Revista Brasileira de Direito Aeroespacial
A Guerra Clássica, a Guerra Tecnológica
As controvérsias internacionais podem ser resolvidas por soluções pacíficas (políticas ou jurídicas), soluções coercitivas ou por uma solução violenta , a guerra. Em tese, esta somente deve ocorrer após àquelas, isto é, depois de negociações diplomáticas, consultas, mediação, conciliação ou recurso a meios arbitrais e judiciais, além da ruptura de relações diplomáticas e da ação da ONU com ou sem utilização de forças armadas (artigos 41 e 42 da Carta de S. Francisco).
Tudo isso entra dentro do contexto de um moderno Direito Internacional de Coexistência, que condena retorsões e represálias, mas admite a legítima defesa com base em tratados e negociações internacionais. É o que vemos, por exemplo, no Tratado de Moscou/63, sobre proibição de testes nucleares no espaço aéreo, no espaço exterior e no mar; nos tratados sobre Espaço Exterior/67, 68, 72 e 79; no Tratado do México/67, sobre proscrição de arma nucleares, no TNP/68 (Tratado de Viena sobre não - proliferação de armas nucleares); nas Conversações SALT I E II, complementadas pelo Tratado START/82, sobre limitação e redução de armas estratégicas, entre outros, além do trabalho da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) das Nações Unidas.
Segundo o Direito Internacional, a guerra tem um elemento objetivo ( a luta armada) e um elemento subjetivo (a intenção de fazer a guerra), que, juntos, criam o estado de guerra, que para ser dirimido, exige determinadas normas jurídicas específicas. Essa solução pode parecer paradoxal, à primeira vista, mas vale lembrar que o Direito Internacional foi, originariamente, um Direito da Guerra, pois as relações interestatais eram de natureza exclusivamente militar, sendo hoje, também, de caráter econômico, político e social. Daí se justificar a criação de normas legais sobre a guerra e a revisão de regras ultrapassadas, tanto em termos de um relacionamento Estado - Estado, como através de organizações internacionais como a ONU e de seus organismos regionais, como a OTAN, nos dias atuais e, até há pouco tempo, a OTASE e o Pacto de Varsóvia.
É por isso que o Direito Internacional admite um Direito de Guerra (Jus in Bello), a quem compete criar e rever normas jurídicas sobre a temática, com base em tratados, costumes e princípios gerais do Direito, cujo pressuposto é o Direito à Guerra (Jus ad Bellum), isto é, o direito de recorrer às armas para satisfazer interesses nacionais legítimos. Com o advento da ONU, teoricamente, somente ela tem legitimidade de efetivar levantes armados, conforme autorização de seu Conselho de segurança, ficando reservado aos Estados - também teoricamente - o direito à legítima defesa, tanto individual, como coletiva, até que o Conselho de Segurança tome as medidas necessárias à recuperação e manutenção da paz e da segurança internacionais.
Na Idade Média, com base no Direito Natural, distinguia-se Guerra Justa de Guerra Injusta, estando a primeira virtualmente ligada a problemas religiosos, propalando Maquiavel que , sendo necessária, a guerra sempre seria justa... Para quem? Quando? Como? Tal "maquiavélica" assertiva parece ter angariado adeptos, a exemplo da experiência vietnamita, da Guerra do Golfo e, mais recentemente, do Conflito da Iugoslávia. Para Kelsen, a guerra somente seria justa quando houvesse violação ao Direito Positivo (Consuetudinário e Convencional), abrandando, pois, o Direito Natural. Com a Carta da ONU (Direito Convencional) somente a guerra defensiva (legítima defesa) foi considerada justa. Tivemos, no entanto, a lamentável oportunidade de viver duas impressionantes guerras totais, a I e a II Guerras Mundiais, convivendo, depois, com a Guerra Fria e com Guerras Localizadas, sob a terrível ameaça das não menos terríveis armas nucleares e armas bacteriológicas.
O clássico Direito internacional analisou, separadamente, a guerra terrestre, a marítima e a aérea, existindo diversas normas jurídicas a respeito, como as Haia e de Genebra. A guerra dita terrestre sempre exigiu total respeito às populações civis, a não - beligerantes e monumentos históricos, escolas, hospitais e igrejas. Na guerra marítima os navios de guerra apreendidos podiam ser confiscados e destruídos, os navios mercantes podiam ser capturados, os cabos submarinos podiam ser destruídos e os navios hospitais deviam ser respeitados. A guerra aérea proibia bombardeios que não tivessem objetivos militares, sendo que monumentos, propriedades privadas, populações civis, escolas, hospitais e templos deviam ser poupados. No recente Conflito da Iugoslávia - caracterizado por ataques aéreos - como se viu, tais princípios foram simplesmente ignorados.
O problema agravou-se com o advento das armas nucleares (bomba atômica, bomba de hidrogênio, bomba de cobalto e bomba de neutrons), principalmente, a partir de 1945 (Hiroxima e Nagasaque), com cerca de trezentos mil mortos, além de feridos, doentes, desaparecidos, desabrigados e famintos. A primeira bomba de hidrogênio provocou profunda devastação telúrica, a que se seguiram outras experiências subterrâneas, ocasionando danos ainda maiores. Todos esses fatos contrariaram a Conferência de Haia, do século passado, o Protocolo de Genebra, de 1925, sobre guerra química e bacteriológica, a Carta da ONU, de 1945 e o Tratado de Moscou/63 sobre testes nucleares. Internacionalistas como Oppenheim, Lauterpacht e Guggenheim admitiram a legalidade da guerra nuclear, em face, talvez, da ausência de uma ilegalidade formal específica, o que hoje não ocorre, pois, com o estabelecimento da AIEA, cuidou-se da utilização da energia atômica para fins exclusivamente pacíficos.
Em meio a toda essa problemática, mandos e desmandos, merecem destaque as Convenções de Genebra/49, complementadas pelos Protocolos Adicionais/77, sobre prisioneiros de guerra, feridos, enfermos, náufragos e populações civis, criando um Direito Internacional Humanitário. O artigo 3º daquelas Convenções sintetiza sua filosofia e seus objetivos, ao enfatizar que populações civis, feridos e doentes deverão ser poupados pelas partes litigantes, sem prejuízo de sua nacionalidade, sexo e religião, proibida a detenção de reféns e condenações e execuções sem julgamento prévio por tribunais competentes.
Em seu estilo especialíssimo, teilhard de Chardin cogitou de um Ponto-Ômega para o qual necessariamente convergiriam todas as pessoas e todas as coisas, num mesmo Fato - Momento. Trasladado esse raciocínio ao plano das conturbadas relações internacionais, como poderia ser caracterizado esse fato - Momento, em termos bélicos ou em termos pacíficos? Por outras palavras, será o Ponto - Ômega a Guerra ou a Paz? A Guerra Clássica, supra sintetizada, contribuiu muito pouco para a Paz e a Guerra tecnológica, que ela própria propiciou, ainda está muito longe de contribuir para efetivação de uma Paz duradoura, como o demonstraram a Guerra do Golfo e a Guerra da Iugoslávia. Comparando ambas as espécies bélicas, temos os seguintes aspectos básicos:
1 - A Guerra Clássica, com base no Jus ad Bellum e no Jus in Bello, fundamentava-se nos princípios de necessidade e humanidade, através da ação direta do Estado, enquanto, hoje, com a ONU, o Estado cedeu lugar à Organização seu papel fundamental de agente internacional bélico, haja vista o disposto nos artigos 41, 42, 43 e 45 da Carta de S. Francisco. Daí redundou um Direito de Ingerência, que determinou um Dever de Ingerência (Ingerência Humanitária), não previsto expressamente na Carta, mas, que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) decidiu, no affaire EUA x Nicarágua, recentemente, não construir intervenção, totalmente proibida pela citada Carta.
Ao positivo Direito Internacional Humanitário, da Guerra Clássica, opôs-se, portanto, o negativo Direito (Dever) de Ingerência, com o nihil obstat da própria ONU, como se denota em 1981, quando a Jordânia propôs à Assembléia Geral da Entidade uma "nova ordem humanitária interna"; em 1988, com a Resolução da mesma Assembléia Geral sobre assistência humanitária a vitimas de catástrofes naturais; em 1990, com outra resolução da citada Assembléia, sobre corredores de urgências humanitárias; e, em 1991, com a declaração "Nova Ordem Internacional Humanitária", também, da Assembléia Geral das Nações Unidas.
Esse Direito (Dever) de Ingerência, que o Pentágono já tentou aplicar à Pan-Amazônia (com a desculpa de que seus nacionais são incompetentes para protegê-la) foi utilizada, na Guerra da Iugoslávia, pelos EUA, através da OTAN, sem a audiência do Conselho de Segurança da ONU. Houve flagrante desrespeito ao I Protocolo de Genebra/77 (arts. 51, 5, a; 52,2; b; 57 e 58) quanto ao atingimento generalizado de populações civis principalmente, no período de Abril a Junho/99, de que são exemplos o bombardeio sobre zona residencial ao Sul de Belgrado; o ataque contra central telefônica de Pristina; bombardeio de ponte ferroviária ao Sul da Sérvia; idem, de comboio de refugiados ao sudoeste de Kosovo; idem, sobre quarteirão residencial de Surdulice; idem, sobre central hospitalar de Belgrado; morte de refugiados Kosovares; bombardeio sobre presídios e sanatórios, etc. A proteção dos direitos humanos servia, sempre, de desculpa e tais massacres, que incidiam sobre a maioria albanesa em Kosovo (onde a existência de nióbio é um fato comprovado), ocasionando mortes em larga escala e um verdadeiro caos humano (refugiados e pessoas dispersas) sem a possibilidade de efetivação do acesso de organização de ajuda humanitária, em plena Europa, numa Iugoslávia dividida em seis repúblicas compostas por oito nacionalidades e divididas por rivalidades nacionalistas internas.
2 - Na Guerra Clássica sobressaiam dois aspectos básicos, o da declaração de guerra e o da neutralidade, o que não ocorre na Guerra Tecnológica (Guerra da Internet, Guerra da Informação ou Guerra Virtual, na expressão de Alvin Toffler), que se caracteriza por uma ação global e pela não neutralidade.
É assim que, na Guerra Clássica, a guerra começava por uma declaração de guerra, que levava à mobilização das forças armadas dos beligerantes, à ruptura de relações diplomáticas, à proibição de reações comerciais e ao confisco de bens, até à cessação das hostilidades, através de um Tratado de Paz, graças à ação de parlamentários e da utilização de salvo-condutos e de salvaguardas, através de um armistício, após uma guerra terrestre marítima ou aérea, onde o bombardeio contra objetivos militares constituíam meios lícitos, legais e legítimos, com tal condenação de bombardeios a populações civis. A tudo isso seguia-se o instituto da neutralidade (terrestre, marítima e aérea), em termos de abstenção e de imparcialidade, com as conseqüentes proibições de passagem terrestre de tropas, de violação de água territoriais e do espaço aéreo.
Na Guerra Tecnológica, ao contrário, há, em primeiro lugar, uma ação global da própria ONU, através de um de seus organismos regionais, no caso da Iugoslávia, a OTAN, quando esta completava cinqüenta anos, sem audiência do Conselho de Segurança da Organização, cujas resoluções 1160/98,1199/98 e 1203/98 jamais autorizaram o ataque brutal a uma região tumultuada por tradicionais conflitos intestinos (sérvios, croatas muçulmanos, eslovênios, albaneses, macedônios, montenegrinos e húngaros). Paralelamente, temos que, hoje, o instituto da neutralidade foi abandado, dando lugar a uma não neutralidade, em face dos atos constitutivos dos organismos regionais da ONU (OTAN, OEA, Pacto de Varsóvia, OTASE, liga dos estados Árabes), que dispõem, expressamente, que o ataque armado a um de seus membros importa em ataque aos demais membros do mesmo Grupo. Logo, ao lado de uma ação global, temos, também, uma reação global, de resultados imprevisíveis principalmente, quando há na região conflagrada interesses econômico - político - estratégicos, como ocorreu (e ocorre) em Kosovo (nióbio), o que ensejou embargos e outras sanções econômicas, manobras aéreas, bombardeios, criação de forças de paz, entre outras medidas do gênero, sob a desculpa elegante de proteção de direitos humanos.
3 - A Guerra Clássica conviveu, durante muito tempo, com guerras localizadas, a exemplo da Indonésia/47, Cachemira/47, Coreia/50, Congo/60, Chipre/60, Oriente Médio/67, inter alia onde houve um fato comum, o da audiência do Conselho de segurança, que autorizou a remessa de forças armadas e ordenou um cessar-fogo objetivo, embora, nem sempre, vitorioso. No Conflito Iraque x Kuwait (Guerra do Golfo/90) houve mais de uma dezena de Resoluções do Conselho de Segurança, sem um veto sequer (graças à dominante posição dos EUA) quanto à retirada imediata de tropas iraquianas, bloqueio comercial, nulidade de anexação do Kuwait, retirada de reféns, uso de "força mínima", embargo aéreo etc. Na Guerra da Iugoslávia, porém, o bombardeio aéreo da OTAN não foi autorizado pelo Conselho de Segurança, que mais de uma vez, determinou sanções meramente econômicas e apoiou uma assistência humanitária (Resoluções 1160, 1190 e 1203, todas, de 1998), não determinando, porém - implícita ou explicitamente - ou uso da força.
A ilegalidade dos ataques aéreos da OTAN não está, apenas, na ausência de autorização do Conselho de segurança da ONU, mas, também, no fato de que contrariam, aqueles ataques, o disposto na Carta da própria OTAN e de que não significam autodefesa (Legitima defesa) prevista no art. 51 da Carta da Nações Unidas, além de que constituem ameaças e uso de força, o que contraria o disposto no art. 2,4 da Carta da ONU, cujo caráter é comprovadamente de Jus Cogens. A OTAN alegou ingerência humanitária para justificar o bombardeio da Iugoslávia, mas o Direito Internacional não autoriza a ingerência (intervenção) humanitária quanto à ameaça ou uso da força. Logo, a atitude da OTAN (que é organismo regional da ONU), ignorando o Conselho de segurança da Entidade (onde haveria veto da Rússia e da China) é irremediavelmente ilegal, ilícita, ilegítima para todos os fins de Direito.
A Guerra Tecnológica (Virtual) depende, na prática, da informação, da contra-informação, da desinformação e da dissimulação estratégica. Informação, no tocante à obtenção de conhecimentos quanto ao potencial dos oponentes. Contra-informação, enquanto meio de detecção de planos e ações advindos do exterior. Desinformação, com difusão de notícias não confirmadas (manipulação planejada). E dissimulação estratégica, quanto a criação de uma realidade virtual, aposta à realidade "real" ou potencial. A OTAN lançou mão de tudo isso para conquistar a opinião pública, manipulando-a na direção desejada, através da mídia e de políticas e estratégicas próprias flexíveis e relativamente transparente, evitando uma guerra terrestre, onde certamente, não obteria vitória. Tal comando estratégico fez-se presente, também, na instituição de uma força internacional de manutenção da Paz e na proverbial reconstrução física da área devastada, devidamente administrada pela forças vitoriosas (EUA, Reino Unido, França, Itália e Alemanha), proporcionando uma certa divisão interna da União Européia e afastando deliberadamente, a Rússia, do contexto geo-político do pós-guerra.
Alvin Toffler destaca na Guerra Tecnológica (ao contrário da Guerra Clássica), seus aspectos econômico e tecnológico, com base na informação (e na contra-informação, desinformação e dissimulação), enquanto poderosa arma de destruição criada e mantida pela mídia, onde sobressai a televisão, por sua onipresente ação, encenação e lógica visual. Começa a esboçar-se, porém, na esfera mundial, uma reação à Guerra Tecnológica, a exemplo da recente reunião da UNESCO, em Viena, que discutiu os meios de evitar a Guerra através da televisão, com fundamento nos ensinamentos de Suan Su, de que melhor guerra é a que é (e pode ser) evitada. Resta esperar que a jurisdição supranacional do recém criado Tribunal Penal Internacional, ao entrar em vigor, não repita o erro formal do Tribunal de Nuremberg/45, que possibilitou o julgamento de vencidos pelos vencedores, mas, ao contrário, condene os crimes de guerra praticados, não apenas pelos indivíduos, mas, também, pelos responsáveis pelos atos ilegais, ilícitos e ilegítimos praticados pelos organismos regionais da Organização das Nações Unidas criados para manter a paz e a segurança internacionais.