Revista Brasileira de
Direito Aeronáutico e Espacial

 barra2.jpg (1468 bytes)

 

A inclusão espacial

José Monserrat Filho *
 

A Era Espacial completa 50 anos em 2007.

O século XX foi pródigo na conquista do espaço. Na sua primeira metade, a aviação ganhou o espaço aéreo. Do vôo bem sucedido de Santos Dumont, em 1906 – com seu 14 bis, o aparelho que voava com seus próprios meios –, até o início da 2ª Guerra Mundial, em 1914, a navegação aérea teve avanço vestiginoso. O conflito bélico acelerou o desenvolvimento da aviação, ainda que pessoas como Santos Dumont tivessem se oposto ao uso militar do novo meio de transporte.

A Era Espacial teve destino parecido. Começou em 4 de outubro de 1957, com o lançamento do R-7 (Semiorka) e do Sputnik I – respectivamente o primeiro foguete e o primeiro satélite criados pelo gênio humano –, ambos da ex-União Soviética. Naquela época, a missão principal das atividades espaciais era militar.

O mundo vivia em plena Guerra Fria, que podia ficar quente a qualquer momento. Nos EUA e na URSS, as superpotências em confronto, os arsenais de armas de destruição em massa não paravam de crescer. O Sputnik foi saudado como notável avanço científico e tecnológico, mas a maior novidade era o R-7, o primeiro míssil balístico intercontinental.

Lançado da URSS, em vôo suborbital, o poderoso artefato poderia atingir o território norte-americano em incrível velocidade, com uma bomba atômica na ogiva. Os EUA tinham cercado a URSS de bases militares com aviões prontos para ataques arrasadores, ainda mais poderosos que os de Hiroshima e Nagasaki. Agora, porém, pela primeira vez na história o território americano se tornava vulnerável a armas externas.

Era o empate estratégico-militar. Washington e Moscou tiveram que negociar formas de convivência pacífica para evitar uma tragédia universal, provocada ou acidental. Mas não desistiram da maior corrida armamentista de todos os tempos, cujos "produtos" continuam nos ameaçando até hoje.

Neste clima, doze astronautas americanos estiveram na Lua, para marcar a supremacia dos EUA sobre a URSS, que havia largado na frente no início da Era Espacial. A preocupação científica era mínima.

A segunda fase da Era Espacial começou em meados dos anos 80, com a comercialização e privatização das atividades espaciais, que se intensificaram a partir do fim da Guerra Fria, nos anos 90. O uso militar do espaço seguiu avançando em alta escala. Basta ver as duas guerras no Iraque (1990 e agora) e da Bósnia (1992-95), bem como os planos atuais do Governo Bush de instalar armas em órbitas da Terra, que podem converter o espaço em teatro de guerra – ameaça gravíssima, inédita na história. Mas também as empresas privadas e/ou mistas e os negócios espaciais ganharam uma dimensão nunca vista antes. Em 1997, os investimentos privados pela primeira vez superaram os governamentais nas atividades espaciais.

Assim como a primeira etapa da Era Espacial, esta fase, de prevalência militar-empresarial, dá um poder extraordinário às grandes corporações privadas e amplia ainda mais o já imenso fosso que separa os países desenvolvidos dos subdesenvolvidos. Os conhecimentos e benefícios das notáveis conquistas espaciais não conseguem produzir mudanças e melhoras fundamentais na vida da maioria dos países.

O sensoriamento remoto por satélite, que se tornou essencial à gestão dos recursos naturais e ao planejamento territorial e urbano, continua sendo privilégio e vantagem de alguns poucos países e empresas. Ainda não se conseguiu montar um sistema global para enfrentar as calamidades naturais em qualquer ponto do planeta. Todos os países reconhecem a necessidade premente dessa rede de proteção universal. As bases tecnológicas para construi-la já existem. Mas as providências para concretizar o projeto se arrastam pesadamente, como se não fosse medida de alta prioridade em todo o mundo.

Mais do que nunca é chegada a hora de abrir caminho a uma terceira fase da Era Espacial: a da inclusão e participação de todos os países, sobretudo nas atividades espaciais indispensáveis ao desenvolvimento de cada um deles. Governos e empresas terão muito a fazer nela.

É preciso que cada país construa uma infra-estrutura mínima – de equipamentos e de pessoal especializado – para capturar, processar, analisar e utilizar as imagens de satélite em seus planos e políticas de desenvolvimento econômico, social e cultural, bem como para prevenir e mitigar as secas, inundações e outros desastres que a natureza provoca e as mudanças climáticas produzidas pela espécie humana parecem fomentar ainda mais. Na América Latina, África e Ásia, dezenas e dezenas de nações precisam desse avanço como do ar que respiram.

Brasil e China estão abrindo valiosas perspectivas neste sentido. Reunidos em 24 de março último, os dirigentes da área espacial dos dois países decidiram, diante do êxito de sua cooperação em sensoriamento remoto, favorecer os países vizinhos com o acesso gratuito aos produtos do Sistema Cbers (Satélite Brasileiro de Recursos Terrestres). Já foram lançados o Cbers-1, que subiu em 1999 e esteve ativo por mais de três anos, e o Cbers-2, em órbita desde 2003. E há mais três programados: o Cbers 2B, a ser lançado em maio de 2007, o Cbers-3, previsto para voar em maio de 2009, e o Cbers-4, com vôo marcado para 2011. Não se trata de cooperação eventual e limitada no tempo. É um acordo temperado por muitas agruras, dificuldades e vitórias conjuntas. Quase foi extinto durante o Governo Collor. Mas, afinal, conseguiu converter-se num sistema de longo prazo e longo alcance.

As imagens Cbers têm qualidade reconhecida. Começaram a ser adquiridas pelo Departamento do Interior do Governo dos EUA para cobrir as falhas do sistema Landsat, em crise. A Austrália, o Canadá e a Agência Espacial Européia também já manifestaram interesse tê-las.

Sumamente úteis e eficientes no levantamento e monitoramento das riquezas naturais e na defesa ambiental dos países, elas servem igualmente ao planejamento terrestre e urbano, bem como a outras finalidades benéficas ao desenvolvimento nacional.

Argentina e Venezuela serão os primeiros países vizinhos do Brasil a ter livre acesso a imagens Cbers. Depois, certamente virão o Peru, o Chile e outras nações sul-americanas. E, no outro lado do Atlântico, na vizinha África, Angola, Moçambique, Cabo Verde e outros países de língua portuguesa também poderão participar dessa rede cooperativa.

Em 17 de fevereiro deste ano, Brasil e Peru firmaram acordo de cooperação para o uso pacífico do espaço, que ressalta: "... a utilização do espaço exterior para fins pacíficos constitui um instrumento insubstituível para o conhecimento de seus territórios e de seus recursos naturais, assim como para a promoção do desenvolvimento social, econômico, tecnológico e a proteção ambiental".

Por tudo isso, o sistema Cbers não é apenas um modelo de cooperação Sul-Sul em alta tecnologia conduzida por países em desenvolvimento. É, também, como corretamente constata o relatório da importante reunião de 24 de março, acima mencionada, "o único programa de sensoriamento remoto operacional que cobre todos os continentes da Terra tem uma política de dados fundamentada no bem público e tem assegurada a continuidade de dados até 2015".

Cabe ficar alerta. O Cbers parece apontar os rumos de uma nova fase da Era Espacial.

--------------------------

* Vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), membro do Instituto Internacional de Direito Espacial e do Comitê de Direito Espacial e da International Law Association (ILA)

 

(Volta ao Sumário)

barra.gif (3737 bytes)

| Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial |