Informação e Debates sobre Política e Direito das Atividades Espaciais* Núcleo de Estudos *
O papel das megaempresas nas atividades espaciais
José Monserrat Filho *
“Na guerra ou na paz, o setor privado se transformou em setor público.” John Kenneth Galbraith (1908-2006), renomado economista americano1
As empresas privadas não são novas nas atividades espaciais em geral. Elas atuam nessa área desde os anos 60, como pioneiras, por exemplo, dos satélites de comunicação. A presença delas está regulamentada pelo Art. 6º do Tratado do Espaço de 1967². Considerado a lei maior do setor, esse tratado está em pleno vigor. Ratificado por 103 países e assinado por 20 outros, é reconhecido pelos demais países como costume, por nunca ter sido alvo de qualquer tipo de protesto ou recusa.
O Art. 6º determina que os Estados arquem com a responsabilidade internacional pelas atividades espaciais nacionais realizadas tanto por organizações estatais quanto por empresas privadas e velem para que tais atividades cumpram os princípios e normas do Tratado do Espaço. Ainda pelo Art. 6º, as atividades espaciais das empresas privadas devem ser autorizadas e constantemente supervisionadas pelo respectivo Estado.
As empresas, pois, podem atuar no espaço, mas dependem da permissão e controle do país onde tenham sua sede central. Eventuais danos e prejuízos por elas causados a terceiros serão ressarcidos pelo Estado. Esse, depois, poderá cobrar das empresas a indenização paga.
Os sujeitos do Direito Espacial – ramo do Direito Internacional Público encarregado de criar o regime jurídico do espaço exterior e regular as atividades ali exercidas – não são as empresas privadas, são os Estados e as organizações espaciais internacionais ou regionais, como a Agência Espacial Europeia (ESA)3. O Tratado do Espaço é acordo de Estados, como o próprio nome diz. Muitas empresas privadas costumam participar apenas como consultoras, por exemplo, nas reuniões da União Internacional de Telecomunicações (UIT)4 – instituição de Estados.
O Estado – que representa ou deveria representar o poder público – situa-se, portanto, acima das empresas privadas, por mais poderosas que sejam. Isso é fundamental no Direito Espacial. Assim se relacionam Estados e empresas privadas, pelo menos formalmente. Essa questão deveria ser mais amplamente discutida, tanto do ponto de vista legal e político, quanto econômico.
Aí surge quem condene “a promiscuidade obscena entre políticos e empresários”, como o senador Bernie Sanders (1941-), candidato à Presidência dos Estados Unidos (EUA), com 86% das intenções de voto entre os eleitores democratas de 17-24 anos, embora não seja o favorito no pleito. Ele afirma: “Não representamos os interesses de Wall Street e das grandes corporações, nem queremos o dinheiro deles.” E formula propostas concretas: regulamentação do sistema bancário, quebrando os mamutes financeiros em proveito de pequenas instituições que se dediquem ao sistema produtivo e não a especular com papeis sem lastro na economia real.
Essas informações vêm de Daniel Aarão Reis (1946-), professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), em seu artigo “A primavera americana”, publicado n’O Globo, em 23 de fevereiro passado. A seu ver, “o ‘fenômeno’ Sanders evidencia o desgaste da hegemonia do capital financeiro e a descrença no establishment político”.
“Nos EUA, as manifestações dos jovens de todas as classes, pobres e remediados, todos eleitores de Bernie Sanders, revelam que o mal-estar se dissemina pelo mundo desenvolvido”, observa, por sua vez, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo (1942-)5. E salienta: “Nascidos do ventre das novas formas de negócios comandadas pelo enlace entre megaempresas e grandes bancos ‘globalizados’, os deserdados acompanham as lideranças que pretendem falar em nome do interesse público.” Belluzzo ironiza: “Não espanta que a retórica de Sanders nos EUA e de Jeremy Corbyn na Inglaterra dispare contra os símbolos do podre poder global, a Wall Street e a City londrina. A galera da finança retruca com a soberba e o descaso habituais. Para a turma da bufunfa, o que os deserdados da fortuna pensam, sentem ou reivindicam são deformações nascidas do egoísmo dos ignorantes, em contraposição ao egoísmo racional e esclarecido dos senhores da finança.”
Por falar em ironia, vale o que escreveu Veríssimo em sua crônica6 de domingo, 6 de março: depois de lembrar a famosa frase de Einstein – “Deus não joga dados com o universo” –, o cronista compara: “Deus não é um jogador, o universo não está aí para ele jogar contra a sorte e contra ele mesmo. Já os semideuses que controlam o capital especulativo do planeta Terra jogam com economias inteiras e podem destruir países com um lance de seus dados, ou um impulso de seus computadores, em segundos.”
Veríssimo vai ainda mais longe: “A metafísica dos semideuses é inédita. Não tem passado nem convenções. É a destilação final de uma abstração, a do capital desassociado de qualquer coisa palpável, até do próprio dinheiro. Como o dinheiro já é a representação da representação da representação de um valor aleatório, o capital transformado em impulso eletrônico é uma abstração nos limites do nada – e é ela que rege as nossas economias e, portanto, as nossas vidas.”
Com dose menor de ironia, John Kenneth Galbraith, amigo e conselheiro do presidente John F. Kennedy (de 1961 a 1963), notou – em seu livro “A Economia das fraudes inocentes: verdades para o nosso tempo”, lançado nos EUA em 20047 –, que, na visão estabelecida, “o sempre ameaçador ataque do governo à iniciativa privada” costuma ser “condenado como socialismo por retórica radical”, enquanto “os avanços das empresas privadas sobre o setor público por concessões de influências ou atividades são bem menos debatidos ou nunca o são”.
Para Galbraith, “a administração das empresas deve ter autoridade para agir, mas não para praticar furtos aparentemente inocentes. Considerando o poder das empresas, essa é a nossa necessidade mais desafiadora e urgente. Uma sociedade marcada por infortúnios e crimes econômicos corporativos não sobreviverá de forma útil e prestimosa”.
É a sociedade das corporações que comanda as principais atividades espaciais hoje, para a paz e/ou para a guerra, sem definir claramente onde acaba uma e começa a outra, como mostra a nova “Guerra Fria”, a que estamos todos condenados. Ou seja, são os semideuses da divina abstração que dominam, em grande escala, a Terra e o céu, sem permitir a regulação das questões básicas de segurança espacial.
Acaso não foi o lobby implacável dessas poderosas divindades que levou o Congresso e a Presidência dos EUA a aprovarem a lei de 25 de novembro de 2015, concedendo às empresas privadas americanas o direito de propriedade sobre minerais preciosos por elas extraídos dos asteroides, da Lua e demais corpos celestes? Essa lei nacional ousa regular uma questão obviamente internacional e viola de modo flagrante o princípio fundamental do Tratado do Espaço, que considera o espaço como um bem comum de toda a humanidade (the province of all mankind).
Como reagirão as nações do mundo aos semideuses, neste caso? Sairão mais uma vez vitoriosos os filhos de Zeus, com o privilégio de concentrar em seus polpudos bancos os trilhões de dólares que o negócio promete? Ou terão de se curvar ao bom senso, ao Direito Internacional e aos legítimos interesses e necessidades das grandes maiorias do nosso planeta?
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA); Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial; Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA); e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB).E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com
Referências
1) Do livro “A economia das fraudes inocentes – Verdade para o nosso tempo”, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 56.
2) Ver seção de textos em https://sbda.org.br/.
3) http://www.esa.int/ESA.
4) https://www.itu.int/en/Pages/default.aspx.
5) Artigo intitulado “Os jovens de Bernie Sanders”, CartaCapital, 24/02/2016, p. 53.
6) Crônica de Luiz Fernando Veríssimo intitulada “Abstrações”, O Globo, 06/03/2016, p. 19.
7) Ver referência nº 1, pp. 72-73.
Onde começa o espaço exterior?
“É um paradoxo elaborar normas jurídicas para regular questões do espaço exterior no Subcomitê Jurídico [do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior – UNCOPUOS], mas ser incapaz de criar um acordo sobre o que significa precisamente ‘espaço exterior’.” Representante do Brasil em reunião do UNCOPUOS, em 1976″. 1
Se você perguntar onde começa o espaço exterior a um profissional das atividades espaciais, ele com certeza lhe responderá: “Mais ou menos a partir de 100 km da face da Terra.” Dificilmente alguém vai lhe dizer algo diferente. Mas esta é só uma referência prática, criada por pessoas experientes no ramo. A indicação não é obrigatória para os países. A comunidade mundial de nações ainda não logrou elaborar um acordo escrito a respeito.
A questão vem sendo discutida há exatamente 50 anos no Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (UNCOPUOS, na sigla em inglês), em especial no seu Subcomitê Jurídico.2 E esse meio século de debates ainda não foi suficiente para se chegar a uma solução aceitável para os dois lados da querela: quem é a favor e quem é contra a delimitação do espaço. Nem há perspectivas de se encontrar uma solução consensual proximamente.
O problema é que, como salienta Olavo Bittencourt3, a delimitação vertical da soberania dos Estados “toca questões estratégicas de grande relevância internacional”, pois “a conquista do espaço ultraterrestre se dá amparada em tecnologia dual, capaz de ser usada, como a maior parte das conquistas científicas, para a guerra e para a paz”. Não é isso que fecha as portas de um acordo?
O mais curioso do longevo debate é que as partes divergentes estão condenadas a seguir negociando pela vida afora, até encontrar uma solução consensual ou resolver, também por consenso, retirar o tema da pauta. No UNCOPUOS, impera a regra do consenso, adotada em 1962 por demanda da ex-União Soviética (URSS) numa época em que os Estados Unidos (EUA) tinham maioria no Comitê e em seus Subcomitês.4 As deliberações passaram a ser tomadas com a aprovação de todos os países membros do Comitê – a começar, claro, pelos EUA e URSS – ou, pelo menos, sem nenhuma rejeição expressa. A regra do consenso foi essencial para a aprovação dos cinco tratados espaciais das Nações Unidas e de quase todas as resoluções da Assembleia Geral.5 Ela continua em pleno vigor, ainda que hoje mais de 60 países exerçam atividades espaciais e assumam diferentes posições no setor. Em 2015, a China apoiou a regra do consenso em especial na preparação da pauta de trabalho do UNCOPUOS e de seus Subcomitês, para promover esforços conjuntos na regulação das novas atividades espaciais.6
Na realidade, o desafio de traçar uma fronteira entre os espaços aérea e exterior surgiu já no primeiro dia da Era Espacial, com o lançamento do primeiro satélite feito pela mão humana, o Sputnik-1, em 4 de outubro de 1957. Onde estaria ele voando, no espaço aéreo ou em outro espaço, até então nunca percorrido por um objeto criado por terráqueos? Como nenhum país protestou contra a invasão de seu espaço aéreo pelo Sputnik-1, deduziu-se, naturalmente, que não era nesse espaço que ele voava, mas em outro espaço mais acima. Conclusão: o Sputnik-1 voava no espaço exterior. Esse termo em inglês – “outer space” – foi rapidamente assimilado tanto pelas instituições oficiais, nacionais e internacionais, quanto pela imprensa e pela opinião pública. Já o primeiro documento da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre assuntos espaciais, a Resolução 1348, de 13 de dezembro de 1958, falava em “outer space”.7 Implicitamente, todos os países reconheciam assim que qualquer artefato feito pela mão humana pode voar no espaço exterior sem a autorização do país subjacente, como é exigido para voos no espaço aéreo, sobre o qual o país subjacente exerce plena soberania – conforme reza a Convenção de Chicago de 1944.8
Mas só em 1967, a questão começou a ser debatida no UNCOPUOS, por proposta da França. Embora com título diferente, o tema entrou na agenda do Subcomitê Jurídico, a quem a Assembleia Geral das Nações Unidas havia solicitado, pela Resolução 2222 (XXI)9 de 19 de dezembro de 1966, “iniciar o estudo da questão da definição do espaço exterior e a utilização do espaço exterior e dos corpos celestes, inclusive as várias implicações nas comunicações espaciais”.
A palavra “delimitação”, no caso, surge apenas em 1972, quando o tópico foi renomeado para “definição e/ou delimitação do espaço exterior…”10, mantendo-se o restante da frase de 1966. Isto certamente refletia o interesse de definir o espaço exterior do ponto de vista de suas fronteiras.
E por que não fixar a fronteira a partir de 100 km de altura? Em 1979, a ex-URSS propôs ao Subcomitê Jurídico o estabelecimento da linha divisória entre os espaços aéreo e exterior na altura de 100-110 km acima do nível do mar.11 A proposta era realista. Baseava-se na convicção de que abaixo dessa faixa nenhum objeto consegue se manter em órbita. Mesmo assim não logrou o consenso indispensável para ser aprovada. Mas ganhou um prêmio invejável: com o tempo, tornou-se referência comum e corrente entre profissionais de diferentes atividades espaciais. Um hábito operacional e pragmático que permanece atuante até nossos dias.
Em 1984, O Subcomitê Jurídico criou um grupo de trabalho (GT) para estudar, em base prioritária, os problemas da definição e delimitação do espaço exterior e elaborar um projeto de princípios a respeito, a ser apresentado aos países membros do órgão. A determinação vinha da Resolução 38/80 da Assembleia Geral das Nações Unidas, adotada em 15 de dezembro de 1983.12 A resolução, ademais, requeria que o projeto de princípios levasse em conta os regimes jurídicos diferentes que ordenam o espaço aérea e o espaço exterior. Ou seja, a resolução já assumia clara posição diante da controvérsia existente.
Vejamos agora alguns argumentos comumente usados contra a definição e delimitação do espaço exterior, expostos pelos Países Baixos e EUA:
1) “O Reino dos Países Baixos, por enquanto, não julga necessário definir espaço exterior ou delimitar os espaços aéreo e exterior, ou seguir outro enfoque para resolver tais problemas. O estado atual das atividades espaciais e da aviação, no Reino e em países vizinhos, não gerou a necessidade de exercer jurisdição sobre os objetos que cruzam o espaço aéreo do Reino a caminho ou voltando do espaço exterior. Tal necessidade poderá surgir no futuro como resultado do desenvolvimento das tecnologias espaciais e da aviação, em particular o desenvolvimento de voos espaciais comerciais privados e do turismo espacial. Poderá, então, ser considerada a questão de saber se é preciso definir o espaço exterior ou delimitar os espaços aéreo e exterior, ou seguir outro enfoque para regular adequadamente tais atividades. Como a natureza exata e as circunstâncias dessas atividades não são conhecidas hoje, o Reino dos Países Baixos não considera necessário identificar e tratar do cenário de sua regulação.” (Declaração ao GT do Subcomitê Jurídico, em 201013.)
2) “Definir e delimitar o espaço exterior não é necessário. Não há questões legais ou práticas surgidas devido à falta de tal definição. Pelo contrário, os regimes jurídicos divergentes em vigor nos espaços aéreo e exterior têm operado bem em suas respectivas esferas. A falta de definição ou delimitação do espaço exterior não tem impedido o desenvolvimento de atividades em qualquer área. Não fomos persuadidos pelas razões expostas para que se efetue a definição ou a delimitação. Por exemplo, alguns delegados apoiam a ideia da definição para seu próprio bem. Mas, sem um problema prático a resolver, empreender tal definição seria exercício arriscado. (…) Outras delegações sugerem que uma definição ou delimitação é necessária de algum modo, para salvaguardar a soberania dos Estados. Sabemos, porém, que nenhuma questão da soberania do Estado será resolvida com a definição de espaço exterior. Mesmo se houvesse algum problema cuja resolução uma definição ou delimitação do espaço exterior ajudaria a resolver, a Subcomissão Jurídico deveria proceder com o devido cuidado. Seja qual for a definição ou a delimitação finalmente acordada, elas seriam, na pior das hipóteses, arbitrárias pela sua natureza, ou, na melhor das hipóteses, limitadas pelo estado atual da tecnologia. Por exemplo, os avanços tecnológicos aumentaram a altura em que os aviões podem sustentar o voo e diminuíram a altura em que o voo orbital de objetos espaciais é possível. Os avanços tecnológicos provavelmente continuarão. Seria perigoso que a Subcomissão Jurídica concordasse com uma linha artificial entre os espaços aéreo e exterior, quando não se pode prever as consequências de tal linha. A Subcomissão Jurídica não deve decidir a questão até que problemas práticos sejam identificados, de modo que uma solução se torne absolutamente necessária.” Esta declaração dos EUA14, lida na reunião do Subcomitê Jurídico em abril de 2001, é vista como representativa e válida até hoje.
Eis agora os argumentos que defendem a definição e a delimitação do espaço exterior, apresentados no relatório do UNCOPUOS de 201515:
1) Uma discussão mais aprofundada deste item ajudaria a trazer claridade à implementação do Direito Espacial e do Direito Aeronáutico, levando em conta que o Direito Espacial é o único ramo do Direito Internacional cuja área de aplicação não é limitada nem definida;
2) O progresso científico e tecnológico, a comercialização do espaço, a participação do setor privado, as questões legais emergentes e a crescente utilização do espaço em geral tornam necessário que o Subcomitê Jurídico examine a definição e a delimitação do espaço exterior;
3) A definição e a delimitação do espaço exterior ajudarão a criar um regime legal único para regular o movimento dos objetos aeroespaciais, lançar claridade jurídica à implementação do Direito Espacial e do Direito Aeronáutico e elucidar as questões de soberania e responsabilidade dos Estados, bem como a fronteira entre os espaços exterior e aéreo.
Outros argumentos registrados no projeto de relatório de 201116 do Presidente do Grupo de Trabalho sobre o tema são:
1) É importante definir e delimitar o espaço exterior no nível internacional, pois isso criará certeza na aplicação do Direito Aeronáutico e do Direito Espacial, bem como no reconhecimento da soberania dos Estados sobre seu espaço aéreo.
2) São importantes os debates aprofundados sobre a definição e a delimitação do espaço exterior, mesmo no nível teórico, para se ter certeza sobre os mecanismos em funcionamento, antes que dificuldades reais ocorram.
3) As soluções sobre a definição e a delimitação do espaço exterior podem ser encontradas na lei nacional, que necessariamente não se oporão às fixadas em lei internacional.
4) A definição e a delimitação do espaço exterior também permitem a aplicação efetiva dos princípios da liberdade de uso do espaço e de sua não apropriação (Tratado do Espaço, Arts. II e II).
A Declaração do Brasil17, emitida em 2009, oferece essa argumentação: “A velocidade dos avanços tecnológicos no espaço e pesquisa aeronáutica indicam que, em futuro próximo, será possível desenvolver uma nave com características similares às de um “objeto aeroespacial”, que poderia ser definido como objeto capaz de voar e realizar atividades tanto no espaço exterior quanto no espaço aéreo. Tendo isso em conta, objetos aeroespaciais devem ser regulados por lei espacial internacional quando estiverem no espaço exterior e pelas leis aeronáuticas internacionais e nacionais, quando estiverem no espaço aéreo. A principal diferença entre os dois regimes é que no Direito Aeronáutico prevalece o princípio da soberania do Estado, enquanto no Direito Espacial isso não ocorre. Para lidar adequadamente com situações decorrentes do desenvolvimento ou uso de objetos aeroespaciais (por exemplo, atividades no espaço aéreo estrangeira), é necessário que a comunidade internacional tome medidas para estabelecer princípios e parâmetros universalmente aceitos, que levem à definição de fronteiras entre os espaços exterior e aéreo.”
Uma incongruência salta aos olhos: os argumentos a favor são basicamente jurídicos e os contra não são jurídicos. Como afirmar que uma lei é desnecessária se ela vem traçar o limite indispensável entre sistemas legais divergentes, um onde prevalece a soberania dos países e outro onde não há lugar para ela? São dois regimes tão diferentes quanto incompatíveis. Por que, então, desprezar a lei? Porque a ausência da lei “funciona bem”? E por que supor que a existência da lei não funcionaria bem? Desde quando a ordem jurídica, a legalidade estabelecida com base na justiça e no entendimento democrático, impede o desenvolvimento dos países e das pessoas?
O fato é que os planos estratégico-militares, sobretudo de grandes potências, de que fala Olavo Bittencourt, não são feitos necessariamente para cumprir leis ou criar soluções jurídicas de comum acordo com os outros países. Basta ver o que ocorre com a chamada “nova Guerra Fria”.
* Presidente do Grupo de Trabalho sobre Definição e Delimitação do Espaço Exterior, do Subcomitê Jurídico do UNCOPUOS, desde 2005; Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA); Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial; Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA); e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
Referências:
1) Resolution A/AC.105/C.2/7/Add.1, p.9.2) http://www.unoosa.org/oosa/en/ourwork/copuos/index.html.3) Bittencourt Neto, Olavo de O., Limite Vertical da Soberania dos Estados: Froneira entre Espaço Aéreo e Ultraterrestre, Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), tendo como orientador o Prof. Paulo Borba Csella em maio de 2011, p. 73. Olavo tornou-se, então, o primeiro doutor em Direito Espacial formado no Brasil.4) “Nos anos 60, os EUA contavam com maioria de rolo compressor na Assembleia Geral das Nações Unidas, e a maioria de votos no UNCOPUOS e em seus Subcomitês poderia desfavorecer fortemente os soviéticos. Mais tarde, a URSS tornou-se capaz de reunir uma maioria com o apoio do Grupo de Países Não-Alinhados e os EUA começaram a insistir no procedimento de consenso nos anos 80 e 90.” Ver em Perspectives on International Law, Edited by Nandasiri Jasentuliyna and published in United Kingdom by Kluwer Law International, in 1995, pp. 354-356.5) Ver os tratados e resoluções das Nações Unidas no site https://sbda.org.br/ em “textos”.6) http://www.fmprc.gov.cn/ce/cgvienna/eng/hplywks/t1274614.htm.7) http://www.unoosa.org/pdf/gares/ARES_13_1348E.pdf.8) http://www.icao.int/publications/Documents/7300_cons.pdf.9) https://documents-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/005/25/img/NR000525.pdf?OpenElement10) www.unoosa.org/pdf/gadocs/A_8720E.pdf.11) www.unoosa.org/pdf/gadocs/A_34_20E.pdf.12) http://www.un.org/documents/ga/res/38/a38r080.htm. 13) http://www.unoosa.org/pdf/limited/c2/AC105_C2_2010_CRP10E.pdf.14) http://www.state.gov/s/l/22718.htm.15) UN General Assembly Resolution A/70/20 – Report of the Committee on the Peaceful Uses of Outer Space, Fifty-eighth session (10-19 June 2015). http://www.unoosa.org/res/oosadoc/ data/documents/2015/a/a7920_0_html/A_70_20AEVE.pdf.16) www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/AC.105/C.2/2011/DEF/L.1&Lang=. 17) http://www.unoosa.org/pdf/reports/ac105/AC105_889Add2E.pdf.
Brasil ajuda a ampliar debate na ONUsobre Política e Direito Espacial
“As ideias jurídicas internacionais não podem viver como simples abstrações. Elas devem também ser concretas. E refletir o que, na verdade, ocorre no mundo político e econômico.” Martti Koskenniemi[1]
Numa operação diplomática bem sucedida, com a participação ativa do Brasil, o projeto de Código Internacional de Conduta para as Atividades Espaciais[2], proposto pela União Europeia desde 2008, poderá ser discutido, pela primeira vez, no Subcomitê Jurídico do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (COPUOS), em sua sessão de 2016, como parte do item relativo aos “Mecanismos Não Vinculantes sobre o Uso Pacífico do Espaço Exterior”.
Essa possibilidade está expressa no relatório da recente sessão do Subcomitê Jurídico, realizada em Viena, Áustria, de 13 a 17 de abril.
Por isso, delegações presentes à sessão estranharam que o Código de Conduta seja objeto de negociações, em Nova York, de 27 a 31 de julho próximo – com o apoio do Escritório das Nações Unidas para o Desarmamento (UNODA[3], na sigla em inglês) –, quando a proposta europeia ainda não foi examinada pelo COPUOS, em especial pelo seu Subcomitê Jurídico, que cuida precisamente de iniciativas de caráter legal ligadas às atividades espaciais. Essas delegações estão empenhadas em discutir a matéria no órgão apropriado. E o que está lavrado no relatório da sessão do Subcomitê pode permitir a realização desse debate pioneiro.
Recorde-se que os proponentes do Código de Conduta têm se oposto, desde seu anúncio, a que a proposta seja debatida no COPUOS e no Subcomitê Jurídico. Essa ação vinha sendo interpretada, com evidente mal-estar, como inequívoca rejeição – no caso – ao sistema multilateral das Nações Unidas. O Código visa impedir a deflagração de conflitos no espaço, mas deixa aberta uma lacuna para isso, ao incorporar o direito de autodefesa, justificativa de muitas guerras nos últimos 50 anos. O instituto de autodefesa no espaço necessitaria de regulamentação especial, diante da dificuldade de determinar quem agride e quem se defende num combate espacial. O espaço já está militarizado, sim, pois as guerras desencadeadas hoje em terra, no ar e no mar, são comandadas e controladas de plataformas espaciais. Mas ainda não há armas instaladas em órbitas e, portanto, o espaço ainda não se tornou mais um teatro de guerra. Urge impedir tão desastrosa conversão. Há que manter o espaço como meio reservado exclusivamente a atividades pacíficas e construtivas. O uso de força unilateral só agrava a situação. A segurança coletiva – a defesa de todos por todos – é vital para se preservar a paz no espaço e a sustentabilidade a longo prazo dos benefícios espaciais.
Regulamentação dos pequenos satélites e gestão do tráfego espacial
Em outro avanço substancial, o Subcomitê Jurídico aprovou a inclusão de dois novos temas em sua agenda de debates para 2016: a Regulamentação dos Pequenos satélites, apresentado pelo Brasil e apoiado por inúmeros países, inclusive os Estados Unidos, e a Gestão do Tráfego Espacial, proposto pela Alemanha também amplamente apoiado, inclusive pelo Brasil. Esses temas atuais e sumamente complexos parecem abrir uma etapa mais dinâmica no desempenho do órgão. Não poucos países têm reclamado de sua ineficiência no trato de problemas essenciais. Afinal, é missão do Subcomitê discutir questões de Direito Espacial Internacional, ligadas à exploração e uso pacífico do espaço exterior – hoje indispensável à vida cotidiana na Terra.
O Instituto Internacional de Direito Espacial[4] e o Centro Europeu de Direito Espacial[5] comemoraram a aprovação dos novos temas, em especial porque eles foram discutidos nos workshops promovidos pelas duas entidades, no primeiro dia das sessões do Subcomitê Jurídico deste ano[6] e do ano passado. Esses workshops vêm sendo organizados há vários anos, para atualizar e enriquecer os conhecimentos legais dos delegados e participantes do Subcomitê.
Projetos concretos para debater a definição e delimitação do espaço
A sessão do Subcomitê Jurídico também ganhou destaque ao adotar por consenso a decisão de seu Grupo de Trabalho sobre Definição e Delimitação do Espaço, presidido por um delegado brasileiro, para que a Secretaria do Escritório das Nações Unidas para Assuntos Espaciais (UNOOSA, na sigla em inglês) – que apoia o funcionamento do COPUOS – passe a convidar os países e as organizações internacionais ligadas às atividades espaciais a apresentarem projetos concretos sobre a polêmica questão. O objetivo é elevar a qualidade dos debates com textos consistentes e fundamentados, evitando discussões superficiais e não devidamente argumentadas.
A questão da definição e delimitação do espaço vem sendo debatida no Subcomitê Jurídico há mais de 40 anos. Hoje, reina um impasse: não há consenso, nem para resolvê-la, nem para retirá-la da pauta. Espera-se que a discussão em torno de projetos concretos e firmemente alicerçados abra novas perspectivas para propiciar uma solução consensual.
Benefícios e perigos dos pequenos satélites
A regulamentação dos pequenos satélites, definida em geral como um conjunto de normas técnicas e regulamentos para garantir o acesso seguro a operações no espaço e retorno à Terra, tem despertado atenção cada vez maior da comunidade espacial em vista do crescente aumento do número de atores nas atividades espaciais. Esse aumento se deve aos ingentes esforços de países em desenvolvimento para se capacitarem em ciência e tecnologia espacial. Muitos deles vêm recebendo os benefícios dos programas de apoio técnico das Nações Unidas (UNOOSA).
Os micros satélites se multiplicam em escala crescente. Eles surgiram como a opção mais barata de acesso ao espaço. Envolvem projetos mais simples, tecnologia mais acessível e construção mais rápida. São, em geral, lançados em órbitas baixas, com missões de curta duração. Constituem verdadeiras escolas de capacitação de pessoal e criação de novos talentos, sobretudo nos países em desenvolvimento, como o Brasil. Permitem que esses países, suas universidades e centros de pesquisa se tornem atores espaciais. Tudo isso precisa e merece ser cada vez mais incentivado.
Ocorre que as facilidade e oportunidades, bem como a inspiração criativa brindadas pelos pequenos satélites muitas vezes ignoram ou subestimam as normas internacionais adotadas para impedir interferências, colisões e acidentes no espaço. Esses distúrbios sérios podem ser causados até pelos nano satélites, ainda que involuntariamente. O problema precisa ser enfrentado com toda a responsabilidade, para que os pequenos satélites continuem a prestar seus serviços cada vez mais importantes, e não sejam transformados de “mocinhos” e “heróis” em “vilões” do espaço.
Pequenos satélites em grandes eventos
Inúmeros eventos têm sido promovidos sobre pequenos satélites, como por exemplo o 1º Workshop Latino-Americano de Cubesats, realizado de 8 a 12 de dezembro de 2014 na Universidade de Brasília (UnB), em parceria com a Academia Internacional de Astronáuica (IAA, na sigla em inglês), com o apoio da Agência Espacial Brasileira (AEB). O encontro abordou os vários aspectos dos satélites criados e construídos em universidades, sobretudo os CubeSats. Os participantes puderam intercambiar experiências e resultados, bem como novas ideias no setor.
Este workshop, por sua vez, deu sequência à Conferência da IAA sobre Missões de Satélites Universitários e ao Workshop sobre CubeSats Europeus, reunidos em Roma em fevereiro de 2013. Estudantes e jovens pesquisadores brasileiros tiveram oportunidade de absorver novos conhecimentos e técnicas aplicados às atividades de CubeSats em outros países. Especialistas amplamente reconhecidos no assunto proferiram conferências que despertaram enorme interesse.
A Declaração de Praga sobre Pequenos Satélites
A preocupação com a criação de lixo espacial pela grande quantidade de pequenos satélites, que só faz crescer, levou a União Internacional de Telecomunicações (UIT), sediada em Genebra, Suíça, a promover o Simpósio sobre a Regulamentação de Pequenos Satélites, em Praga, capital da República Tcheca, de 2 a 4 de março passado, no qual participaram 38 países, inclusive o Brasil[7]. O simpósio aprovou a “Declaração de Praga sobre a Regulamentação de Pequenos Satélites e Sistemas de Comunicação”[8], que reconhece:
1) O interesse cada vez maior das universidades, institutos de ensino e pesquisa, governos, empresas privadas e agências espaciais, em utilizar os benefícios potenciais oferecidos pelos pequenos satélites, em especial os nano e pico satélites,
2) A necessidade da adesão urgente da comunidade de pequenos satélites às leis, regulamentos e procedimentos internacionais, em especial os aprovados pela Assembleia Geral da ONU, pelo COPUOS e pela UIT em relação a objetos lançados ao espaço, à coordenação de radiofrequência e ao registo de frequência atribuída à rede de satélites, e de acordo com as Diretrizes para a Redução de Detritos Espaciais (endossado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2007), e
3) A importância para a comunidade de pequenos satélites de estar preparada para implementar as recomendações e práticas já existentes e as novas em desenvolvimento que apoiam a sustentabilidade a longo prazo das atividades no espaço exterior.
Com base neste reconhecimento, a Declaração:
# Considera a natureza específica das estações espaciais de pequenos satélites a serviço do radioamador por satélite e do processo de coordenação de frequências no âmbito da União Internacional de Rádio Amador (IARU), para evitar interferências prejudiciais ao radioamador e às estações de radioamador por satélite;
# Confirma e fortalece a importância de criar e aplicar leis nacionais, com base nos instrumentos internacionais, definindo claramente os direitos e obrigações de cada parte interessada em participar de iniciativas envolvendo pequenos satélites;
# Insta a comunidade de pequenos satélites a cumprir as leis, regulamentos e procedimentos internacionais e nacionais, indispensáveis para garantir a sustentabilidade a longo prazo dos pequenos satélite, a prevenção de interferências prejudiciais e a gestão adequada dos detritos espaciais, e
# Recomenda dar continuidade às atividades de capacitação em regulamentação de pequenos satélites e sistema de comunicações, promovendo simpósios e seminários regulares, com o uso de instrumentos de treinamento baseados na Internet, bem como fornecendo manuais, diretrizes e apoio para facilitar o cumprimento desta programação.
A UIT também divulgou, em abril, o “Guia de Registro de Objetos Espaciais e Gestão de Frequência para Satélites Pequenos e muito Pequenos”, para maior divulgação das normas pertinentes em vigor, que precisam ser cumpridas.[9]
Tudo isso será examinado minuciosamente pelo Subcomitê Jurídico, a partir de 2016, ao discutir o tema dos desafios legais dos pequenos satélites, em boa hora proposto pelo Brasil.
Apresentação técnica sobre a Universidade da Força Aérea (UNIFA)
A UNIFA, sediada em Campo dos Afonsos no Rio de Janeiro, passou a incluir cursos e estudos sobre atividades espaciais e Direito Espacial. Por isso, o Coronel Paulo R. Batista, professor de seu Centro de Estudos Estratégicos e membro da delegação do Brasil ao Subcomitê Jurídico, fez oportuna exposição[10] sobre essa instituição militar comprometida com o Programa Espacial Brasileiro e com o uso exclusivamente pacífico do espaço.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA), Chefe da Assessoriade Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira, Membro da Delegação Oficial do Brasil à sessão do Subcomitê Jurídico do COPUOS referida neste artigo; Preside o Grupo de Trabalho sobre Definição e Delimitação do Espaço Exterior desse Subcomitê, desde 2005.
[1] Koskenniemi, Martti, International Law in the World of Ideas, in The Cmbridge Companion to International Law, Ed. by James Crawford and Martti Koskenniemi, Cambridge, 2012, p. 60. Koskenniemi é diplomata finlandês, professor de Direito Internacional da Universidade de Helsinque e professor visitante da Universidade de Cambridge, Reino Unido.
[2] http://eeas.europa.eu/non-proliferation-and-disarmament/outer-space-activities/index_en.htm.
[3] Ver site do UNODA www.un.org/disarmament/.
[4] Ver site www.iislweb.org.
[5] Ver site www.esa.int/About_Us/ECSL_European_Centre_for_Space_Law.
[6] Apresentações feitas no workshop do IISL e do ECSL de 2015 sobre a gestão do tráfego espacial www.unoosa.org/oosa/en/COPUOS/lsc/2015/symposium.html.
[7] Ver relatório de Juliana Macedo Scavuzzi dos Santos sobre o Simpósio de Praga, no blog Panorama Espacial: http://panoramaespacial.blogspot.com.br/2015/03/relatorio-do-simposio-sobre.html.
[8] Ver texto em inglês em www.itu.int/GO/ITU-R/Prague-2015.
[9] Ver texto em inglês em http://www.unoosa.org/oosa/en/COPUOS/lsc/small-sat-handout.html.
[10] Ver no site www.unoosa.org/pdf/pres/lsc2015/tech-04.pdf.