Revista Brasileira de
Direito Aeronáutico e Espacial

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QUEM MANDA NO ESPAÇO?

José Monserrat Filho *
 

Cada país responde internacionalmente pelas atividades espaciais de suas entidades públicas e privadas – reza o Artigo 6º do Tratado do Espaço, de 1967, a lei maior deste setor de atividades.

Para tanto, cada país deve ‘velar para que as atividades das entidades não-governamentais (ou seja, empresas privadas) no espaço cósmico, inclusive na Lua e demais corpos celestes, sejam efetuadas de acordo com as disposições anunciadas no presente Tratado’.

Assim, cada país está obrigado, ante a comunidade internacional, a autorizar ou não as atividades espaciais de suas empresas privadas e, em caso positivo, a manter sobre elas contínua vigilância.

As empresas privadas com negócios espaciais, portanto, não são juridicamente autônomas ou independentes. Elas sempre dependem da autorização e da avaliação do país ao qual estão subordinadas.

Se uma empresa privada se conduzir de modo ilícito em relação a outros países, seu país de origem tem não apenas o direito, como também a obrigação de desautorizar suas atividades espaciais.

Essa ação pressupõe, necessariamente, que os países e seus governos sejam independentes diante de suas empresas privadas.

Há países com independência bastante para garantir avaliações e decisões amplamente objetivas e isentas de seus governos sobre a conduta das empresas.

Mas existem também países em que há fortes e justificadas dúvidas quanto a isso, em vista da nítida promiscuidade entre governo e empresas privadas, o que gera preocupações, polêmicas e, não raro, processos na Justiça.

Nunca é demais lembrar que, por um lado, os países e seus governos, pelo menos constitucionalmente, representam e defendem o bem público, isto é, o interesse da sociedade como um todo; e que, por outro lado, as empresas, pela própria lógica de seus fins lucrativos, estão organicamente dedicadas a atender, ao máximo possível, seus interesses privados, nem sempre compatíveis com os interesses públicos.

Não se trata de tornar único e absoluto o poder público – seja estatal ou social –, nem de anular ou reprimir a empresa (e a iniciativa) privada.

Trata-se de colocar cada um em seu devido lugar, com os respectivos direitos e deveres perfeitamente definidos numa ordem hierárquica, que, no entanto, deve dar clara e inquestionável prioridade ao interesse público.

A este nada pode se sobrepor, por expressar o interesse supremo da sociedade – de proteção à vida, à segurança e ao desenvolvimento de toda a cidadania, sem qualquer discriminação.

Acontece que, nos EUA, para ir direto ao exemplo mais eloqüente, é difícil, senão impossível – em vista daquilo que o ex-presidente Dwight Eisenhower batizou de complexo industrial-militar, que inclui a área espacial, e também outros setores – delimitar os campos de ação do poder público e das empresas privadas, mega-corporações que atuam ao mesmo tempo em vários segmentos estratégicos para o país.

‘É impossível dizer onde o Governo termina e a Lockheed começa’, declarou Danielle Brian, membro do ‘Project on Government Oversight’, ONG sem fins lucrativos, com sede em Washington, empenhada em fiscalizar os contratos públicos.

Danielle Brian concluiu de forma contundente: ‘A raposa não só trabalha e guarda o galinheiro, mas também mora lá dentro’.A Lockheed Martin é considerada a maior empresa privada do setor de defesa nos EUA.

Para o ‘The New York Times’, ela ‘não governa os EUA, mas ajuda a administrar uma parte espantosamente grande do País’, pois ‘construiu um formidável império de tecnologia da informação que hoje se estende do Pentágono aos correios’. O jornal acrescenta que ela exerce ‘profunda influência’ sobre as decisões do Congresso e da Casa Branca: ‘Homens que trabalham na ou pela empresa agora ocupam posições como secretário [ministro] da Marinha, secretário dos Transportes, diretor do complexo nacional de armas nucleares e diretor da agência nacional de satélites de espionagem. A lista inclui Stephen J. Hadley, assessor de Segurança Nacional do presidente George W. Bush.’

O ‘The New York Times’ conta ainda que o conselho supervisor da Lockheed inclui E. C. Aldridge Jr., encarregado de compras do Pentágono, responsável pela aprovação de projetos bilionários.

O peso determinante das empresas privadas na alta administração dos EUA é confirmado por John Kenneth Galbraith, que tem participação ativa na vida política e econômica dos EUA há mais de 70 anos, foi professor de Economia da Universidade Harvard, diretor do Banco Central norte-americano e editor da revista ‘Fortune’. Em seu recente e explosivo livro ‘A economia das fraudes inocentes: verdades para o nosso tempo’, ele diz que ‘uma parte grande, vital e cada vez maior do que é chamado de setor público está, para todos os efeitos práticos, no setor privado’. Sobre os administradores das empresas, Galbraith afirma: ‘Neste momento, eles estão em íntima ligação com o presidente (Bush), o vice-presidente (Dick Chenney) e o Secretário de Defesa (Donald Rumsfeld). Executivos importantes também ocupam posições de destaque no governo federal; um deles veio da falida e corrupta ENRON para dirigir o exército’.

Galbraith reconhece: ‘As empresas são um fato essencial na moderna vida econômica. Precisamos delas. No entanto, elas devem se conformar em aceitar as normas e as restrições públicas necessárias.’ Mas o famoso economista também está convencido de que um ‘antigo poder privado’... ‘controla o projeto de armas, o desenvolvimento de mísseis de defesa e o orçamento militar’ – orçamento que hoje beira meio trilhão de dólares, e não há sinais de que seja reduzido. Daí que, acentua ele, entre os ‘jornalistas inteligentes e corajosos’, ‘poucos duvidam da influência do poder da empresa sobre o Pentágono, que, no entanto, ainda é rotulado como uma instituição do setor público’. Sua conclusão é de que ‘na guerra ou na paz, o setor privado se transformou no setor público’.

Neste contexto, na maior potência do mundo atual, Estado, Governo e empresas privadas se misturam, se completam e se confundem. Seus interesses cruciais são praticamente idênticos. Sua interdependência é imensa. Quando, por exemplo, Lorraine M. Martin, vice-presidente da Divisão de Sistemas Conjuntos de Comando, Controle e Comunicações da Lockheed, afirma que ‘queremos saber o que está acontecendo a qualquer momento, em qualquer lugar do Planeta’, ela fala como executiva da empresa ou como membro credenciado do governo? Na realidade, ela desempenha as duas funções.

Formalmente, é verdade, o Estado não deixa de ser Estado, o governo não deixa de ser governo e as empresas privadas não deixam de ser empresas privadas.

Mas, se aceitarmos reduzir a análise dos fatos a seus aspectos formais, de ficção jurídica, pouco entenderemos do que efetivamente está em jogo.

A conversão do setor privado em setor público significa, na prática, que o poder público passou a atuar, acima de tudo, a serviço do poder privado, com todos os prejuízos e danos que isso possa acarretar à sociedade como um todo.

Isso propõe questões novas e desafiadoras na aplicação do princípio fundamental da responsabilidade dos Estados pelas atividades espaciais de suas entidades perante os outros países. Com que critérios um Estado profundamente privatizado exerce sua responsabilidade internacional em temas capazes de afetar os interesses públicos dos demais países e de toda a comunidade internacional? Que nível de credibilidade, confiança e segurança este país pode inspirar aos outros? Como assegurar, em tais condições, que a exploração e o uso do espaço sejam realizados, como quer o Artigo 3º do Tratado do Espaço, de modo a favorecer a cooperação e a compreensão internacionais?

Para concluir, mais duas perguntas-chave: com a privatização das atividades espaciais, hoje comandada pelos EUA, não estaria a comunidade internacional de Estados, calcada no princípio do interesse público, transferindo o controle destas atividades às empresas e seus interesses privados? Se assim for, que implicações isso terá sobre a evolução da conquista espacial?

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* Jornalista e jurista, editor do ‘Jornal da Ciência’, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial, membro da diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial, membro do Comitê de Direito Espacial da International Law Association (ILA).

 

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