro de ato e de faixa pré-determinados. Segundo a decisão, o novo método de planejamento deve "garantir na prática, para todos os países, o acesso equitativo (aos recursos órbita/freqüência), levando em consideração as necessidades especiais dos países em desenvolvimento". (14)

Este tema foi ganhando maior dimensão na medida em que passou a se agravar o congestionamento de satélites nos trechos da órbita geoestacionária mais procurados para serviços de telecomunicações, como por exemplo na parte situada sobre a Ásia.

Hoje, portanto, há duas vias de acesso aos referidos recursos:

1) a do "first come, first served", defendida pelos países desenvolvidos em nome da eficácia tecnológica e econômica no uso de um recurso limitado; e

2) a da planificação a priori, conquistada pelos países em desenvolvimento com base no princípio da equidade. (15)

Esta duplicidade consagrada pela Conferência da UIT de 1985/88, após tantos anos de acirrados debates, representou clara acomodação de interesses entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. (16)

Ocorre que apenas algumas formas de utilização dos recursos órbita/freqüência são de fato submetidas ao princípio do acesso equitativo. Isto demonstra que a solução encontrada é parcial e limitada. Além do mais, como salienta o professor francês Armand Roth, o regime (a priori) "não leva em conta os meios técnicos e financeiros necessários ao acesso às telecomunicações espaciais dos países em desvantagem". Ainda falta, portanto, uma resposta global e profunda ao problema do acesso dos Estados à órbita geoestacionária. (17)

Assim, esta que provavelmente seja a maior vitória dos países em desenvolvimento nas lutas pelo reconhecimento de seus interesses e necessidades especiais está longe de ter alcançado a dimensão política e jurídica que parecia ter ao longo das discussões.

6. Em caso de acidente com um objeto espacial movido a energia nuclear que retornou à Terra, "as necessidades especiais dos países em desenvolvimento" devem merecer atenção por parte do país lançador, bem como dos países e das organizações internacionais com capacidade técnica para prestar socorro em tal situação.

Esta deferência é recomendada pelo princípio 7 dos "Princípios Relativos ao Uso de Fontes de Energia Nuclear no Espaço Exterior", documento aprovado pela Assembléia Geral da ONU, em 14 de dezembro de 1992, em sua Resolução 47/68. (18)

Este dispositivo diz:

"Princípio 7. Assistência aos Estados

1. Após a notificação de reingresso previsto na atmosfera da Terra de um objeto espacial portador de fonte de energia nuclear e seus componentes, todos os Estados que possuem instalações de vigilância e rastreio, comunicarão, com a maior rapidez possível, ao Secretário Geral das Nações Unidas e ao Estado interessado, em conformidade com o espírito de cooperação internacional, a informação pertinente de que disponham sobre o funcionamento defeituoso do objeto espacial portador de fonte de energia nuclear, a fim de que os Estados que possam ser afetados avaliem a situação e tomem as medidas de precaução que considerarem necessárias.

2. Depois do reingresso na atmosfera da Terra de objeto espacial portador de fonte de energia nuclear e seus componentes:

a) O Estado de lançamento deverá oferecer imediatamente e, se o Estado afetado o solicitar, deverá prestar imediatamente a assistência necessária para eliminar os efeitos prejudiciais reais e possíveis, inclusive a assistência para se determinar a localização da zona de impacto da fonte de energia nuclear na superfície da Terra, detectar o material que reingressou e realizar operações de recuperação e limpeza;

b) Todos os demais Estados que tenham a capacidade técnica pertinente e as organizações internacionais que possuam esta capacidade técnica deverão proporcionar a assistência necessária, na medida do possível e sob prévia solicitação do Estado afetado.

Ao se prestar assistência em conformidade com o disposto nos parágrafos a) e b) supra, deverão ser levadas em consideração as necessidades especiais dos países em desenvolvimento."

O monitoramento de um objeto espacial em pane, munido de fonte de energia nuclear, e os cálculos sobre sua trajetória de reingresso na atmosfera são operações especializadas e extremamente onerosas. O mesmo se pode dizer das ações de assistência necessárias en caso de acidente em Terra provocado pela caída de tal artefato.

Vale supor que os autores dos princípios sobre o uso da energia nuclear no espaço partiram, corretamente, da premissa de que os países em desenvolvimento afetados não teriam meios tecnológicos nem financeiros para enfrentar o desastre, sendo então indispensável a ajuda dos países desenvolvidos e organizações internacionais. (19)

Esta questão, no entanto, permanece até hoje não regulamentada em termos de um acordo internacional, como seria desejável, no qual o apoio específico aos países em desenvolvimento atingidos por um acidente nuclear espacial certamente poderia ganhar um ordenamento mais detalhado, preciso e seguro.

7. Os países em desenvolvimento aparecem com destaque já no próprio título da "Declaração sobre a Cooperação Internacional na Exploração e Uso do Espaço Exterior em Benefício e no Interesse de todos os Estados, levando em Especial Consideração as Necessidades dos Países em Desenvolvimento", aprovada pela Assembléia Geral da ONU em sua Resolução 51/122, de 13 de dezembro de 1996. (20) Eles são citados nominalmente em três tópicos deste documento:

"1. A cooperação internacional na exploração e uso do espaço exterior para fins pacíficos (daqui por diante designada de "cooperação internacional") deve ser conduzida de acordo com as normas do Direito Internacional, inclusive a Carta das Nações Unidas e o Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Exterior, inclusive a Lua e demais Corpos Celestes. Ela deve ter em mira o bem e interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico, social, científico e tecnológico, e é incumbência de toda a humanidade. As necessidades dos países em desenvolvimento devem ser levadas em especial consideração."

"3. Todos os Estados, especialmente aqueles com importante capacidade espacial e com programas de exploração e uso do espaço exterior, devem contribuir para a promoção e o avanço da cooperação internacional em bases equitativas e mutuamente aceitáveis. Neste contexto, atenção especial deve ser prestada ao bem e ao interesse dos países em desenvolvimento e países com programas espaciais incipientes decorrentes desta cooperação internacional promovida com países dotados de capacidade espacial mais avançada."

"5. A cooperação internacional, ao levar em especial consideração as necessidades dos países em desenvolvimento, deve perseguir, inter alia, os seguintes objetivos, tendo em vista eficiente alocação de recursos:

- Promover o desenvolvimento da ciência e tecnologia espaciais e de suas aplicações;

- Estimular o desenvolvimento das capacidades espaciais relevantes e apropriadas nos países interessados;

- Facilitar o intercâmbio de especialistas e de tecnologias entre os Estados, em bases mutuamente aceitáveis." Conhecida como "Declaração sobre Benefícios Espaciais", esta resolução da Assembléia Geral da ONU, da mesma forma que as anteriores, não tem força obrigatória.

Ela é resultado de acalorado debate entre países em desenvolvimento e desenvolvidos, no Subcomitê Jurídico do Copuos, sobre como interpretar o § 1º do Artigo 1º do Tratado do Espaço ("A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade.").

Em 1988, os países em desenvolvimento lograram aprovação consensual do Subcomitê Jurídico do Copuos para incluir em sua agenda de trabalho o item, cujo longo título por si só já refletia as dificuldades políticas e jurídicas envolvidas: "Considerações sobre os aspectos legais relativos à aplicação do princípio de que a exploração e o uso do espaço exterior deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os Estados, levando em especial consideração as necessidades dos países em desenvolvimento."

Os países desenvolvidos concordaram com a proposta desde que ela fosse apenas discutida e não tivesse em vista a elaboração de um projeto de texto legal. (21).

Para sua surpresa, em 1991, nove países (Brasil, Chile, Mexico, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Uruguai, Venezuela e Argentina) apresentaram um "working paper" com o projeto intitulado "Princípios sobre Cooperação Internacional na Exploração e Uso do Espaço Cósmico para Fins Pacíficos" (22). Eis os principais pontos da proposta:

- Os paises com destacada competência espacial têm "especial responsabilidade pela promoção e fomento da cooperação em ciência e tecnologia espaciais e em suas aplicações";

- "Todos os Estados devem ter acesso aos conhecimentos e aplicações decorrentes da exploração e uso do espaço exterior, em bases equitativas, não discriminatórias e adequadas";

- Os países com programas espaciais "devem permitir o acesso, aos conhecimentos e aplicações deles resultantes, dos outros países, em particular dos países em desenvolvimento, mediante programas de cooperação destinados a este fim";

- As condições oferecidas a um país, em programas especiais de cooperação espacial, devem ser estendidas aos outros países;

- Os países em desenvolvimento devem gozar de tratamento especial; a eles deve ser dada preferência nos programas de difusão de conhecimentos científicos e tecnológicos; e deles não deve se exigir reciprocidade;

- O principal objetivo da cooperação espacial deve ser o desenvolvimento da competência interna de todos os paises em ciência e tecnologia espaciais e suas aplicações;

- Os Estados devem promover o intercâmbio de materiais e equipamentos para uso e exploração do espaço e a transferência de suas tecnologias em condições justas e equitativas de preço e pagamento; e

- Nenhum condicionamento arbitrário ou discriminatório pode ser aplicado aos conhecimentos ou aplicações referentes à exploração e uso do espaço para fins pacíficos.

Os países desenvolvidos reagiram de forma ríspida. Não aceitaram sequer discutir a proposta. Na visão deles, os países em desenvolvimento, com base na concepção de uma nova ordem econômica internacional surgida ainda nos anos 70, perseguiam objetivos inadmissíveis: a "cooperação forçada", a "transferência automática de recursos financeiros e tecnológicos do Norte para o Sul", a "revolução redistributiva na cooperação espacial internacional". (23)

Ante tão dura reação, em 1993, o mesmo grupo de países em desenvolvimento (mais a Colômbia) refez sua proposta, procurando torná-la palatável aos países desenvolvidos. (24)

Onde antes se dizia que os países com destacada competência espacial têm "especial responsabilidade pela promoção e fomento da cooperação em ciência e tecnologia espaciais e em suas aplicações", agora se afirmava que eles "devem contribuir" para a promoção e fomento da cooperação espacial. E adicionava-se um tópico de interesse dos países desenvolvidos: "Os Estados são soberanos para decidir as modalidades de sua cooperação, levando em conta a solidariedade e a equidade que deve prevalecer na exploração e uso do espaço exterior para fins pacíficos, como incumbência de toda a humanidade, especialmente no quadro da cooperação multilateral." Na nova versão, em lugar de "permitir o acesso aos conhecimentos e aplicações" de seus programas espaciais, os países industrializados deveriam apenas "facilitar" este acesso.

Mantinha-se, contudo, o desenvolvimento da competência interna de todos os países como "principal objetivo" da cooperação espacial.

Em 1995, Alemanha e França, percebendo a possibilidade de negociação, formularam uma proposta (25) com as principais posições dos países desenvolvidos -- basicamente duas:

1) Os Estados são livres para determinar todos os aspectos de sua cooperação internacional, seja bilateral ou multilateral, comercial ou não-comercial; e

2) Os Estados devem escolher a forma mais efetiva e apropriada de cooperação tendo em vista aplicar eficientemente os seus recursos.

Também em 1995, os países em desenvolvimento ofereceram uma terceira versão de sua proposta (26), já visando uma solução de compromisso.

Apesar das divergências ainda subsistentes, o acordo veio mais rápido do que se esperava. Em março de 1996, os representantes da Alemanha, França e Brasil prepararam um projeto conjunto, que acabou aprovado logo em junho do mesmo ano pelo Copuos e em dezembro pela Assembléia Geral da ONU.

Segundo Marietta Benkö e Kai-Uwe Schrogl, da Alemanha, "longe o mais importante", neste processo, é que "todos os Estados membros do Copuos, finalmente, concordaram com os fundamentos de um regime liberal, como o apresentado pela proposta germano-francesa, que ainda refletiram, em grande parte, o último projeto dos países em desenvolvimento". (27)

Vejamos o que a Declaração adotada recomenda com relação a estes países.

O § 1º apenas repete os Artigos 1º e 3º do Tratado do Espaço e reafirma que "as necessidades dos países em desenvolvimento devem ser levadas em especial consideração".

O § 3º indica que os países com programas espaciais "devem contribuir para a promoção e o avanço da cooperação internacional em bases equitativas e mutuamente aceitáveis", prestando "atenção especial" "ao bem e ao interesse dos países em desenvolvimento". Ou, na interpretação dos já citados Marietta Benkö e Kai-Uwe Schrogl, "as potências espaciais não devem esquecer de integrar os países em desenvolvimento na exploração espacial". Este parágrafo deixa a critério das partes a decisão de cooperar, o que, como mostra a experiência, coloca em situação de vantagem o lado mais forte do ponto de vista financeiro e tecnológico.

O § 5º alinha os objetivos da cooperação internacional que leva "em especial consideração as necessidades dos países", ressaltando a importância da "eficiente alocação de recursos". Entre os objetivos fixados estão o de estimular o desenvolvimento da competência interna nos "países interessados" e o de facilitar o intercâmbio de especialistas e tecnologias entre os países, "em bases mutuamente aceitáveis". Este parágrafo reforça o espírito "liberal" que permeia a Declaração, vinculando a cooperação internacional à "eficiente alocação de recursos" e a transferência de tecnologia espacial às condições aceitáveis por quem a detém.

Esta visão, cabe salientar, aparece com extrema clareza no § 2, que reza:

"Os Estados têm liberdade para definir todos os aspectos de sua participação na cooperação para a exploração e uso do espaço exterior, em bases eqüitativas e mutuamente aceitáveis. Os termos contratuais destes empreendimentos cooperativos devem ser justos e razoáveis e estar em plena conformidade com os direitos e interesses legítimos das partes concernentes, como, por exemplo, com os direitos de propriedade industrial."

Sintomaticamente, o prof. Manuel A. Ferrer, da Argentina, considerou "realista" o documento (28), enquanto o embaixador Raimundo Gonzáles Animat, representante do Chile no Copuos, notou muito bem que "em alguns de seus parágrafos operativos há uma porta de escape para que esta cooperação fique de certa maneira sujeita ao que opine o país que vai outorgar esta cooperação, o que, a meu juízo, de um ponto de vista estritamente jurídico, dá certa imprecisão e uma falta de consistência com os principios fundamentais". (29)

O prof. Bin Cheng, do Reino Unido, por sua vez, ao mesmo tempo em que saudou a deliberação de que "a cooperação internacional deve ser voluntária e realizada em termos ‘justos’ e ‘razoáveis’", fez questão de "lembrar aos países com competência espacial que deve ser de seu próprio interesse a longo prazo que a tecnologia e os benefícios espaciais sejam compartilhados na medida mais ampla possível", pois "até o mais mercantilista dos Estados deve perceber que, numa visão larga, será melhor viver num mundo habitado, não por bocas famintas, mas por clientes abastados". (30)

Na realidade, o documento resguarda plenamente os interesses essenciais dos países desenvolvidos e exorta-os a demonstrarem compreensão e boa vontade em seus programas de cooperação espacial com os países em desenvolvimento.

O lado forte desta relação são, de fato, os países desenvolvidos. Por isto, com certeza, N. Jasentuliyana, diretor do Escritório da ONU para Assuntos Espaciais e presidente do Instituto Internacional de Direito Espacial, observou diplomaticamente: "Enquanto a elaboração de um conjunto de princípios pode, ao final, revelar-se útil, medidas imediatas podem ser tomadas para melhorar o acesso de todos os países aos benefícios das tecnologias espaciais. Se todos querem, é possível estabelecer programas que estimulem a participação de todos os países e, através disso, todos os países haverão de se beneficiar." Assim, frisa ele, "os países industrializados hão de alcançar importantes benefícios na forma de maior estabilidade e segurança regionais e internacionais". (31)

À guisa de conclusão

Marietta Benkö e Kai-Uwe Schrogl assinalaram, otimistas, a propósito da aprovação da Declaração sobre Benefícios Espaciais, que este fato "marca o fim do debate Norte-Sul sobre a cooperação e a transferência de recursos como ações forçadas" e que "a Declaração, ao fornecer uma interpretação autorizada do princípio da cooperação constante no Artigo 1º do Tratado do Espaço, impede novos confrontos em nível político geral".

Finda a Guerra Fria, os países desenvolvidos puderam acelerar o processo de globalização econômico-financeira, que, pelo menos neste período, lhes é francamente favorável. Eles estão hoje na liderança e no comando do mundo. Os países em desenvolvimento, por seu turno, perderam o campo de manobras e as oportunidades políticas que tinham graças, em grande parte, à longa rivalidade entre os blocos liderados pelos EUA e pela ex-URSS.

Neste novo contexto, a idéia de cooperação compulsória, imposta juridicamente, sobretudo em áreas de tecnologia de ponta, surge, mais do que nunca, como uma incongruência. A discussão em torno desta fórmula estreita, baseada em confronto direto e insustentável, parece, de fato, ter chegado ao fim.

Mas, provavelmente, é prematuro afirmar que interpretação dada na Declaração sobre Benefícios Espaciais ao Artigo 1º do Tratado do Espaço esgote a questão e elimine a possibilidade de novas controvérsias entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Na verdade, os dramáticos problemas de relacionamento entre estes dois grupos de países, que hoje ocupam o centro da evolução social e humana do planeta, estão cada vez mais distantes de terem sido resolvidos. E, neste quadro, tratar como parceiros iguais em contratos e negócios países em crescente processo de desigualdade é também uma fórmula estreita e condenada ao fracasso, pois ignora as imensas dificuldades do subdesenvolvimento da maior parte dos países e agrava seus efeitos perversos. (32)

Superar esta situação é um dos maiores desafios que se projetam no século XXI.

Felizmente já se amplia a consciência – como testemunham palavras do próprio diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Renato Ruggiero – de que "o desenvolvimento é desafio global que requer soluções globais", envolvendo todos os atores internacionais e nacionais no mais alto nível, pois "sem um coerente plano para enfrentar a inaceitável marginalização que vemos no mundo de hoje, corremos o risco de construir esta nova economia global sobre alicerces de areia". (33)

Esta tarefa exige um labor político e jurídico sem prescententes. Ainda assim, a experiência acumulada pelo emprego em instrumentos internacionais da expressão "interesses e necessidades dos países em desenvolvimento" e versões similares, cujos pontos essenciais tentamos mostrar neste trabalho, é acervo nada desprezível na nova etapa, sobretudo para não lhe repetir os erros e levar adiante, mais competente e amadurecida, a luta ininterrompível pelo desenvolvimento e pela justiça.

O direito defronta-se com a mais impossível de suas missões na história.

Notas

* Este trabalho foi preparado para ser apresentado na 51ª Reunião Annual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), 1999.  (Volta ao texto)

** Jornalista e jurista, mestre em Direito Internacional, professor de Direito Espacial e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), membro da diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial da Federação Internacional de Astronáutica.  (Volta ao texto)

1) Martin, Pierre-Marie, Droit des activités spatiales, Masson, Paris, 1992, p. 9  (Volta ao texto)

2) Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes, aprovado pela Assembléia Geral da ONU em 19 de dezembro de 1966, aberto à assinatura em 27 de janeiro de 1967, em vigor desde 10 de outubro de 1967. Tem 93 ratificações (inclusive a do Brasil) e 27 assinaturas. Direito Espacial – Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições legais em vigor, organizado pela Núcleo de Estudos de Direito Espacial da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA) e editado pela Agência Espacial Brasileira (AEB) e SBDA, Brasília, 1997, pp. 13-17; Marotta Rangel, Vicente, Direito e Relações Internacionais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, 4ª edição, pp. 317-322; Albuquerque Mello, Celso Duvivier, Direito Internacional Público –Tratados e Convenções, Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1986, pp. 535-540.  (Volta ao texto)

3) Acordo sobre as Atividades dos Estados na Lua e nos Corpos Celestes, aprovado pela Assembléia geral da ONU em 5 de dezembro de de 1979, aberto à assinatura em 18 de dezembro de 1979, em vigor desde 11 de julho de 1984. Tem 9 ratificações e 5 assinaturas. O Brasil não assinou. Direito Espacial – Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições legais em vigor, pp. 43-49.  (Volta ao texto)

4) Eis os cinco instrumentos internacionais da área espacial: 1. Tratado sobre os Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Exterior, inclusive a Lua e demais Corpos Celestes (ver nota 2); 2. Acordo sobre Salvamento de Astronautas e Restituição de Astronautas e Objetos lançados ao Espaço Cósmico, aprovado pela Assembléia Geral da ONU em 19 de dezembro de 1967, aberto à assinatura em 22 de abril de 1968, em vigor desde 3 de dezembro de 1968. Tem 83 ratificações (inclusive a do Brasil) e 24 assinaturas; 3. Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 29 de novembro de 1971, aberta à assinatura em 29 de março de 1972, em vigor desde 1º de setembro de 1972. Tem 76 ratificações (inclusive a do Brasil) e 26 assinaturas; 4. Convenção sobre Registro de Objetos lançados ao Espaço Cósmico, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 12 de novembro de 1974, aberta à assinatura em 14 de janeiro de 1975, em vigor desde 15 de setembro de 1976. Tem 39 ratificações e 4 assinaturas. O Brasil não assinou; 5. Acordo sobre as Atividades dos Estados na Lua e nos Corpos Celestes (ver nota 3). Direito Espacial – Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições legais em vigor.  (Volta ao texto)

5) Van Traa-Engelman, H. L., Commercial Utilization of Outer Space - Law and Practice, The Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers, 1993, p. 25.  (Volta ao texto)

6) Direito Espacial – Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições legais em vigor, pp. 63-65.  (Volta ao texto)

7) Direito Espacial – Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições legais em vigor, pp. 57-59.  (Volta ao texto)

8) Cocca, Aldo Armando, The Legal Aspects Relatiing to the Civil Aplications of Space Technology, in Perspectives of International Law, Edited by Nandasiri Jasentuliyana, London: Kluwer, 1995, p. 437.    (Volta ao texto)

9) Sgrosso, Gabriella Catalano, Le point de vie du juriste, in Droit, Télédétection et Environnment, sous la direction de Simone Sourteis, France, Sides, 1994, pp. 197-208.  (Volta ao texto)

10) Space News, May, 3, 1999. Título da matéria: "New imagers might reveal corporate secrets – Use of high-resolution data raises privacy concerns".  (Volta ao texto)

11) Cheng, Bin, Studies in International Space Law, Oxford University Press, New York, 1997, p. 597.  (Volta ao texto)

12) Final Acts of the Additional Plenipotentiary Conference (Geneva, 1992), Constitution and Convention of the International Telecommunication Union – Optional Protocol, Resolutions, Recommendation, International Telecommunication Union (ITU), 1993 (ISBN 92-61-04771-8), p. 36 (a tradução é de responsabilidade do autor). (Volta ao texto)

13) Final Acts, World Adminstrative Radio Conference, Geneva, 1979, RESPB-1.  (Volta ao texto)

14) Conference Document 324 (Rev. 1), 15 September 1985.  (Volta ao texto)

15) Ravillon, Laurence, Les Telecommunications par satellite, Université de Bourgogne – CNRS, France, Editions Litec-Credimi, 1997, pp. 53-57.  (Volta ao texto)

16) Christol, Carl Q., Space Law, Past, Present and Future, The Netherlands: Kluwer, 1991, p. 156.  (Volta ao texto)

17) Roth, Armand, La prohibition de l’appropriation et les régimes d’accés aux espaces extra-terrestres, Press Universitaire de France, Paris, 1992, pp. 245-6. (Volta ao texto)

18) Direito Espacial – Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições legais em vigor, pp. 69-74.  (Volta ao texto)

19) Benkö, Marietta, and Gebhard, Jürgen, The Use of Nuclear Power Sources in Outer Space, in International Space Law in the Making – Current Issues in the UN Committee on the Peaceful Uses of Outer Space, edited by Marietta Benkö and Kai-Uwe Schrogl, Editions Frontières, France, 1993, p. 41.  (Volta ao texto)

20) Direito Espacial – Coletânea de convenções, atos internacionais e diversas disposições legais em vigor, pp. 77-8.  (Volta ao texto)

21) Benkö, Marietta, and Schrogl, Kai-Uwe, The 1996 UN-Declaration on "Space Benefits" Ending the North-South Debate on Space Cooperation, Proceedings of The 39th Colloquium on The Law of Outer Space, October 7-11, 1996, Beijing, China, p. 183.  (Volta ao texto)

22) UN Doc A/AC.115/C.2/L.182 of 9 April 1991. Monserrat Filho, José, Novo conceito de cooperação espacial, com o texto completo do projeto de "Princípios sobre Cooperação Internacional na Exploração e Uso do Espaço Exterior para Fins Pacíficos", Revista Brasileira de Direito Aeroespacial, nº 56, de janeiro/fevereiro de 1992.  (Volta ao texto)

23) Berkö, M. & Schrogl, K. U., International Space Law in the Making, Editions Frontières, Gif-sur-Yvette, 1993, pp. 195-231.  (Volta ao texto)

24) UN Doc A/AC.115/C.2/L.182/Rev. 1 of 31 March 1993.  (Volta ao texto)

25) UN Doc. A/Ac.105/C.2/L.197 of 27 March 1995. Berkö, M. & Schrogl, "Space Benefits" – towards a useful framework for international cooperation, in Space Policy (11,1) 1995.  (Volta ao texto)

26) UN Doc A/AC.115/C.2/L.182/Rev. 2 of 23 March 1995.  (Volta ao texto)

27) Benkö, Marietta, and Schrogl, Kai-Uwe, The 1996 UN-Declaration on "Space Benefits" Ending the North-South Debate on Space Cooperation, Proceedings of The 39th Colloquium on The Law of Outer Space, October 7-11, 1996, Beijing, China, p. 185.  (Volta ao texto)

28) Ferrer, Manuel A., Proyecto de Resolucion del Copuos sobre Cooperacion Internacional, Cida-E, Revista del Centro de Investigaciones y Difusion Aeronautico-Espacial, Año XII, nº 22, 1997, p. 36.    (Volta ao texto)

29) Gonzales Animat, Raimundo, Reflexiones sobre el Desarrollo del Derecho Espacial, Cida-E, Revista del Centro de Investigaciones y Difusion Aeronautico-Espacial, Año XII, nº 22, 1997, p. 43.  (Volta ao texto)

30) Cheng, Bin, The 1967 Space Treaty: Thirty Years On, Proceedings of The 40th Colloquium on The Law of Outer Space, October 6-10, 1997, Turin, Italy, p. XXVI.  (Volta ao texto)

31) Jasentuliyana, Nandasiri, Ensuring equal access to the benefits of space technology for all countries, Space Policy, Volume 10, Number 1, February 1994, pp. 17-18. (Volta ao texto)

32) Flory, Maurice, Mondialisation et Droit du Dévelopment, Revue Générale de Droit International Public, Nº 3, Juillet-Août-Septembre de 1997.  (Volta ao texto)

33) Discurso do diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Renato Ruggiero, perante o Comitê Preparatório do Grupo dos 77 para a X UNCTAD (Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento), em Genebra, em 13 de abril de 1999. Ver no endereço eletrônico <http://www.wto.org/wto/speeches/unstad77.htm>  (Volta ao texto)

 

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