Revista
Brasileira de
Direito Aeronáutico e Espacial
A INCONSTITUCIONALIDADE DA
"LEI DO TIRO DE DESTRUIÇÃO"
Fábio Anderson de Freitas Pedro
Bacharel em ciências jurídicas e sociais pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor do Centro Universitário da Cidade,
advogado militante no Rio de Janeiro no ramo do direito aeronáutico, membro da
Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA) e da Associação Latino
América de Aeronáutica (ALA)
O governo federal brasileiro, em 16 de julho de 2004, publicou o
decreto número 5.144, regulamentando assim os §§ 1º, 2º e 3º do artigo 303 do
Código Brasileiro de Aeronáutica, permitindo que aeronaves consideradas hostis ou
suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins possam ser objeto de
medidas coercitivas de averiguação e até mesmo, autorizando a destruição em vôo de
aeronaves.
Inicialmente convém relembrar que o Brasil detém a jurisdição
soberana para definir as regras a serem observadas pelas aeronaves de natureza civil ou
militar que tenham interesse em utilizar nosso espaço aéreo. Podendo inclusive se
entender necessário para a segurança nacional, negar o acesso ou determinar que a
aeronave se retire do nosso território.
Esta competência inata aos Estados, de poder fazer valer suas
decisões no âmbito de seu território advém do exercício de sua plena soberania, haja
vista que o espaço aéreo é elemento componente do território.
De acordo com o momento histórico-político, determinado país pode
ser mais ou menos rígido no controle de seu espaço aéreo. Podemos citar dois exemplos
de controles rígidos de espaço aéreo. O primeiro é o atual momento dos Estados Unidos
da América, que recentemente experimentou os nefastos efeitos de práticas terroristas
que utilizaram aeronaves como instrumento para semear a destruição. A partir do chamado
9 de setembro 1, o governo
norte-americano passou a promover uma rígida política, policiando os aeródromos,
aeroportos, bem como o espaço aéreo, na esperança de poder coibir novos atentados.
O segundo exemplo foi a tragédia do vôo KE007, quando um Boeing
747-200B da empresa Korean Air Lines, partiu no dia 31 de agosto de 1983 de Nova Iorque
com destino a Seul.
Embora a aeronave fosse equipada com três plataformas de navegação
inercial Litton LTN-72R, provavelmente por falha humana, os equipamentos não foram
devidamente configurados, e a aeronave da Korean Air Lines ao invés de passar ao largo do
território soviético, acabou em plena guerra fria ingressando no espaço aéreo da URSS.
Frustrados os contatos de rádio bem como a munição traçante não
foi capaz de evitar que um Boeing 747- 200B fosse abatido e 269 vidas humanas fossem
perdidas.
Atualmente, o Brasil ingressou de forma decisiva, no rol de países que
mantém um controle rígido de seu espaço. Com a justificativa de resguardar o país do
tráfico de entorpecentes, promoveu o projeto SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia),
que consiste na utilização de um moderno aparato eletrônico. Composto de 6 satélites,
25 radares (19 fixos e 6 móveis), 03 Centros de Vigilância Regionais (Manaus, Belém e
Porto Velho), 200 estações de monitoramento ambiental, 70 estações meteorológicas,
300 rádio transmissores, 940 usuários remotos (VSat) , 05 aviões EMB-145 AEW&C
(R99A), 03 EMB145 SR (R- 99B) e 99 aviões leves de ataque ALX
2, é atualmente o maior projeto deste tipo em instalação no
mundo.
O Decreto prevê a aplicação de métodos coercitivos a princípio
devendo ser observada a seguinte seqüência: a) reconhecimento à distância por
aeronaves da Força Aérea Brasileira; b) Confirmação da Matrícula através de acesso
ao banco de dados do Departamento de Aviação Civil 3; c) Contato de rádio na freqüência prevista para a área; d) contato de
rádio via freqüência internacional de emergência 121.5 ou 243 MHz, iniciando pela VHF
121.5 MHz 4, que será mostrada por
uma placa pelo piloto do avião de defesa aérea; e) Sinais visuais, de acordo com regras
internacionais; f) determinação de mudança de rota, por ordem via rádio e através de
sinais; g)determinação de pouso obrigatório, por ordem via rádio e através de sinais;
h) realização de tiros de advertência, com munição traçante lateralmente à aeronave
suspeita, de forma visível sem atingi- la; e i) realização de disparos pela aeronave de
interceptação.
De acordo com o artigo 2 o do Decreto que regulamentou o tiro de destruição, para que uma aeronave seja
considerada suspeita de tráfico de entorpecentes, basta adentrar no território nacional
sem plano de vôo provado ou omitir aos órgãos de controle informações de
identificação se estiver cumprindo rota presumivelmente utilizada para distribuição de
drogas ilícitas. Desta forma para que a aeronave seja interceptada e até mesmo
destruída em vôo basta uma mera presunção de que esteja envolvida com a atividade do
narcotráfico.
Alguns críticos buscam alvejar o mencionado diploma legal, por ferir
princípios internacionais, mais notadamente o princípio da passagem inofensiva. De
acordo com a convenção de Chicago, denominada "Conven- ção sobre Aviação Civil
Internacional", a passagem inofensiva consiste na desnecessidade de autorização
prévia para as aeronaves civis de qualquer Estado contratante atravessarem o espaço
aéreo dos outros, desde que obedeçam aos termos da convenção 5.
Esta corrente de críticos, não está correta, haja vista que a
passagem inofensiva não pode ser por nenhum pretexto confundida com passagem clandestina.
Asseverase legítimo ao país controlar seu espaço aéreo, devendo criar normas a serem
observadas. No Brasil o Código Brasileiro de Aeronáutica, diploma legal que deve ser
observado por qualquer aeronave em nosso espaço aéreo, dispõe em seu artigo 14 § 2º
que é livre o tráfego de aeronaves privadas, mediante informações sobre o vôo
planejado.
A questão que deve ser enfrentada em verdade é a constitucionalidade
ou não do Decreto 5.144/04, senão vejamos:
Dentro do arcabouço jurídico brasileiro, não há norma jurídica que
tenha primazia sobre a Constituição Federal. E neste contexto, todas as normas que não
atendam aos princípios e determinações que emanam da Constituição Federal, devem ser
consideradas inconstitucionais e, portanto, inaplicáveis.
O Decreto que autorizou que a Força Aérea Brasileira tenha
autorização para abater aeronaves suspeitas, fere frontalmente a Carta Magna, haja vista
que o Brasil é adepto do princípio da presunção de inocência (art. 5º inciso XVII
CF/88), desta forma os indivíduos serão considerados inocentes até que o Estado promova
a robusta prova de sua culpabilidade e que ocorra o trânsito em julgado da decisão
condenatória.
Em verdade o Decreto 5.144/04, dispõe justamente o contrário, que por
mera presunção, uma aeronave no espaço aéreo brasileiro poderá sofrer medidas
coercitivas, pela simples leitura do inciso XVII do artigo 5º da constituição,
verifica-se que o Decreto que autoriza o tiro de destruição não está em consonância
com a Lei Maior.
Outro princípio constitucional que foi ferido refere- se ao devido
processo legal (art. 5º inciso LIV CF/88), onde alguma pessoa só pode ser punida, após
a análise pelo juiz competente de acordo com a organização judiciária vigente é
assegurada ao acusado, durante toda a instrução processual, o contraditório e a ampla
defesa. De acordo com o Decreto o indivíduo que presumidamente estiver vindo de área
onde existe atividade ilícita de tráfico de entorpecentes, sem qualquer direito a um
processo judicial, poderá ter sua aeronave danificada ou destruída e ceifadas todas as
vidas a bordo, isto porque, ao se abater uma aeronave, a probabilidade de sobreviventes é
remota, portanto a execução do tiro de destruição será uma verdadeira sentença de
morte.
A importância da vida humana é amplamente reconhecida seja pelas
manifestações sociais, seja pela proteção que recebe em nosso ordenamento jurídico. O
Código Penal Brasileiro reserva a punição mais severa para quem atentar contra a vida
de outrem. A Constituição Federal Brasileira fez inserir comando dentro das chamadas
normas pétreas, proibido a aplicação da pena de morte em nosso país em tempos de paz.
Considerando que o evento guerra, de acordo com a doutrina
especializada, consiste em um conflito entre Estados, e não de um Estado contra
determinado grupo ou ideologia. Tal pensamento subverte a ciência política,
particularizando os conflitos, ou acaba por ser uma justificativa de alguns governantes
para utilizar o poderio bélico do Estado de acordo com suas próprias necessidades.
A pena de morte no Brasil só pode ser utilizada em caso de guerra
declarada, conforme estabelece o artigo 84, inciso XIX combinado com o artigo 5º inciso
XLII alínea "a", ambos dispositivos de nossa carta política. Desta forma,
partindo da premissa que estamos em tempos de paz, a pena capital não pode ser utilizada
em nosso país. Nenhuma norma infraconstitucional tem o poder de tornar válida tal
prática, sequer uma emenda constitucional pode dar validade ao instituto, isto porque a
proibição como já dissemos, é uma norma de pedra.
O Decreto 5.144/04 ao admitir a hipótese, de que um piloto da Força
Aérea Brasileira irá alvejar uma aeronave em vôo, estabelece que a morte dos
tripulantes e eventuais passageiros é uma possibilidade concreta e praticamente
inevitável.
Outro vértice a ser estudado, consiste na verificação dos resultados
obtidos com a vigência do Decreto 5.144/04, que até agora são promissores. Segundo o
noticiado pela imprensa o Ministério da Defesa embora não tenha divulgado números,
informou que houve uma redução de cerca de 40% nos chamados vôos clandestinos, ou seja,
sem a necessária identificação e controle dos órgãos competentes. Desta forma
observa-se que o remédio utilizado pelo governo brasileiro é ineficiente, pois não teve
o condão de dissuadir aqueles que cometem infrações administrativas e penais do ponto
de vista do Código Brasileiro de Aeronáutica.
Os motivos desta verdadeira falta de credibilidade em controle
eficiente de nosso espaço aéreo se devem a alguns motivos já conhecidos, como por
exemplo, as dimensões continentais de nosso território, a carência de aeronaves, a
falta de adestramento contínuo de nossos pilotos, embora se deva reconhecer a ocorrência
de investimento no setor de defesa, muito há que fazer e investir para uma força aérea
com a eficiência desejada.
Não devemos aquiescer com práticas que denotem a ilegalidade ou
imoralidade, é evidente que não se justifica utilizar o espaço aéreo para servirem ao
interesse de alguns poucos para a pratica de
ilícitos, mas por outro lado o casuísmo de tempos difíceis e a necessidade de dar
pronto combate ao tráfico de entorpecentes, bem como qualquer outra modalidade de ato
ilícito, não pode dar azo ao desrespeito a nossa norma estrutural que é a
Constituição Federal.
Incumbe ao poder público dar efetividade aos dispositivos contidos em
nosso Código Brasileiro de Aeronáutico, mas respeitados todos os dispositivos e
princípios contidos em nossa Lei Maior.
------------
Notas
1. Referência ao dia 11 de setembro de 2001,
quando 4 aeronaves de transporte aéreo regular foram tomadas por integrantes do grupo
terrorista Al Qaeda.
2. De acordo com a revista militarypower.
3. As aeronaves civis matriculadas no Brasil estão registradas no
Registro Aeronáutico Brasileiro R.A.B.
4. Freqüência de ondas de rádio, cuja grandeza é medida em Hertz.
5. Hildebrando Accioly, Direito Internacional Público 9a ed. 1970,
pág. 246.
Referencias
ACCIOLY, Hidelbrando Direito Internacional Público, 9a
edição Editora Saraiva São Paulo 1970.
Centro de Comunicação Social da Aeronáutica, acessado em
http://www.reservaer.com.br/legislacao/leidoabate/entenda- leidoabate.htm, em 01/01/2005.
DA SILVA, Jose Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. Editora Malheiros, São
Paulo, 9a Ed. Rev. 3a tiragem, 1993.
DE FREITAS PEDRO, Fábio Anderson - Aspectos Gerais Sobre o Conceito de
Soberania, Revista Justilex, ano III, número 35 novembro de 2004.
LIMA, Fernando Inconstitucionalidade da Lei do Abate, acessado
em http://www.profpito.com/inabat.html em 01/ 01/2005.
The 9/11 Commission Report "Final Report of the National
Commission on terrorist attacks upon the United States.
Projeto SIVAM - Os olhos da floresta, acessado em http:/
/www.militarypower.com.br/frame4-opin8.htm, em 09/01/ 2005.
(Volta ao Sumário)
| Associação Brasileira de Direito
Aeronáutico e Espacial |
|