O "ARTIGO 20 -
EXONERAÇÃO" DA"CONVENÇÃO PARA A UNIFICAÇÃO DE CERTAS REGRASRELATIVAS AO
TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL"
(assinada em Montreal a 28 de maio de 1999)
AGUINALDO de Mello JUNQUEIRA Filho
I - Adotaremos neste trabalho as seguintes abreviações:
CV = Convenção de Varsóvia 1929
PH = Protocolo de Haia - 1955
CV/H = CV modificada por PH
CChi = Convenção de Chicago 1944
CGt = Protocolo da Guatemala 1971
AM = Acordo de Montreal 1966
PM 1e 2 = Protocolos de Montreal 1975
DES = Direitos Especiais de Saque
CM = Convenção de Montreal 1999
CBA = Código Brasileiro de Aeronáutica 1986
CBDC = Código Brasileiro de Defesa do Consumidor- 1990
CCBr = Código Civil Brasileiro - 1916
CCo Br = Código Comercial Brasileiro - 1850
II No "Anexo I"
vão transcritos, no respectivo texto oficial em espanhol, os artigos da CM que interessam
mais diretamente ao presente estudo (de nº 17 até nº 21 e nº 29).
III - Comentário
1 - O verdadeiro interesse doutrinário do Art. 20 da CM está
concentrado em sua última frase:
"Este Artigo se aplica a todas as provisões sobre
responsabilidade estabelecidas nesta Convenção, inclusive a alínea 1 do Artigo
21."
As estipulações que antecedem não são mais do que a disciplina da culpa,
concorrente ou exclusiva, do pretendente a indenização, ou da pessoa da qual ele deriva
seu direito, ou do passageiro vitimado, culpa que atenua ou exclui a responsabilidade do
transportador aéreo em face do reclamante.
2 - Nem por isso deixa de ter importância essa disciplina da
culpa do passageiro, porque nem sempre, ou melhor, não é em toda legislação que ela
gera a mesma conseqüência.
No Brasil, por exemplo, a responsabilidade do transportador, quanto a
passageiro, somente é excluída em caso de "culpa exclusiva" deste. O CBA
também exclui a responsabilidade quando a morte ou lesão resultar, exclusivamente, do
estado de saúde do passageiro; tal cláusula é desnecessária, pois o mau "estado
de saúde" não importa em "acidente", que a mesma lei exige para a
responsabilização pelo direito especial, aeronáutico.
Parece-nos que o CBA não foi justo em não atenuar a responsabilidade
na hipótese de culpa concorrente do passageiro. Suponhamos circunstância em que 90% da
culpa caiba ao passageiro e somente 10% ao transportador. Não é razoável que este
assuma a responsabilidade integral.
3 - Cabe observar que a CM inova em relação à CV: esta, em
matéria de culpa concorrente do passageiro/ expedidor, transfere a solução para a lei
nacional do tribunal (art. 21).
A CM enfrentou o problema e deu-lhe solução mais adequada em
prol da uniformização internacional.
O país que promulgar a CM deverá adaptar sua lei interna à mesma
regra de exclusão ou mitigação de responsabilidade, para que não haja discrepância
entre o transporte internacional e o doméstico.
4 - É curioso notar que a CM, ao tratar da faixa de
responsabilidade subjetiva, exige, para liberar dela o transportador, que ele prove não
ter tido culpa, ou que a culpa foi "exclusivamente de terceiro". Era escusado
dizê-lo, pois isso já importava naquela prova.
Se a culpa for de terceiro apenas parcialmente, o transportador não se
exime de responsabilidade. É razoável que assim seja, pois, em matéria de transporte
contrato de resultado a culpa de terceiro pode não ser excludente da
responsabilidade do transportador. No Brasil, a jurisprudência predominante do Supremo
Tribunal Federal foi consubstanciada na seguinte Súmula:
"187. A responsabilidade contratual do transportador, pelo
acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação
regressiva".
Promulgada pelo Brasil a CM, essa orientação jurisprudencial deverá
entrar em consonância com ela, quanto à faixa de responsabilidade que exceder 100.000
Direitos Especiais de Saque.
5 - Os Arts. 17.1 e 21.1 da CM impõem claramente ao
transportador a chamada responsabilidade objetiva, isto é, independente de verificação
de culpa, que é condição subjetiva do agente.
Alguns qualificam aquela responsabilidade como absoluta, o que
não nos parece apropriado, pois sempre existe alguma excludente. No caso da CM, a
exoneração é a que se funda na culpa exclusiva do passageiro.
O caso de responsabilidade mais próxima da absoluta é a da
Infortunística: em acidente do trabalho, o operário tem direito a indenização ainda
quando seja o culpado único; mas a responsabilidade do empregador, ou do Seguro Social,
é excluída quando o operário atua com dolo (fere-se de propósito, para tentar obter
compensação econômica).
A responsabilidade objetiva pode ser graduada, isto é, possuir maior
ou menor número de excludentes. A CM, no caso de transporte de carga, estabelece
responsabilidade objetiva, mas admite as exonerações das letras a, b, c e d do Art.
18-2. É a responsabilidade que se define como estrita, ou melhor, exata, a saber:
prevalece sempre, exceto nos precisos e objetivos casos ressalvados expressamente.
Àquelas exonerações possíveis, deve-se acrescentar a do Art. 20,
que se aplica a todas as regras de responsabilidade da CM.
6 - Referimo-nos no item 1 à frase final do Artigo 20 da CM, o
qual remete para o Art. 21:
"1. Em relação a danos ocasionados conforme a alínea 1 do
Artigo 17 não excedentes de 100.000 Direitos Especiais de Saque para cada passageiro, o
transportador não poderá excluir ou limitar sua responsabilidade."
Para o exame, que nos cabe fazer, do Artigo 20, devemos remontar ao
Art. 17, al.1, pois aí é que se encontram as circunstâncias, as situações e os
eventos em que se aplica a exoneração, total ou parcial, admitida no Art. 20 quanto a
danos, regulados pela CM, ocasionados a passageiro.
7 - Em que casos se aplica a exclusão ou a mitigação da
responsabilidade do transportador aéreo internacional?
Estamos tratando de legislação especial, de Direito Aeronáutico, a
vigorar em relação a transporte internacional.
Tanto a CM como a CV em seus próprios títulos esclarecem que elas
cuidam da unificação de "certas regras" (não de todas as regras) relativas ao
transporte internacional por via aérea.
Quanto a responsabilidade civil no transporte de passageiro, ambas as
Convenções circunscrevem sua própria aplicação à ocorrência de dano que tenha
- por causa: morte ou lesão corpórea;
- por circunstância: um acidente;
- por ocasião: período em que o passageiro esteja a bordo, ou
embarcando, ou desembarcando.
Se algum desses fatores não se apresentar, não se aplicará a CM,
como hoje não se aplica a CV.
Estaremos fora do âmbito de aplicação da legislação especial,
aeronautico-internacional.
8 - Dever-se-á buscar a lei aplicável - lei nacional - de
acordo com os critérios adotados pelo Direito Internacional Privado, que soluciona os
conflitos de lei no espaço.
Estabelecido o país cuja legislação deva aplicar-se, surge a
questão de saber qual a lei específica que deve prevalecer. Entendemos que se
aplica a lei que mais especialmente trate da matéria em causa.
Expliquemo-nos.
As leis são gerais ou especiais umas em relação às outras. Uma lei
pode ser "especial" em relação a outra, mais geral; mas ser "geral"
em relação a alguma outra, que seja mais especial quanto a determinado assunto.
Vamos a um exemplo, pertinente ao nosso tema.
O Código Civil é lei geral de contratos civis e comerciais. O
CCoBr diz que "as regras e disposições do direito civil para os contratos em geral
são aplicáveis aos contratos comerciais com as modificações e restrições
estabelecidas neste Código" (Art. 121).
O Código do Consumidor (CBDC) é lei especial em relação ao
CCBr e ao CCoBr, pois trata de contratos de certo tipo, qual seja, o de consumo, em
que a pessoa utiliza produto ou serviço como destinatário final. Mas esse mesmo CBDC é
lei geral (dos contratos de consumo) em relação, por exemplo, ao CBA, que
disciplina uma espécie de contrato de consumo: o relativo à prestação de
serviços aéreos (que só não é "de consumo" quando o transporte de carga
é insumo de atividade comercial do responsável pelo frete - expedidor ou
consignatário).
Princípio concernente à vigência da lei no tempo proclama:
"A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a
par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior" (Lei de Introdução
ao CCBr, art. 2º, § 2º).
Destarte, as disposições do CBA (embora este seja anterior ao CBr DC)
que disciplinam, de forma especial, o contrato de transporte aéreo continuam em vigor,
sem prejuízo da aplicação a esse mesmo contrato das normas mais gerais, ou mesmo
de outras, especiais, não conflitantes, sobre relações de consumo, criadas
posteriormente pelo CBrDC.
9 - Assim sendo, se não forem aplicáveis, em caso de
transporte aéreo internacional, as regras da Convenção, por inocorrência de hipótese
de incidência (item 7, supra), e se a lei nacional aplicável for a brasileira,
dever- se-á primeiro consultar o CBA, a ver se contém dispositivo sobre o assunto. Na
omissão, passa-se ao exame do CBDC; se este também nada dispuser, vai-se à lei mais
geral, que, em matéria de responsabilidade, é o CCBr. Este, em seu Art. 159, adota a
teoria da culpa comprovada e o princípio da compensação integral
(preferimos essa expressão em vez de ilimitada, pois a compensação vai até o
montante do prejuízo sofrido pela vítima).
Se a vítima contribuir para o dano, mitiga-se proporcionalmente a
indenização.
10 - Nem a CV nem a CM cuida da hipótese de total
inexecução do contrato de transporte. Os danos contemplados são os decorrentes de
morte ou lesão corpórea de passageiro; de destruição, perda ou avaria de bagagens
despachadas e de cargas; e de atraso, em geral, no transporte.
Deve-se então aplicar lei nacional. No Brasil, o CBA também não
contém regra sobre o assunto. O CBDC regula os "danos causados aos consumidores por
defeitos relativos à prestação dos serviços" (Art. 14) e os "vícios de
qualidade" que estes manifestem (Art. 20), mas nele não encontramos regras
específicas sobre a total inexecução das obrigações de Direito privado. Tal matéria,
no entanto, vem disciplinada, minuciosamente, no CCBr, cujas regras serão as de
aplicação no caso conjecturado.
Quando aplicável o CCBr, haverá exclusão ou mitigação da
responsabilidade, conforme a culpa for exclusivamente da vítima, ou se esta e o agente
forem comprovadamente culpados.
A solução, portanto, será igual à do Art. 20 da CM.
11 - Questão muito interessante sob o aspecto jurídico
(pondo-se de lado os tristes aspectos humanos) se apresenta quando ocorre acidente
aeronáutico em que morrem ou se ferem alguns passageiros, mas outros se salvam ilesos,
sem qualquer ferimento ou lesão corpórea.
Fato dessa espécie aconteceu no Brasil, há uns poucos anos: o piloto
perdeu o rumo e, gasto o combustível, fez pouso forçado na floresta amazônica. Houve
mortos e feridos, mas alguns passageiros nada sofreram em seu corpo.
Suponhamos que entre os viajantes houvesse portadores de bilhetes
internacionais. Com relação aos que morreram ou sofreram lesões corpóreas, a CV se
aplicaria (como a CM), pois os requisitos de sua incidência estavam preenchidos.
Mas, que lei aplicar com referência aos passageiros que se saíram
sãos e salvos do acidente ? Eles passaram momentos de grande aflição; ficaram por
alguns dias perdidos no meio da floresta, no maior desconforto e insegurança; sofreram a
angústia de não saber se seriam encontrados e resgatados; certamente deixaram de obter
os ganhos normais correspondentes ao tempo de afastamento do trabalho.
Não se lhes aplica a CV nem se lhes aplicará a CM, porque ambas as
Convenções apenas tratam dos danos ocasionados por morte, (ferimento) ou lesão
corpórea.
Aplica-se lei nacional; no caso, a brasileira.
O CBA, que seria a lei mais relacionada com a matéria, acompanha os
requisitos de incidência daquelas Convenções.
Passa-se, então, ao CBDC, que, este sim, cuida de "defeitos
relativos à prestação" de serviços, sem excluir de seu âmbito a reparação dos
danos morais causados aos consumidores. Entretanto, depois de estabelecer que a
reparação integral é devida "independentemente da existência de culpa", diz
em seu Art. 14:
"§ 3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado
quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro."
Dessa maneira, ainda que o transportador, fornecedor do serviço
aéreo, tenha apenas uma parcela de culpa, ou melhor, ainda que o passageiro tenha quase
toda a culpa, o transportador deverá reparar integralmente os danos causados pelo
serviço defeituoso.
Neste caso, portanto, a solução não é a mesma que a prevista na CM.
Entretanto, a solução do CBDC é a que prevalece na vigência da CV (art. 21), desde que
seja brasileiro o tribunal competente para a causa, com a ressalva do exposto no
item que se segue.
12 - Com referência ao caso do acidente noticiado no item
anterior, tivemos ocasião de proferir conferência há alguns anos, em Montevidéu, na
qual sustentamos que os passageiros ilesos deveriam ter indenização não
superior ao limite que a lei fixava para os danos decorrentes de morte. Tal conclusão
decorria do valor pequeno desse limite e se baseava no argumento de que, por
princípio geral de Direito e por uma questão de lógica, seria inconcebível que os
ilesos recebessem compensação maior que o limite fixado para o caso de morte de
passageiro. Tão baixo era e é esse limite, na lei brasileira e na CV/H, que os
passageiros incólumes poderiam demonstrar prejuízos superiores, materiais e morais ...
Se e quando a CM entrar em vigor, esse esforço de interpretação não
será mais necessário, pois a indenização que for devida por morte de passageiro
também alcançará a totalidade do valor dos danos.
13 - Dos requisitos para a incidência da CV ou da CM, não
vamos nos deter no que se refere ao período de exposição - a bordo de aeronave ou no
curso das operações de embarque ou desembarque - porque se trata de matéria já
bastante examinada pelos autores. Das causas de danos, o conceito de
"morte" não oferece maiores problemas; quanto a "lesões corpóreas"
e sua extensão falaremos um pouco, mais adiante.
Cabem algumas palavras sobre a definição de "acidente",
pois é possível que, vigente a CM, se volte a discutir sua denotação. É que podem os
transportadores querer afastar a aplicação da CM a pretexto de que a circunstância
causadora do dano ao passageiro não se configurou como "acidente", com isso
passando o problema da responsabilidade para lei nacional eventualmente mais amena, sem a
rígida "objetividade" da faixa até 100.000 DES.
Análise sistemática do Direito Aeronáutico poderia levar à
conclusão de que "acidente" é apenas o evento definido no Anexo 13 da
Convenção de Chicago: "todo sucesso relacionado com a utilização de uma aeronave
etc."
Entretanto, é preciso convir que esse conceito foi concebido com
vistas à investigação das causas de sinistros e não para delimitar a responsabilidade
especial, de Direito Aeronáutico, imposta ao transportador pela CV, a qual, aliás, é
anterior à CChi.
A expressão "acidente", na CV e na CM, abarca também os
acontecimentos danosos, involuntários, ocorridos individualmente com o passageiro: são
os chamados "acidentes pessoais". Por exemplo: um raio atinge o passageiro por
ocasião de operação de embarque; a aeromoça derrama sem querer água fervente no rosto
da passageira. As defesas possíveis do transportador poderão ser diferentes na CV e na
CM.
A nosso ver, o conceito de "acidente" deve compreender todos
os sucessos relacionados, não propriamente "com a utilização de uma
aeronave", mas com toda a atividade profissional do transportador, enquanto
transportador. O risco específico assumido é que motiva o enquadramento na
legislação especial.
Dizemos "enquanto transportador" para excluir casos em que o
dano não decorre propriamente do exercício da atividade aeroviária; exemplo: o
passageiro é envenenado por alimento servido a bordo (esse evento nem se configura, a
rigor, como "acidente").
14 - Que tipos de "danos" se compreendem no Art. 17
(tanto da CV como da CM) ?
O TRATADO de M. JUGLART (I/2665) contém uma observação
interessantíssima: - afirma que aquele artigo da CV tem sido entendido de maneira
equivocada. Costuma-se pensar que ele se refere aos danos consistentes em morte ou
lesão corpórea; entretanto, o artigo diz "danos decorrentes" desses
eventos. Não se deve confundir as causas dos danos com a natureza dos
danos. Quanto à natureza, os danos seriam todos aqueles que admitisse a lei do tribunal
competente para a causa.
Parece-nos procedente esse enfoque, mas com certas reservas quanto a
danos morais. Se em caso de morte se contemplasse sempre uma indenização pelo agravo
subjetivo, a uniformização internacional buscada pela CV ficaria muito comprometida; e a
responsabilidade do transportador seria fixada em seu limite máximo em praticamente todos
os casos - o que não seria dentro do espírito das regras convencionais.
Na hipótese de lesão corporal, entretanto, não há como fugir da
composição do dano moral, se da lesão resultar aleijão ou deformidade.
Aliás, a reparação de dano moral, via de regra, somente deve ser
deferida à própria vítima e não a pessoas que dela pretendam derivar seu direito a
indenização.
Consideremos a solução dada ao problema pelo CCBr, de 1916: - ao
tratar da liquidação das obrigações resultantes de atos ilícitos, estabeleceu que, em
caso de morte, a indenização consiste no pagamento das despesas com o tratamento da
vítima, seu funeral e o luto da família, e na prestação de alimentos às pessoas a
quem o defunto os devia (Art. 1.537). Já no caso de ferimento ou outra ofensa à saúde,
devem ser pagas as despesas de tratamento, lucros cessantes e multa; mas, se do ferimento
resultar aleijão ou deformidade, esta soma indenizatória é duplicada (Art. 1.538).
Entretanto, a Constituição Federal brasileira, de 1988, proclamou que
"são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação" (Art. 5º, inciso X. Outros casos especiais de dano moral, previstos em
leis diversas, não interessam aqui). Por sua vez, o CBDC acolheu como direito básico do
consumidor "a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais,
individuais, coletivos e difusos" (Art. 6º, inciso VI).
A nosso ver, o conceito de "dano moral" deve ser aquele,
restritivo, expresso na Constituição, ou referir-se a violação de direitos
substanciais do cidadão (segurança, liberdade, saúde), ou significar acintoso desprezo
a valores essenciais de sua sensibilidade e auto-estima.
Com a CM, grande parte do interesse dessa discussão perderá razão de
ser: é que, se o dano moral for julgado alheio ao Direito aeronáutico, poderá ser
deferida sua reparação pelo Direito nacional aplicável, provavelmente de forma
integral, como o seria pela CM... Hoje, se a questão for considerada sujeita à CV, o limite
de indenização se aplicará ao total dos danos, materiais e morais, pois, caso
contrário, a limitação de responsabilidade seria uma falácia, um verdadeiro engodo
legal.
15 - De qualquer maneira, o dano moral que não decorre de morte
ou de lesão corpórea do passageiro deve ser considerado fora do Direito aeronáutico
internacional. Sujeitar-se-á à lei nacional que for aplicável.
A "lesão mental" é considerada, pelo menos em Direito
francês, como equiparada a "lesão corpórea". Também essa possível
discussão ficará praticamente suplantada pela CM: se esta não se aplicar no caso de
"lesão mental", a lei nacional provavelmente determinará reparação integral,
como aconteceria se a CM prevalecesse. As defesas do transportador é que poderão ser
diferentes. Mas a culpa do transportador, em caso de acidente, raramente escapa do
argumento de que "os fatos falam por si mesmos": a inversão do ônus da prova
se impõe naturalmente.
A reparabilidade do dano moral, se, de um lado, pode atender a um
princípio de Justiça, por outro lado gera dificuldades para a uniformização, no plano
internacional e no interno de cada país, das decisões judiciais sobre a matéria: é que
geralmente não há parâmetros para a fixação do valor do agravo sofrido, e, com isso,
os valores das indenizações podem variar enormemente. Sábio foi o CCBr ao prefixar o
valor do dano resultante de ferimento deformante (item 14, acima).
Convém ponderar, também, que o "dano moral" não deve ser
banalizado, isto é, considerado ocorrente em quaisquer circunstâncias, ainda que de
somenos. O agravo indenizável deve ser ofensa a direitos e valores fundamentais da
personalidade (ver item anterior).
Sem ofensa desse tipo, a simples violação do contrato não justifica
a reparação de dano moral, que não se configura por motivo de mero desconforto, ou
simples aborrecimento (exemplo: extravio de bagagem despachada).
Aliás, no transporte aéreo de bagagens despachadas e de cargas é
difícil conceber a possibilidade de ocorrência de dano moral, até mesmo em face do
critério de limitação da responsabilidade - por passageiro ou por quilograma. Mas,
ainda assim, podem-se imaginar situações em que haja esse tipo de ofensa, cabendo ao
interessado, para resguardar-se, fazer "declaração especial de valor". Não
nos referimos a transporte de cadáver humano: defunto não é bagagem, mercadoria ou
carga; seu translado não é regido pelo Direito Aeronáutico; no Brasil seria de
aplicar-se a esse serviço o CBDC.
16 - Procuramos examinar, nos itens acima, as situações reais
em que se aplicam as exonerações admitidas no Art. 20 da CM.
Quando a hipótese não se configura dentro das "certas
regras" da CM, como da CV, é a lei nacional que dirá quais as exonerações
possíveis, conforme o sistema de responsabilidade que ela adotar, inclusive no que se
refere a culpa exclusiva ou concorrente da pessoa que pretender indenização.
Dentro do tema, cabe ainda uma referência ao Art. 29 da CM, que exige
fiquem as ações de reparação de danos sujeitas "às condições e aos limites de
responsabilidade" nela estabelecidos.
A nosso ver, esse artigo se inicia com uma generalização que não tem
cabimento, ou que deve sujeitar-se a interpretação adequada. Não são quaisquer ações
judiciais relativas a transporte de passageiros, bagagem e carga, que se submetem às
regras da CM. São apenas as ações por danos sofridos nos casos nela especificados.
Melhor dizia a CV ao estabelecer, em seu Art. 24, regra análoga, mas com estas
restrições:
"Nos casos previstos pelos arts. 18 e 19 ......"
"Nos casos previstos pelo art. 17 ................."
Em verdade, o que o Art. 29 da CM objetiva é apenas: afirmar que, nos
casos que ela disciplina, a ação, mesmo que fundada em contrato ou em ato ilícito,
deverá subordinar- se às condições e limites de responsabilidade da CM; e isto sem
prejuízo da questão relativa às pessoas que podem mover a ação e às que tenham
direito a indenização. A razão dessa disposição é evitar que algum sucessor do
passageiro falecido alegue que não era parte no contrato de transporte e que seu direito
a indenização decorre de ato ilícito extra-contratual do transportador, não alcançado
pela CM...
Bem fez a CV em dar a seu Capítulo III o título
"Responsabilidade do Transportador" e não, como fez o CBA em relação a
capítulo sobre o mesmo tema, o título "Da Responsabilidade Contratual".
O Art. 29 da CM acrescentou que danos não-compensatórios não serão
ressarcíveis... em Direito aeronáutico internacional.
Quanto a exonerações, o Art. 29, nessa análise que acabamos de
fazer, não modifica nossas anteriores observações.
17 - O Art. 17 da CV e assim o da CM procuraram circunscrever as
situações em que as regras convencionais prevaleceriam. Mas a CV, a nosso ver, apresenta
um defeito de redação, pois, ao menos em exame literal, dá a impressão de delimitar os
casos de responsabilidade, em geral, do transportador. Diz o único texto oficial, em
francês, da CV: "Le transporteur est responsable du dommage... lorsque
laccident qui a causé le dommage sest produit à bord etc.".
Em verdade, o texto quer dizer que o transportador é responsável, segundo
as regras desta convenção, pelo dano decorrente etc.
Institui a CV, em seguida, o critério da culpa presumida do
transportador e a limitação de sua responsabilidade, salvo no caso do Art. 25.
Já o PGt e, agora, a CM, ao adotarem o sistema de responsabilidade
objetiva, corrigiram aquela deficiência de redação ao dizerem que o transportador
responde pelos danos
"upon condition only",
na expressiva fraseologia inglesa.
Quer dizer: para que a responsabilidade incida basta o preenchimento
dos requisitos objetivos estabelecidos no artigo - o que não impede a ocorrência de
responsabilidade em outras circunstâncias, segundo outras regras, de leis nacionais.
É oportuno assinalar, no entanto, que o PGt ao modificar o Art. 17 da
CV/H, na alínea 1 substituiu a palavra "acidente" pela palavra
"fait", em francês, "event", em inglês, passando a ler-se: "o fato
(ou evento) que causou a morte ou a lesão etc". Essa alteração constituía, a
nosso ver, inconcebível erro jurídico, pois imporia responsabilidade ao transportador
até por ato criminoso de terceiro, praticado furtivamente.
A título de curiosidade: a versão oficial brasileira do CGt traduziu
"fait qui a causé la mort ou la lésion corporelle" (em francês), ou "event
which caused the death or injury" (em inglês), por "acidente que causou
o dano". Alterou sentido do texto (embora "consertando"o erro jurídico) e
confundiu causas de dano com o próprio dano...
Cabe lembrar que, em relação a transporte de cargas e de bagagens,
todas as Convenções se referem, acertadamente, a "evento" danoso, pois aí a
responsabilidade não depende da ocorrência de um acidente.
18 - É preciso reconhecer que a CM, quando entrar em vigor,
significará uma profunda subversão no Direito Aeronáutico Internacional
cristalizado nas Convenções e Protocolos que hoje o disciplinam. (Cabe notar,
entretanto, que o mui difundido AM já estabelece, até certo nível de danos, a
responsabilidade objetiva do transportador).
O chamado Sistema Varsóvia, atualmente alargado - e confirmado, salvo
quanto à unidade monetária - pelos PM 1 e 2, tem, como fundamento da responsabilidade, a
culpa do transportador (embora presumida), e, como pedra angular, a limitação dessa
responsabilidade, exceto em casos especiais.
Diferentemente, a CM impõe ao transportador, em caso de danos a
passageiro:
. numa primeira faixa - até 100.000 DES - responsabilidade
objetiva e de reparação integral, com uma única defesa - a do Art. 20;
. numa segunda faixa - pelo que exceder aquele valor -
presunção de culpa e reparação integral dos danos, admitida como defesa excludente
apenas a prova da "não-culpa", ou a mitigação da responsabilidade pela culpa
concorrente da vítima.
(Deixamos de mencionar a culpa exclusiva de terceiro pela razão antes
assinalada item 4).
Interessante observação fez o Dr. SIGFREDO D. BLAUZWIRN em trabalho
apresentado nas XXIX Jornadas Iberoamericanas - Panamá, outubro de 1999: - "Con
relación a la mención referida en el inc. 2,a), cabe formular critica a la redacción de
la proposición gramatical, por cuanto al imponerse al transportista la prueba del hecho
negativo, ésta resultará imposible de lograr. A juicio del autor la norma debería
atender al concepto de debida diligencia del transportista como medio de
exoneración total o parcial de su responsabilidad, toda vez que el hecho negativo no
puede probarse".
Merece também reparo a letra b da alínea 2 do mesmo Artigo 21, nisto
que, embora o terceiro não seja o único responsável, mais um caso de exoneração se
impõe, dentro do sistema: é quando a outra parcela da culpa cabe ao próprio reclamante
da indenização. Essa alínea b é supérflua e errônea. (Na faixa de
responsabilidade objetiva, a hipótese configurada apenas amenizaria a responsabilidade do
transportador).
É importante assinalar que a CM, em confronto com a CV, é tão mais
rigorosa para o transportador, reduzindolhe as defesas possíveis e os casos de
exoneração total ou parcial, que ele muito provavelmente preferirá que sua
responsabilidade se enquadre, não nas regras da CM, mas em lei nacional que eventualmente
lhe seja menos severa. Poderá o transportador questionar os conceitos de
"acidente" e "lesão corpórea", procurando dar-lhes a mais restritiva
interpretação; poderá também querer restringir a definição de "operações de
embarque e desembarque" ao período menor possível, digamos, respectivamente, só a
partir da subida do passageiro a bordo pela escada agregada à aeronave, ou até o momento
em que ele desce o último degrau.
... A não ser que a lei nacional lhe seja mais gravosa o que
poderá acontecer se aplicável ao transportador o CBrDC, que impõe ao prestador de
serviços responsabilidade sempre independente da existência de culpa e o obriga à
reparação integral dos danos causados (pelo serviço...).
A defesa única seria "a culpa exclusiva do consumidor ou
de terceiro"... (afora a inexistência de defeito no serviço).
19 - A CM criou para os Estados contratantes a obrigação de
exigir de suas empresas transportadoras "seguro adequado em cobertura de suas
responsabilidades segundo esta Convenção" (Art. 50).
Alguma dificuldade ou deficiência ocorrerá na contratação de um tal
seguro, em vista da inexistência de prévia fixação de limite para essa
responsabilidade. Ela, por ser "integral", poderá gerar agravamento dos
prêmios de seguro. As seguradoras costumam fixar as alíquotas de suas tarifas em
função do volume de indenizações pagas no ano precedente. Se ocorrerem sinistros em
que haja passageiros ou seus familiares compensados com altas somas de dinheiro, os
prêmios certamente serão elevados. E isso poderá até redundar em aumento do preço das
passagens e fretes aéreos. Felizmente, o transporte aéreo tornou- se um dos mais, senão
o mais confiável meio de locomoção.
O assunto seguro tem, sob o aspecto prático, uma certa
relação com o tema "exoneração", de que estamos cuidando. É que o seguro,
sendo obrigatório, pode induzir a ação judicial direta contra o Segurador, que,
em pagando a indenização ou a condenação, excluirá a responsabilidade do
transportador. Assim ocorre no Brasil, de conformidade com o Código de Aeronáutica
(Arts. 281 e 286).
Lei de Acidentes do Trabalho chegava a dizer que, uma vez contratado
regularmente o seguro obrigatório de sinistros obreiros, o empregador ficava desonerado
de qualquer indenização correspondente.
20 - O advento da CM está a confirmar a tendência no sentido
de que, na aviação comercial, em breve somente haverá espaço e condições de
sobrevivência para as grandes empresas. Os chamados países em desenvolvimento ou de
recursos ainda mais parcos certamente ficarão alijados da possibilidade de concorrência
no mercado internacional de transporte aéreo, ainda mais quando vão caindo,
paulatinamente, na pregação da política de "céus abertos".
As grandes empresas internacionais estenderão o âmbito de suas
operações pelo mundo afora, como um dos aspectos da globalização que vai
dominando o panorama da indústria e do comércio universais.
21 - Não caberia a nós, neste comentário, apresentar
sugestões a respeito da "solução ideal" para a problemática do Direito
Aeronáutico Internacional. Velha parêmia lembra: "cada cabeça, cada
sentença". No caso presente, diríamos: "Cada cabeça, cada projeto de
lei"...
Entretanto, não podemos silenciar a consideração de que a CM desfaz
o equilíbrio que a CV procurou realizar entre os direitos e interesses de usuários e
empresários do transporte aéreo.
É certo que a velha CV ou a CV/H está a merecer adaptação aos
tempos modernos; mas seu principal defasamento é o que diz respeito aos limites de
indenização, que são muito exíguos em relação ao transporte de passageiros.
Mas, a nosso ver, o conteúdo do AM representaria solução bastante
adequada para o sistema de responsabilidade aeronáutica internacional, desde que fosse
adotado universalmente e elevado o limite indenizatório, por morte ou lesão de
passageiro, para 100.000 DES.
Nossa opinião pessoal teria ainda outras particularidades, mas
escusamo-nos de apresentá-las aqui, pela razão já mencionada. Apenas quisemos deixar
constância de que - dentro embora de nossas limitações - não propugnaremos pela
ratificação da CM em nosso País.