Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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PELO FORNECIMENTO DE AERONAVES !

José M. V. Rocha (*)

1. APARELHAR A AVIAÇÃO civil custará nos próximos vinte anos mais de um trilhão de dólares (1), crescente a demanda de aeronaves. Efetivamente, o preço destas ultrapassa, não raro, milhões de dólares a unidade. O acesso a tamanhas quantias depende de créditos internacionais. E o risco pode encarecê-los, ou impossibilitá-los.

2. Por isto o Instituto pela Unificação do Direito Privado, conhecido como UNIDROIT (2), prepara uma Conferência Diplomática, desde 1988, com o fim de assegurar e facilitar o financiamento, entre outros bens (3), de aviões e seus acessórios, mediante regras que se contêm em dois anteprojetos: a) convenção acerca de direitos sobre equipamentos móveis, e b) protocolo complementar (4), tidos estes documentos como instrumento único (5).

3. Com relação à Convenção de 1948 (6), a respeito de reconhecimento internacional de direitos sobre aeronaves; à que a precedera, em 1933 (7), unificando certas regras de seu arresto, e à de 1988

no tocante a seu arrendamento mercantil (8), procura-se criar desse modo direito novo e eficaz (9).

4. A este respeito convém primeiro assinalar que os anteprojetos o fazem com flexibilidade. Permitem aos aderentes lançar declarações e reservas quanto a pontos importantes. A execução extrajudicial dos contratos, por exemplo, pode ser assim arredada (art. Y, al. 2a, do anteprojeto de convenção) (10).

5. Os meios diretos pelos quais os anteprojetos buscam a melhora do exercício dos créditos são(art. 9.º da convenção): a) retomada do bem financiado; b) sua venda ou locação; ou c) percepção de sua renda ou lucro. Devem ser exercitados de maneira comercialmente razoável, como tal entendida quando conforme a disposição contratual, salvo se em juízo considerada esta manifestamente desarrazoada. Um quarto meio de exercício do crédito é a impetração em juízo de autorização ou ordem para o exercício de qualquer daqueles outros, se acaso necessário.

6. IMPOSSÍVEL É, PORÉM, ante a complexidade dos dois anteprojetos, formular um juízo sobre cada uma de suas partes, até porque exíguo o espaço disponível. Impõe-se, portanto, escolher alguns aspectos para comentário, sob o prisma jurídico brasileiro, e o que importa, em primeiro lugar, é o seu próprio escopo. De que tratam?

7. Oficiais os textos inglês e francês, cabe um caveat quanto ao que seria objeto de ambos (11). A versão inglesa, com efeito, é intitulada "Preliminary Draft Unidroit Convention on International Interests in Mobile Equipment" (Projeto Preliminar de Convenção do Unidroit sobre Direitos sobre Equipamento Móvel), ao passo que a francesa tem como título "Avant-Projet de Convention d'Unidroit Relative aux Garanties Internationales portant sur des matériels d'équipement mobiles" (Anteprojeto de Convenção do Unidroit relativa às Sanções Internacionais sobre materiais de equipamento móveis). Ao adotar o termo "garanties" no lugar de "interests" o texto francês pode dar a idéia de que se trata de garantias. Na realidade, porém, "garanties" é um "faux ami". Não se trata de direitos reais de garantia, mas da sanção da inexecução de obrigações contratuais, sentido que o vocábulo tem no francês jurídico. A ser de outro modo, reduzir-se-ia a sua aplicabilidade àqueles direitos acessórios, o que não se compadece com a clara possibilidade de aplicar-se também à locação ou ao arrendamento puros e simples.

8. A respeito, como tipos previstos, os anteprojetos encerram apenas a venda com reserva de domínio(conditional sale) e o arrendamento mercantil (leasing agreement)(art. 2.º do anteprojeto de convenção); mas não há dúvida de que aí não se exaurem as fórmulas possíveis, como transparece de sua aplicabilidade à locação e ao arrendamento puros e simples(§ 7.º, acima); e a referência a contrato de garantia(security agreement, letra "a", al. 2.ª, do citado art.), por igual, parece abrir o caminho para soluções inominadas.

9. Tira-se do regime proposto(§ 5o, acima) que não se cuida meramente de garantias, na verdadeira acepção deste termo (meio acessório de fazer valer o contrato principal), mas de direitos reais, caracterizados pela seqüela, dentre os quais, no caso da locação ou arrendamento puros e simples, o direito de propriedade mesmo ou o de posse indireta (art. 486 do Cód. Civ.). Assim não fora, não teria então o locador ou arrendador como reaver a coisa alugada ou arrendada, em não pagamento do locatário ou arrendatário, à falta de garantia em sentido estrito. Em suma, no sistema de direito brasileiro, não parece a melhor a tradução de "interests" por "garantias", problema que não é, meramente, lingüístico, mas sobretudo institucional.

10. Desse modo, para designar o objeto dos anteprojetos, seria até melhor utilizar a clássica expressão "direitos reais", sobre aeronaves e acessórios, indicativa do que parece ser o seu onipresente trunfo: o direito de seqüela, aquele de perseguir o bem em lide, subtraindo-o a quem, indevidamente, o tenha consigo(art. 524, caput, in fine, do Cód. Civ.), se possível fora de juízo (12) e, em qualquer caso, com celeridade. A propósito deste aspecto tanto teórico como prático, vale ressaltar que a Convenção de 1948 se refere a "direitos sobre aeronaves", expressão, mais genérica, que encerra a idéia em tela, pois implica na seqüela e libera-se da subordinação, inerente às garantias.

11. Outro ponto, enfim, mencionável nesse contexto de direitos reais é o que seria verdadeiro corpo estranho no direito pátrio, mas integra os conceitos dos anteprojetos: o chamado "control", que se prevê no art. 9, alínea 1, letra "a" da Convenção, no tocante a remédio ou recurso em inexecução. Em nosso direito das coisas, a propriedade enfeixa três poderes com relação ao bem que lhe é objeto (art. 524 do Cód. Civ.): o de usar (no caso da aeronave, pilotá-la), o de gozar (fretá-la, arrendá-la ou de outra forma fazê-la render) e o de dispor (transferir-lhe a propriedade). Fora do exercício desses poderes, o qual caracteriza a posse (art. 485 do Cód. Civ.), existem situações peculiares, como as de guarda e de detenção: ter consigo a coisa, mas não a possuir, com ou sem o dever de defendê-la. Seria equivalente a "controlá-la"? O termo "control" parece excrescência, ante "posse", também no dispositivo convencional, para o leitor de direito latino.

12. A razão de ser dos anteprojetos, na verdade, é a necessidade de facilitar e assegurar a concessão de crédito internacional por meio da implementação da seqüela ("asset-based financing and leasing"). A pronta disposição dos bens subjacentes à operação é primordial à apreciação do risco financeiro. Sem essa vantagem, os empréstimos tornam-se mais caros e, quando excessiva a álea, impossíveis. Trata-se aí da essência mesma do espírito e da letra dos anteprojetos que de um modo geral parecem perfeitamente compatíveis com o direito brasileiro.

13. Se apresentam inovações não é tanto no que diz com os princípios deste mas com as suas modalidades de aplicação. Estão estas, na realidade, a merecer estudo de fôlego, como se sabe, à luz não apenas do Código Civil, mas também da Constituição da República, do Código Brasileiro de Aeronáutica, do Código de Processo Civil e da Lei de Falências e Concordatas. Nestas estreitas colunas devemos, no entanto, tentar perpassar questões de interesse nesses campos especiais.

14. Do ponto de vista constitucional, a supor que promulgados no Brasil a Convenção e o Protocolo (uma vez cumpridas as longas fases preparatórias), é de notar que as questões que suscitarem, afora as ações de competência originária, serão decididas pelo Supremo Tribunal Federal em recurso extraordinário (art. 102, inc. III, letra "d", da Const. da Rep.) (13). Do ângulo da harmonia dos anteprojetos com o direito positivo brasileiro, cumpre lembrar a esse respeito que este consagra a autonomia de vontade como direito individual (Const. da Rep., art. 5o, inc. II), princípio que permeia o nosso direito das obrigações e permite, excetuadas as normas imperativas, a contratação na forma prevista pelos anteprojetos. Neste quadro a própria execução extrajudicial, essencial para celeridade, há de entender-se conciliável com outra garantia, a de apreciação judicial de lesões ou ameaças (ib., inc. XXXV): aquele instituto não é novo nem singular entre nós (14).

15. A autonomia de vontade e a execução extrajudicial mostram-se tanto mais importantes que vêm a propósito de disposições pertinentes do Código Brasileiro de Aeronáutica(C. B. A.). As condições suspensiva e resolutiva, quando a matrícula da aeronave é provisória, estipuladas livremente, podem acarretar-lhe a confirmação ou o cancelamento(art. 111, § 1.o, do C. B. A.), em consonância com os anteprojetos (15). O registro aeronáutico brasileiro, por sua vez, pode ser combinado com o registro aeronáutico internacional, que recebe nos anteprojetos lugar de grande relevo (16), para o que bastaria introduzir-lhe algumas adaptações(Cód. Bras. de Aer., arts. 72/85). Não obstante, a idéia de criar o registro internacional, difícil a mais de um e onerosa a todos os títulos, talvez pudesse ser substituída. Com efeito, permiti-lo-ia a uniformização, rigorosa, dos documentos de propriedade e gravame das aeronaves e componentes que, registrados ou anotados no país de nacionalidade ou origem, fossem internacionalmente reconhecidos, tal como o são o papel-moeda e os títulos de crédito, ou, para usar exemplo interno, nosso certificado de propriedade de automóveis. A rapidez, e a segurança, dos meios de comunicação possibilitariam, de resto, a verificação de autenticidade, se necessária.

16. Neste contexto um dos objetivos essenciais dos anteprojetos, a celeridade na solução de conflitos, coincide com o disposto no Código de Processo Civil (art. 125, inc. II). Descendo, porém, do princípio ao fato, torna-se claro que haveria que adaptar organização e procedimentos. A ser de outro modo, impossível seria adotar a definição do "rápido alívio judicial": não mais de trinta dias para a efetivação de seu registro aeronáutico (art. X do anteprojeto de protocolo). Estes resultados não seriam obtidos senão com a especialização exclusiva, e o adequado aparelhamento, de um ou mais juizados federais, supresso o efeito suspensivo da apelação, entre outras coisas, em novel rito especial a instituir.

17. Nesta ordem de idéias, a insolvência do devedor é evento a dar lugar a resolução do contrato, não devendo sujeitar-se a aeronave e seus componentes a arrecadação em falência, concordata ou insolvência civil, pelo fato mesmo (17). Esta observação mais não é do que eco de decisões já encontradiças na jurisprudência pátria. A aeronave financiada, ou componente seu, gravada como previsto, não é arrecadável senão em termos. A superveniência de falência, concordata ou insolvência civil não afasta o seu clausulamento. A arrecadação, portanto, depende da operação deste no caso concreto. Aqui, uma vez ainda, põe-se o problema da morosidade judiciária.

18. EM CONCLUSÃO, os anteprojetos correspondem à inegável necessidade de promover a aparelhagem da aviação civil que, somente possível com o financiamento internacional, depende da visada redução dos riscos de perda.

19. Sob esse prisma, a certeza e a celeridade da solução dos débitos parecem possíveis em princípio com a adoção, tão plena como viável, do novo e eficaz regime.

20. No plano puramente teórico o instrumento para consecução desses objetivos, combinação do desforço imediato com o direito de seqüela, é velho conhecido dos juristas de herança latina que, todavia, se envolve de roupagens novas, apenas do ponto de vista procedimental: a fórmula é antiga em sua substância, mas não em sua forma que, no entanto, há de ser inseparável daquela.

21. Em suma, nesse regime renovado, resolvido o título a que possui o financiado a aeronave, ou componente seu, a posse se extingue de pleno direito pela resolução, e a seqüela há de propiciar ao financiador, incontinênti, a recuperação do bem, de preferência fora de juízo...

Notas

* Ex-Advogado do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento(Banco Mundial), em Washington, D. C. Doutor pela Universidade de Paris. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, do Instituto dos Advogados de São Paulo e da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial. (Volta ao texto).

(1) Precisamente, EUA$ 1,2 trilhões. Cf. artigo em 1998 Airfinance Annual, de Lorne Clark, Advogado Geral e Secretário Societário, Associação Internacional de Transporte Aéreo, e Jeffrey Wool, Perkins Coie, Londres e conselheiro do denominado Grupo de Trabalho da Aviação (v. Nota 9). (Volta ao texto)

(2) Institut International pour l'Unification du Droit Privé(UNIDROIT), Via Panisperna 28, 00184 Roma, Itália, tel. +39 06 69941372, fax +39 06 69941394, e-mail: unidroit.rome@unidroit.org. . Fundado em 1926 como órgão auxiliar da Liga das Nações, foi re-estabelecido em 1940 por acordo multilateral, o Estatuto do Unidroit. . O Instituto é custeado por uma anuidade essencial da Itália e contribuições também ânuas dos demais membros, em número de cinqüenta e seis: África do Sul, Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Bolívia, Brasil, Bulgária, Canadá, Chile, China, Colômbia, Croácia, Cuba, Dinamarca, Egito, Eslováquia, Espanha, Estados Unidos da América, Federação Russa, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Índia, Irã, Iraque, Irlanda, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Malta, México, Nicarágua, Nigéria, Noruega, Paquistão, Paraguai, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Checa, República da Coréia, Romênia, Santa Sé, São Marinho, Suécia, Suíça, Tunísia, Turquia, Uruguai, Venezuela, Iugoslávia.  (Volta ao texto)

(3) Cascos de aeronave, motores de avião, helicópteros, navios registrados, plataformas petrolíferas, containers, material ferroviário sobre rodas, material de equipamento espacial, outras categorias de bens cada um dos quais seja suscetível de individualização(art. 3.º do anteprojeto de Convenção). (Volta ao texto)

(4) Esse anteprojeto de protocolo aplica-se a "objetos aeronáuticos", como tais descritos aqueles com número de série de fabricação, nome do fabricante e designação de modelo suficientes para identificação(arts. II e VII). (Volta ao texto)

(5) Cf. art. II, al. 2 do anteprojeto de protocolo.
NB: Os textos desses documentos estão disponíveis em <www.unidroit.org> (Volta ao texto)

(6) Convenção sobre o Reconhecimento Internacional de Direitos sobre Aeronaves. (Volta ao texto)

(7) Convenção pela Unificação de Certas Regras relativas ao Arresto Cautelar de Aeronaves. (Volta ao texto)

(8) Convenção UNIDROIT de 1988 a respeito de arrendamento mercantil internacional. (Volta ao texto)

(9) Tal é o interesse dos anteprojetos que, a seu respeito, constituíram um Grupo de Trabalho da Aviação (Aircraft Working Group) grandes empresas: Airbus Industrie, The Boeing Co./Douglas Aircraft, Chase Manhattan Bank, CIBC Wood Gundy, Crédit Agricole Indosuez, GE Capital Aviation Services, General Electric Aircraft Engines, International Lease Finance Corporation, Kreditanstalt für Wiederaufbau, Long Term Credit Bank of Japan, Rolls Royce plc, Snecma,United Technologies Pratt & Whitney. A Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial, por sua vez, sobre eles formou um Grupo de Estudos.
                                                                                                                    (Volta ao texto)

(10) "Um Estado Contratante pode declarar ao tempo da assinatura, ratificação, aceitação, aprovação ou adesão ao Protocolo que qualquer remédio, disponível para o credor sob os Artigos 9 a 11, que não se exija que dependa de pedido em juízo, só possa ser exercido com permissão judicial".  (Volta ao texto)

(11) Escrevemos acerca dos anteprojetos revisados em Roma até julho de 1998. (Volta ao texto)

(12) O nosso Cód. Civ. consagra o denominado "desforço imediato" (art. 502), recurso de quem é privado indevidamente da posse. Esta hipótese guarda pertinência, em princípio, com aquela em que se cancela o título de posse (§ 16, adiante). Resolvido o contrato a ensejá-la, lícito não seria o desforço imediato?  (Volta ao texto)

(13) Prevê-se o repertoriamento internacional da jurisprudência dos Estados Contratantes. (Volta ao texto)

(14) Exemplo recente encontra-se na Lei N. 9.514, de 20 de novembro de 1997, que regula a alienação fiduciária de imóvel, prevendo nova hipótese de execução extrajudicial. (Volta ao texto)

(15) A operância dessas condições, em especial quanto ao cancelamento, parece consoar bem, no anteprojeto de protocolo, com "desregistro e exportação"(art. XIII e fórmula em anexo). (Volta ao texto)

(16) O preâmbulo do anteprojeto de protocolo contém considerando que se refere à necessidade de um sistema internacional de registro como feição essencial da estrutura jurídica aplicável aos direitos internacionais sobre aeronaves e acessórios.
                                                                                              (Volta ao texto)

(17) Pode ser pedida a restituição de bem arrecadado em poder do falido ou concordatário quando devida em virtude de direito real ou de contrato(art. 76 da Lei de Falências). Por igual, dada a oponibilidade erga omnes do direito real, essa disposição estende-se na prática à insolvência civil. (Volta ao texto)

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