Cada país responde
internacionalmente pelas atividades espaciais de
suas entidades públicas e privadas – reza o Artigo
6º do Tratado do Espaço, de 1967, a lei maior deste
setor de atividades.
Para tanto, cada país deve ‘velar
para que as atividades das entidades
não-governamentais (ou seja, empresas privadas) no
espaço cósmico, inclusive na Lua e demais corpos
celestes, sejam efetuadas de acordo com as
disposições anunciadas no presente Tratado’.
Assim, cada país está obrigado,
ante a comunidade internacional, a autorizar ou não
as atividades espaciais de suas empresas privadas e,
em caso positivo, a manter sobre elas contínua
vigilância.
As empresas privadas com negócios
espaciais, portanto, não são juridicamente autônomas
ou independentes. Elas sempre dependem da
autorização e da avaliação do país ao qual estão
subordinadas.
Se uma empresa privada se
conduzir de modo ilícito em relação a outros países,
seu país de origem tem não apenas o direito, como
também a obrigação de desautorizar suas atividades
espaciais.
Essa ação pressupõe,
necessariamente, que os países e seus governos sejam
independentes diante de suas empresas privadas.
Há países com independência
bastante para garantir avaliações e decisões
amplamente objetivas e isentas de seus governos
sobre a conduta das empresas.
Mas existem também países em que
há fortes e justificadas dúvidas quanto a isso, em
vista da nítida promiscuidade entre governo e
empresas privadas, o que gera preocupações,
polêmicas e, não raro, processos na Justiça.
Nunca é demais lembrar que, por
um lado, os países e seus governos, pelo menos
constitucionalmente, representam e defendem o bem
público, isto é, o interesse da sociedade como um
todo; e que, por outro lado, as empresas, pela
própria lógica de seus fins lucrativos, estão
organicamente dedicadas a atender, ao máximo
possível, seus interesses privados, nem sempre
compatíveis com os interesses públicos.
Não se trata de tornar único e
absoluto o poder público – seja estatal ou social –,
nem de anular ou reprimir a empresa (e a iniciativa)
privada.
Trata-se de colocar cada um em
seu devido lugar, com os respectivos direitos e
deveres perfeitamente definidos numa ordem
hierárquica, que, no entanto, deve dar clara e
inquestionável prioridade ao interesse público.
A este nada pode se sobrepor, por
expressar o interesse supremo da sociedade – de
proteção à vida, à segurança e ao desenvolvimento de
toda a cidadania, sem qualquer discriminação.
Acontece que, nos EUA, para ir
direto ao exemplo mais eloqüente, é difícil, senão
impossível – em vista daquilo que o ex-presidente
Dwight Eisenhower batizou de complexo
industrial-militar, que inclui a área espacial, e
também outros setores – delimitar os campos de ação
do poder público e das empresas privadas,
mega-corporações que atuam ao mesmo tempo em vários
segmentos estratégicos para o país.
‘É impossível dizer onde o
Governo termina e a Lockheed começa’, declarou
Danielle Brian, membro do ‘Project on Government
Oversight’, ONG sem fins lucrativos, com sede em
Washington, empenhada em fiscalizar os contratos
públicos.
Danielle Brian concluiu de forma
contundente: ‘A raposa não só trabalha e guarda o
galinheiro, mas também mora lá dentro’.A Lockheed
Martin é considerada a maior empresa privada do
setor de defesa nos EUA.
Para o ‘The New York Times’, ela
‘não governa os EUA, mas ajuda a administrar uma
parte espantosamente grande do País’, pois
‘construiu um formidável império de tecnologia da
informação que hoje se estende do Pentágono aos
correios’. O jornal acrescenta que ela exerce
‘profunda influência’ sobre as decisões do Congresso
e da Casa Branca: ‘Homens que trabalham na ou pela
empresa agora ocupam posições como secretário
[ministro] da Marinha, secretário dos Transportes,
diretor do complexo nacional de armas nucleares e
diretor da agência nacional de satélites de
espionagem. A lista inclui Stephen J. Hadley,
assessor de Segurança Nacional do presidente George
W. Bush.’
O ‘The New York Times’ conta
ainda que o conselho supervisor da Lockheed inclui
E. C. Aldridge Jr., encarregado de compras do
Pentágono, responsável pela aprovação de projetos
bilionários.
O peso determinante das empresas
privadas na alta administração dos EUA é confirmado
por John Kenneth Galbraith, que tem participação
ativa na vida política e econômica dos EUA há mais
de 70 anos, foi professor de Economia da
Universidade Harvard, diretor do Banco Central
norte-americano e editor da revista ‘Fortune’. Em
seu recente e explosivo livro ‘A economia das
fraudes inocentes: verdades para o nosso tempo’, ele
diz que ‘uma parte grande, vital e cada vez maior do
que é chamado de setor público está, para todos os
efeitos práticos, no setor privado’. Sobre os
administradores das empresas, Galbraith afirma:
‘Neste momento, eles estão em íntima ligação com o
presidente (Bush), o vice-presidente (Dick Chenney)
e o Secretário de Defesa (Donald Rumsfeld).
Executivos importantes também ocupam posições de
destaque no governo federal; um deles veio da falida
e corrupta ENRON para dirigir o exército’.
Galbraith reconhece: ‘As empresas
são um fato essencial na moderna vida econômica.
Precisamos delas. No entanto, elas devem se
conformar em aceitar as normas e as restrições
públicas necessárias.’ Mas o famoso economista
também está convencido de que um ‘antigo poder
privado’... ‘controla o projeto de armas, o
desenvolvimento de mísseis de defesa e o orçamento
militar’ – orçamento que hoje beira meio trilhão de
dólares, e não há sinais de que seja reduzido. Daí
que, acentua ele, entre os ‘jornalistas inteligentes
e corajosos’, ‘poucos duvidam da influência do poder
da empresa sobre o Pentágono, que, no entanto, ainda
é rotulado como uma instituição do setor público’.
Sua conclusão é de que ‘na guerra ou na paz, o setor
privado se transformou no setor público’.
Neste contexto, na maior potência
do mundo atual, Estado, Governo e empresas privadas
se misturam, se completam e se confundem. Seus
interesses cruciais são praticamente idênticos. Sua
interdependência é imensa. Quando, por exemplo,
Lorraine M. Martin, vice-presidente da Divisão de
Sistemas Conjuntos de Comando, Controle e
Comunicações da Lockheed, afirma que ‘queremos saber
o que está acontecendo a qualquer momento, em
qualquer lugar do Planeta’, ela fala como executiva
da empresa ou como membro credenciado do governo? Na
realidade, ela desempenha as duas funções.
Formalmente, é verdade, o Estado
não deixa de ser Estado, o governo não deixa de ser
governo e as empresas privadas não deixam de ser
empresas privadas.
Mas, se aceitarmos reduzir a
análise dos fatos a seus aspectos formais, de ficção
jurídica, pouco entenderemos do que efetivamente
está em jogo.
A conversão do setor privado em
setor público significa, na prática, que o poder
público passou a atuar, acima de tudo, a serviço do
poder privado, com todos os prejuízos e danos que
isso possa acarretar à sociedade como um todo.
Isso propõe questões novas e
desafiadoras na aplicação do princípio fundamental
da responsabilidade dos Estados pelas atividades
espaciais de suas entidades perante os outros
países. Com que critérios um Estado profundamente
privatizado exerce sua responsabilidade
internacional em temas capazes de afetar os
interesses públicos dos demais países e de toda a
comunidade internacional? Que nível de
credibilidade, confiança e segurança este país pode
inspirar aos outros? Como assegurar, em tais
condições, que a exploração e o uso do espaço sejam
realizados, como quer o Artigo 3º do Tratado do
Espaço, de modo a favorecer a cooperação e a
compreensão internacionais?
Para concluir, mais duas
perguntas-chave: com a privatização das atividades
espaciais, hoje comandada pelos EUA, não estaria a
comunidade internacional de Estados, calcada no
princípio do interesse público, transferindo o
controle destas atividades às empresas e seus
interesses privados? Se assim for, que implicações
isso terá sobre a evolução da conquista espacial?
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