Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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O Dano Moral e o Transporte Aéreo

Décio Antônio Erpen
Desembargador do TJ – RS
Professor de Direito da PUC- RS

"Mesmo na ocasião em que a pessoa tivesse sofrido as mais atrozes maldades, na ocasião de um direito deformado por circunstâncias políticas, econômicas ou racionais, não obstante tudo, permanece categórica, absoluta e insuprimível a exigência da racionalidade do direito, porque é a única garantia prática para a humanidade."(Antonio Meneghetti).

 

1. Introdução

Tive oportunidade de apreciar diversos pedidos de dano moral advindos do transporte aéreo, quer seja pelo extravio ou avarias de bagagem, quer pelo atraso do vôo, quer pela prática do chamado "overbooking".

Quando juiz do Tribunal de Alçada, integrei Câmara Cível especializada em transporte aéreo e transporte marítimo, o que obrigou seus membros a navegarem nessa área extremamente árida aos juizes que cuidam do cotidiano. Centenas de feitos em torno do transporte marítimo foram julgados e cuidavam da falta de mercadoria, em especial no transporte de fertilizantes a granel. Isso ensejou aos magistrados uma global visão do problema.

2. A eqüidade e a segurança jurídica

Sabe-se que os juizes se inspiram diariamente no princípio da eqüidade e como tal, procuram fazer incidir essa salutar fonte de direito na solução dos litígios. Nenhuma censura, no particular. Todavia, não se pode olvidar que a segurança jurídica é, igualmente, fonte de direito. Como tal, a lei, os tratados e convenções não podem ser ignorados pelo profissional do direito.

A vida em sociedade deve ser ordenada pela comunidade para se conseguir uma convivência harmônica. O sistema jurídico deve admoestar e orientar a liberdade social, no dizer do filósofo Antônio Meneghetti. Ele também diz que "cada povo, antes de discutir ou combater, quer a garantia da legalidade sobre os princípios pelos quais vive e morre.

A adaptação ao meio social ocorre através do comportamento. Vezes ele surge espontaneamente; outras vezes deve ser moldado. Aí a necessidade da norma que outorga a segurança jurídica. Ela, de regra, está representada na lei, em todos os seus patamares.

3. Paradoxo no dano moral brasileiro: "Agrida-me, por favor."

A existência da norma, se é verdade que molda o nosso comportamento, também, é verdade que exige a mesma conduta dos demais. O homem vai se envolvendo, cada vez mais, em várias esferas sociais, os chamados círculos sociais e eles é que exercem tais condicionamentos. Esses círculos se iniciam na família, adentrando na escola, nos clubes, etc. Sobrevêm a religião, a moral, a moda, a arte, o direito, a etiqueta. Todos moldam a pessoa e seus semelhantes, evitando que um agrida o outro. E se o fizer, prescreve a devida sanção.

O homem deixa de agredir o seu semelhante para evitar a reprimenda social, nos mais diversos círculos. De outro lado, defende-se para evitar seja vítima da ação anti-social de outrem. Foge-se à agressão.

Num feito em que julguei, onde deferi indenização a título de dano moral diante de injúria proferida através da imprensa, a vítima confidenciou a um amigo que almejava nova ofensa porque estava carecedora de recursos de ordem material.

Flagrei-me, então, de meu equívoco. No momento em que alguém diz:: "Agrida-me, por favor", é porque o instituto do dano e da reparação estão desvirtuados. O instituto não é funcional. A vítima chama a agressão para gerar uma loteria jurídica.

Este paradoxo no direito brasileiro faz-me pensar seriamente nos rumos jurisprudenciais adotados, o que está a acontecer ante ausência de lei específica, conspirando contra a segurança jurídica.

4. O transporte aéreo e o Cód. de Defesa do Consumidor.

Em se cuidando de transporte aéreo, há um regime legal específico. Inicio invocando a Constituição Federal, que no art.178 remete à lei ordinária, "a ordenação dos transportes aéreo, marítimo e terrestre;".

Já o art.175, parágrafo único, do mesmo diploma-maior diz:

"A Lei disporá sobre:

I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação e rescisão da concessão ou permissionário;

II – os direitos dos usuários;

ÌII – a política tarifária

IV - a obrigação de manter serviço adequado.

Com isso, e desde logo adianto, que o regime jurídico aplicável ao transporte aéreo, inclusive no tocante às tarifas e usuários, está regulado nas Convenções Internacionais, se internacional for , ou no Código Brasileiro de Aeronáutica, se doméstico, abrangendo o transporte de pessoas ou coisas, ou seja, de passageiros, suas bagagens, ou apenas o de mercadorias.

Nenhuma anomalia, nem mesmo frente ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor ( Lei 8.078/90) que prevê no art. 22 a obrigação de prestarem "serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos".

Por suposto, que tais serviços devem seguir as normas traçadas na lei e regulamentos específicos e que integram o contrato de concessão. Aí não há espaço para barganha ou intromissão das normas do consumidor porquanto há regramento específico, incluindo tarifas. Vige, no caso, o princípio da especialidade.

Em se tratando de transporte aéreo internacional, vigem a Convenção de Varsóvia, de l929, o Protocolo de Havia, de l955 e os Protocolos de Montreal, de l975, havendo as conhecidas limitações da responsabilidade do transportador. Contra essas, seguidamente, se insurgem alguns, entendendo que está se deferindo um privilégio odioso.

O STJ já decidiu que possível a cláusula limitante de responsabilidade, em se cuidando de transporte marítimo, não se tratando de contrato regido pelo CDC. ( Resp. 36.7060)

5. Da cláusula limitadora da responsabilidade.

Sustentam alguns que a cláusula limitadora de responsabilidade coloca em posição privilegiada as companhias transportadoras, sendo ela abusiva.

Não procede a queixa , "data venia".

Se, de um lado adotou-se a teoria da responsabilidade objetiva do transportador, de outro, para se manter o equilíbrio jurídico das partes no plano do direito material, consagrou-se a limitação da responsabilidade, sendo considerada nula a cláusula de desoneração da mesma.

Chegou a se argumentar que a limitação se dava em razão dos chamados "tempos heróicos", quando os riscos da navegação eram maiores e, hoje superados pela nova tecnologia.

Não é esse o argumento jurídico, mas, sim a procura do equilíbrio das partes contratantes, além de outro fundamento, de cunho político, de conveniência.

A inexistência de uma convenção internacional em torno do montante da indenização geraria um quadro diferenciado em cada país, com parâmetros diferenciados, aquinhoando ora mais as vítimas, onerando ora mais o transportador. Isso ensejaria a que as partes procurassem os Tribunais que mais pródigos se lhes parecessem. Os tratadistas no assunto como Luiz Tapia Salinas ( Curso de Derecho Aeronático, Bosch, Barcelona, ed. 1980 e Marcel le Goff ( Manuel de Droit Aérien, p.121) trazem tais sábias ponderações.

Poder-se-ia alegar, e isso tem servido de forte argumento das decisões que desconsideram o teto consagrado nas respectivas convenções, de que a vida humana tem valor mais elevado do que o previamente estimado e de forma generalizada. Todavia, olvidam tais decisões que as próprias convenções específicas trazem a solução para aqueles que pretendem valorar mais suas vidas, em promovendo um seguro de vida.

O que estavam defasados, sim, eram os valores. Todavia, os Protocolos de Montreal, assinados em l975, e incorporados ao sistema legal brasileiro em 7 de dezembro de l998, superaram o impasse. Sua incorporação ao sistema jurídico brasileiro, ocorreu através do Decreto presidencial nº 2.680, isso no caso de transporte entre Brasil e EUA, valor esse dobrado se forem incluídos outros países, quando prevalece o Protocolo nº2 de Montreal.

Passou-se a adotar, como referencial, em substituição aos "francos-ouro Poincaré", os DES – Direitos Especiais de Saque. Agora, no transporte de passageiros, no caso de morte, lesão corporal e/ou atraso de vôo, a indenização corresponderá a 8.300 DES.

Para o transporte de cargas, bagagens de mão e despachadas, o valor adotado é de l7 DES por quilograma despachado. No caso de bagagem de mão, o limite máximo é de 332 DES, tudo mediante comprovação do dano.

No tocante ao transporte de mercadoria, outrossim, considera-se como elemento-base para fixação da tarifa, tanto na Convenção de Varsóvia como no Protocolo de Montreal, o peso do volume. Ora, se o expedidor entender que seu conteúdo tem expressivo valor, muito além do que lhe seria pago em caso de extravio, pode promover uma declaração especial, contratando um seguro adicional ou taxa suplementar, como prevê expressamente a Convenção de Varsóvia, no seu art. XXII. O peso, pois deixa de ser o referencial, passando a ser o valor. Com isso, equilibra-se a posição das partes no plano do direito material.

Ademais, não se pode olvidar que em se cuidando de dolo, inexistem marcos limitadores de responsabilidade:

Diz o art. 25 da Convenção de Varsóvia:

"Os limites de responsabilidade previstos no art. 22 não se aplicam se for provado que o dano resulta de uma ação ou omissão do transportador, ou de seus prepostos, cometidas com a intenção de causar dano, ou temerariamente e com a consciência de que provavelmente causaria dano; com a condição de que, em caso de uma ação ou omissão de prepostos, seja igualmente provado que estes agiram no exercício de suas funções."

O art. 17 da Convenção de Varsóvia disciplina o transporte de passageiro e vincula o mesmo a acidente. Já o art. 18 cuida de transporte de mercadorias, quando ocorrer o dano.

6. As Convenções Internacionais, o Código Brasileiro de Aeronáutica e as normas de direito interno.

Na Ap. Cível 28.326,da 4ª Câmara Cível do extinto Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul ( in Julgados,44/331) proclamou-se que o Código Brasileiro de Aeronáutica não revogara a Convenção de Varsóvia, ao ponto de haver promovido uma ressalva no art. 1O :"O direito aéreo é regulado pelas convenções e Tratados que o Brasil tenha ratificado e pelo presente Código. Com isso, deu-se ao direito local um caráter subsidiário à norma internacional."

A jurisprudência tem se pacificado no sentido de que é válida a cláusula limitadora de responsabilidade. Isso se vê no Resp.36.706-SP, sendo Relator o eminente Ministro Sálvio de Figueiredo.

Já no Resp. nº58.736-0-MG, proclamou o STJ, sendo Relator o eminente Min. Eduardo Ribeiro que:

"Subsistência das normas constantes da Convenção de Varsóvia, sobre transporte aéreo, ainda que disponham diversamente do contido no Código de Defesa do Consumidor."

Há uma tendência moderna de se amenizar o conceito de soberania. A Comunidade Comum Européia é um exemplo edificante. O Brasil, igualmente, caminha para a universalização do Direito.

A chamada Reforma do Judiciário, prevê no texto já aprovado, em primeira votação, pela Câmara dos Deputados, o seguinte preceito inovador:

"Art. 5,LXXVIII –

§3O – Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais, condicionada à aplicação pela outra parte".

Sei que o texto se refere a "direitos humanos" e não diria respeito aos demais tratados e convenções. Todavia, cuida-se de um primeiro passo e de uma tendência a se harmonizarem os tratados internacionais com as normas de direito interno.

A discussão em torno das teorias monistas ou dualistas do direito, isso é, o cotejo entre o Direito Internacional e Direito Interno, toma importância, quer pela interação social cada vez maior, quer pela globalização. Ademais, a existência de Tribunais Internacionais e agora de Cortes de blocos regionais, está a demonstrar que não é conveniente a adoção (ou manutenção) de normas de direito interno que contrariem as Convenções ou Tratados Internacionais. Se é verdade que o juiz pode fazer valer a soberania, fazendo prevalecer a norma interna, e o faz porque exerce um ato de jurisdição, ( de soberania interna), também é verdade que o país infrator de um compromisso internacional é obrigado a indenizar pessoas de outro , o que ocorre através do instituto da responsabilidade, de regra, pela via diplomática.

7. Os inconvenientes do conflito de normas internacionais e internas.

Isso pode ocorrer, v.g. se for compelida uma companhia aérea internacional a indenizar por dano material ou moral, acima do que foi estatuído pela Convenção de Varsóvia ou pelo Pacto de Haia. A companhia seria reembolsada por outra via, que não a judicial, mas geraria um quadro extremamente injusto e competidor para as companhias nacionais concorrentes: as estrangeiras teriam mais direito do que as nacionais.

O jurista deve estar atento a tal circunstância assaz importante, pena de inviabilizar a navegação das empresas nacionais, permitindo, com isso que as estrangeiras venham a tomar conta do mercado.

O dano moral por extravio de bagagem não é previsto, nem na Convenção de Varsóvia, nem no Código Brasileiro de Aeronáutica, que são específicas em torno do transporte de passageiros e coisas, não vendo espaço para aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

Ademais, montante de volumes transportados é tanto, e as notícias de seus extravios são tão divulgadas, que o evento passou a ser previsível. O passageiro deve, pois se acautelar para um dano mínimo , ou promover uma declaração suplementar "ad valorem", pagando uma taxa adicional. Com isso, não se gerará caso de enriquecimento indevido, ou seja, para pagar o transporte a bagagem tem pouco valor, prevalecendo o elemento peso; para haver a indenização, pretende-se o preço de ouro. Com tal iniquidade não pode o direito conviver.

8. Particularidades de alguns danos no transporte aéreo.

Somente possível a compreensão do "overbooking", se tivermos uma visão ampla do transporte aéreo e que é diferenciado dos demais. No transporte terrestre de passageiros , o não-comparecimento na hora e local avençados, importa na não ocupação do assento, mas sem o direito de reembolso em prol do faltoso. No aéreo isso inocorre.

O não-comparecimento do passageiro, na figura denominada no cotidiano da área "no show", dá-lhe o direito de marcar nova oportunidade, com o pagamento de pequena taxa adicional a título de custo operacional.

Se analisadas as estatísticas nacionais e mundiais, ver-se-á que nenhuma companhia aérea suportaria a ociosidade das aeronaves, se persistir o "overbookig" de forma unilateral, ou seja, o passageiro, que a seu critério , razoável ou não , deixar de comparecer, não terá nenhuma pena pecuniária, suportando o transportador, exclusivamente o "no show". Sei que uma única companhia aérea nacional teve uma cifra superior a dois milhões de passageiros que deixaram de comparecer na data e local aprazados e seu bilhete não foi invalidado. Viajaram segundo sua conveniência.

Isso obrigou os transportadores a trabalharem em cima de estatísticas, dando maior ou menor elasticidade às sobre-vendas que fizerem, evitando, assim, sua ruína. Isso não quer dizer que estar-se-ia consagrando o abuso ou a imprevidência. Os casos de irresponsabilidade ou de abusos devem ser coibidos.

Sei que não se pode comprometer a vida do cidadão que programa sua vida, suas viagens, e se vê colhido diante de tal infortúnio. Todos nós já fomos vítimas de tal circunstância e devemos tentar impedir que o direito consagre a irresponsabilidade. As companhias devem se ajustar e sabe-se que há portarias ministeriais tentando disciplinar essa área, o que se fez a contento.

O que não consigo é divisar o chamado "dano moral" porque não vejo ofensa à intimidade, à honra ou à imagem da pessoa. Flagro, sim, aborrecimentos. Grandes, muitas vezes.

As transportadoras estariam obviando a questão, fazendo o embarque no primeiro vôo, o que seria um avanço. Por isso é que se recomenda a confirmação do embarque para previsão do número exato de passageiros.

Sei que a presente tese se apresenta antipática porque contraria interesses da maioria, em benefício de poucos. Todavia, devo fugir do sentimentalismo, tendo orientado meus votos no sentido de que o dano moral não foi instituído para "ressarcir aborrecimentos ou contratempos". Para tanto, não há remédio. A medicina não assegura a imortalidade. As. vicissitudes da vida são integrantes dela. Num julgado, expressei que num acidente de automóvel com danos materiais, deferimos indenização somente a esse título. Todavia, se confrontada a situação de um "oberbooking" com um abalroamento de veículos, veremos que este último acarreta maiores incômodos e aborrecimentos que aquele.

9. Posição crítica do transportador por falta de parâmetros na indenização por dano moral.

Não há previsão legal embasadora do dano moral para o chamado ilícito relativo, ou seja, a inadimplência ou a infração contratual. Pode haver a multa contratual pré-fixada, mas com limitações legais, ou seja, 10% no máximo. O atraso no aluguel ou na prestação não enseja o chamado dano moral ou extrapatrimonial, ainda que possa causar grandes aborrecimentos.

A falta de parâmetros legais estabelecendo a indenização por dano moral gera um estado de perplexidade para o dano moral, isso porque nenhuma seguradora assumirá riscos cujos valores são imprevisíveis. Não há possibilidade de cálculos atuariais, o que ocorre noutras atividades, também, em especial junto aos profissionais liberais. Isso conspira contra um dos valores supremos do direito, a segurança jurídica.

10. Conclusão

Tenho que o dano moral deve sofrer os temperos da lei, para se evitarem pedidos abusivos ou julgamentos por sentimentalismos ou arroubos, ou casos em que se tenta tirar proveito da situação para o ganho fácil. Loteria jurídico-aérea, sem dúvida, com os conhecidos inconvenientes.

O filósofo italiano Antônio Meneghetti diz que:

"É necessária uma transcendência para requalificar a nossa posição mental sobre a contemplação da ordem maravilhosa da natureza, do primado da inteligência do homem, que se constitui responsável primário deste planeta, para chegar depois àquele algo sábio depositado no próprio fato que nós existimos como homens jurídicos." (Sistema e Personalidade. 2ª ed. Editrice, Roma,l960) .

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