Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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Convenção de Montreal
Derradeira Esperança para o Transporte Aéreo Internacional

Alessandra Arrojado Lisbôa de Andrade
Formada pela UFMG, é mestre em Direito pela McGill University
(Institute of Air and Space Law) e especializada em gerência da aviação civil
pelo International Aviation Management Training Institute (Montreal).

I – Introdução

A todos aqueles que tiveram o privilégio de participar, em foro da Organização de Aviação Civil Internacional (OACI) e alhures, dos históricos debates e deliberações que precederam e, a bem dizer, culminaram, em 28 de Maio de 1999, na adoção da Convenção para a Unificação de Certas Regras para o Transporte Aéreo Internacional ("Convenção de Montreal") pela Conferência Internacional de Direito Aeronáutico, não passou despercebido o entusiasmo sem precedentes com que se brindara a atmosfera de exemplar cooperação, revelando-se fascínio irresistível e impressionante estímulo ao espírito de conciliação em que transcorreram, com sucesso, as referidas negociações.

Uma vez manifesta a irrefragável necessidade da coordenação de esforços para a expedita modernização do Sistema de Varsóvia, em um contexto já caracterizado, ao longo dos últimos anos, por tendências isoladas e tantas vezes inconvenientes, que vieram apenas contribuir ao emaranhamento inextricável e complicado deste complexo conjunto de protocolos de emendas e instrumentos conexos, fez-se mister adaptar as evoluções tecnológicas, sócio-econômicas e sobretudo comerciais da aviação civil à atual percepção das relações inter-partes do contrato de transporte aéreo internacional.

Em se perquerindo, mais uma vez, setenta anos depois, a verdadeira unificação do direito internacional privado em matéria de transporte aéreo, fulgurou-se, rapidamente, que a harmonização não mais comporta idealismos, conceitos utópicos e realidades, ainda que desejáveis, demasiado ambiciosas em seus anseios de perfeição. E no abandono da utopia, a comunidade internacional, sob os auspícios da OACI, surpreendeu-se diante da absoluta impossibilidade de se atender indistintamente e em sua totalidade às diversas expectativas e tendências contraditórias propugnadas pelos usuários, transportadores, Estados e indústria de transporte aéreo.

E assim, reafirmando a conveniência de proporcionar o desenvolvimento seguro e ordenado da aviação comercial em conformidade com os princípios e objetivos dispostos no Convênio de Chicago de 1944, bem como a garantia primordial dos interesses de seus usuários, o mundo conscientizou-se de que a indispensável uniformização de alcance global concretizar-se-ía, única e exclusivamente, com base em sólido e irrefutável realismo, mediante a codificação em um instrumento único, equitativo de interesses e passível de ratificação, daqueles princípios e regras já familiares por consolidados pela jurisprudência ou absolutamente modernizadores em sua inovação, desde que considerados, pela amplitude de sua aceitação universal, representativos da comunidade contemporânea.

Neste contexto, racionalizando as referidas aspirações e trasladando a novas dimensões o regime de responsabilidade aplicável ao transportador aéreo internacional, se nos apresenta a Convenção de Montreal, cujo processo de formação e conseguintes aspectos substanciais cumpre-nos, ora, analisar com precisão de detalhes naquilo em que constituem verdadeiras inovações.

II- Da Conferência Diplomática

Realizada sob os auspícios da OACI, em Montreal, no período de 10 a 28 de Maio de 1999, com o escopo de considerar, pendente da sua aprovação, o texto do Projeto de Convenção (1) aprovado pela 30a. Sessão do Comitê Jurídico, refinado pelo Grupo Especial para a Modernização e Consolidação do Sistema de Varsóvia e objeto de revisão durante a 32a. Assembléia-Geral, a Conferência Internacional de Direito Aeronáutico ("Conferência Diplomática") foi convocada por decisão do Conselho, em sua 154a. Sessão, em 3 de Julho de 1998.

Digno de nota, o procedimento para a aprovação de Projetos de Convenção encontra-se, hoje, consubstanciado na Resolução da Assembléia A7-6 de 1953 (Doc. 7669 – CL/139/5), acrescentando-se-lhe, no caso ora em análise, as Regras de Procedimento adotadas pela Conferência. Referência seja feita ao DCW DOC n. 2 (9/1/88), responsável por estabelecer, dentre outras, regras relativas à sua constituição, criação de comissões, comitês e grupos de trabalho, métodos de votação, quorum e idiomas.

Contando com 544 representantes de 121 Estados-contratantes, um Estado não-contratante (Santa-Sé) e 11 Organizações Internacionais (2), a Conferência elegeu Presidente, por aclamação, o Dr. Kenneth Rattray, Procurador-geral da Jamaica, que com a precisão e clareza que lhe são peculiares, conduziu, decisivamente e com muita propriedade, as discussões.

E no decorrer de suas atividades, de acordo com suas prerrogativas, a Conferência houve por bem estabelecer uma Comissão Plenária, bem como três grupos subsidiários para auxiliá-la em seus trabalhos e facilitar as suas deliberações, presididos, respectivamente, pelos senhores S. Ahmad (Paquistão), A. Jones (Reino Unido) e K. Rattray, e quais sejam, os Comitês de Credenciais e Redação (3), e o sugestivamente denominado Grupo de Amigos do Presidente (4), a limitada composição do qual, na estrita observância dos princípios da eqüitativa distribuição geográfica, representação apropriada de diferentes sistemas jurídicos e consistência entre a pluralidade de idiomas, pareceu refletir, não restam dúvidas das coincidências circunstanciais, a participação das mais atuantes e bem preparadas delegações, bem como dos Estados de insofismável influência nos poderes de decisão

Ora, a par desta pretensa aferição, assevera-se que, se por um lado se constituíam, como de praxe, responsabilidades do Comitê de Redação todos os esclarecimentos de caráter lingüístico e editorial, ao Grupo de Amigos do Presidente se reservou a discussão dos aspectos de natureza substancial com o objetivo de elaborar sugestões conciliatórias aos muitos impasses decorrentes dos variados entendimentos dos mais diversos sistemas jurídicos, motivo pelo qual não é difícil visualizar o quorum de membros oficiais destas reuniões incrementado pelo grande número de atentos observadores interessados em acompanhar, ainda que de pé, as suas deliberações e reportá-las antecipadamente às respectivas delegações, a tempo de maiores reflexões e acordos pelos corredores.

Com efeito, os esforços meritórios fizeram-se sentir na excelência das negociações que, em sua maior parte conduzidas através da apreciação de "pacotes" e a adoção conjunta de seus elementos, permitiram se chegasse a um consenso sobre pontos de maior relevância, quais sejam: a) o regime de responsabilidade por morte e lesão ao passageiro; b) a forma e extensão dos danos indenizáveis; e c) a quinta jurisdição. Por conseguinte, diante do assentimento unânime, e evitando-se, por desnecessária, a manifestação da superioridade numérica na aplicação do sistema de voto (maioria de dois-terços), foi possível proceder-se à adoção, por consenso, do texto da nova convenção.

Lavradas em árabe, espanhol, francês, inglês, russo e chinês, as versões autênticas Convenção de Montreal apresentam todas elas igual valor e, como evidência documental da sua autenticidade, foram submetidas à assinatura dos Plenipotenciários presentes e devidamente autorizados, após a apreciação de suas credenciais pelo Comitê responsável (5). Vale ressaltar, diante da manifesta desinformação geral, causa evidente da preclusão de um maior número de assinaturas, que o ato da assinatura não constituiu per se obrigação jurídica para o Estado concernente, mas mera expressão do "animus" de se assumir, posteriormente, um vínculo de consentimento definitivo através da ratificação que, por sua vez, comporta um processo deveras mais longo, de acordo com cada sistema constitucional.

Segundo o disposto em seu artigo 53, parágrafo 3o., a Convenção de Montreal deverá ser submetida à ratificação dos Estados e Organizações Regionais de Integração Econômica que a assinarem, devendo o instrumento de ratificação ser depositado junto à OACI. A título de curiosidade, até o presente momento, já conta com 56 assinaturas apostas e a sua primeira ratificação (Belize). Sua entrada em vigor se dará no sexagésimo dia a contar do depósito do trigésimo instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão.

III- Da Convenção de Montreal e seus Elementos Fundamentais: Inovações

Após estas primícias, e antes de tentar escandir as inúmeras relevantes indagações que cercam o tema da Convenção de Montreal, cumpre salientar que o cotejo do complexo Sistema de Varsóvia com seus dispositivos fundamentais permite-nos demonstrar, sem sombra de dúvidas, que o novo instrumento conseguiu, com sucesso, consolidar todos aqueles elementos substanciais, universalmente aceitos pela comunidade internacional, até então distribuídos de maneira esparsa entre os preceitos da Convenção de Varsóvia, Protocolo de Haia, Convenção de Guadalajara e Protocolo de Montreal n.4, como também nos "IATA Intercarrier Agreements" (IIA e MIA) de 1995 e1996.

Sendo assim, com supedâneo em entendimento jurisprudencial já antigo, a Convenção de Montreal houve por bem incorporar em seu texto, esclarecendo o âmbito de sua aplicação, o transporte gratuito efetuado em aeronave por empresa de transporte aéreo, além do transporte aéreo internacional de passageiros, bagagem e carga mediante remuneração.

A significativa expressão "transporte aéreo internacional" que, por si só, vem a definir a extensão mesma da convenção, não sofreu modificações, de sorte que se considera internacional, de acordo com o estipulado entre as partes, o transporte efetuado entre o território de dois Estados-partes ou uma "viagem redonda" a partir do território de um Estado-parte, desde que prevista escala no território de qualquer outro Estado.

    1. Documento de Transporte

A – Passageiros e Bagagem

Guardando perfeita identidade com aquela contemplada pelo Protocolo da Guatemala de 1971, que ainda não se encontra em vigor, a simplificação dos requisitos formais do documento individual ou coletivo de transporte de passageiros e bagagem comportará apenas a indicação dos pontos de origem e destino, bem como, em se encontrando ambos no território de um mesmo Estado-parte, a indicação de pelo menos uma das escalas previstas em território de outro Estado. A grande inovação se traduz na possibilidade de se utilizar qualquer outro meio capaz de evidenciar esta informação para substituir a expedição do documento, propiciando, assim, verdadeira modernização através do uso dos eficientes e econômicos procedimentos de "ticketing" eletrônicos. Neste caso, o transportador deverá oferecer ao passageiro uma declaração escrita da informação preservada por estes meios.

Algumas indagações pertinentes ao espaço de tempo para a entrega efetiva ao passageiro de um aviso escrito indicando a aplicação das regras da convenção e a possibilidade que venha esta limitar a responsabilidade do transportador com respeito à morte ou lesão ao passageiro, por destruição, perda ou avaria de bagagem, e atraso, foram levantadas durante a Conferência. Por um lado, encontrava-se a Suécia, defendendo a entrega anterior à conclusão do check-in. O Canadá, por sua vez, propugnava-se pela entrega efetuada até o momento da partida. Referida a questão ao Grupo de Redação, chegou-se ao entendimento que a linguagem deveria refletir um período de tempo suficiente, anterior à decolagem, para que o passageiro, de posse dessa informação, pudesse tomar, se de sua vontade, as medidas necessárias para contrair seguro adequado.

Na mesma vertente da Convenção de Varsóvia, o novo instrumento optou por determinar, apropriadamente, que o não cumprimento das disposições acima mencionadas não afetará a existência ou validade do contrato de transporte, que continuará sujeito às regras da convenção, inclusive aquelas relativas à limitação da responsabilidade, diferindo, portanto, do disposto no Protocolo de Haia quanto aos efeitos do não-cumprimento da entrega do aviso escrito.

B – Carga

De extremada relevância ao transporte de carga foi a incorporação das provisões do Protocolo de Montreal n.4, em vigor desde 14 de junho de 1998, sem as quais, intransigentes, anunciaram os Estados Unidos não lhes seria possível ratificar o instrumento, uma vez que as necessárias modernização e simplificação do conhecimento aéreo vêm apenas refletir as tendências prevalentes a este produtivo setor.

Neste contexto, levantou-se acirrada discussão quanto à propriedade da inclusão da descrição da natureza da carga ao conjunto de requisitos formais que deverão constar obrigatoriamente do conhecimento aéreo ou recibo de carga. O termo "natureza", o qual já havia sido excluído por ocasião das reuniões que culminaram na adoção do Protocolo de Haia, em 1955, resultara de sugestão da 30a. Sessão do Comitê Jurídico, com o escopo de beneficiar o transportador em sua defesa, mediante prova de defeitos inerentes, natureza ou vícios da carga transportada, através do conhecimento prévio de seu conteúdo. Dentre aqueles que, a princípio, argumentaram em favor da sua retenção, citam-se o Paquistão, a Grécia e Madagascar, dentre outros.

Ora, liderados pelos Estados Unidos, com o apoio da IATA, CII e IUAI, bem como do Canadá, Reino Unido, Nova Zelândia, Ilhas Maurício, para citar apenas alguns, grande maioria propugnara-se pela sua exclusão, lembrando a existência de standards e recomendações mais estritos e detalhados contidos no Anexo 18 à Convenção de Chicago, bem como de correlatas instruções técnicas relativas à segurança do transporte aéreo de carga perigosa. Segundo estas disposições, requer-se do expedidor no transporte de carga perigosa que se assegure de que não se encontra proibido o transporte aéreo da mesma. Uma vez embalada e etiquetada, deverá acompanhar-se de um documento adequado, conforme as especificações daquele Anexo.

Por conseguinte, em uma solução compromissória, o Presidente da conferência propôs a redação de um novo artigo, segundo o qual, ao expedidor se poderá requerer, uma vez necessário para atender as formalidades aduaneiras, da polícia ou de outras autoridades públicas, a entrega de um documento indicador da natureza da carga, ressalvando-se que dita provisão não acarretará ao transportador nenhuma obrigação ou responsabilidade. Ademais, em sua Ata Final, a Conferência acordou em inserir uma resolução neste sentido, exortando aos Estados que adotem as medidas apropriadas para que seus transportadores, expedidores e carregadores dêem estrito cumprimento às normas do Anexo 18.

Na mesma linha, o expedidor será responsável perante o transportador pelos danos causados pela ausência, insuficiência ou irregularidade das informações necessárias, salvo se recaia a culpa sobre este último ou seus prepostos. Torna-se, ainda, o expedidor responsável pela exatidão das indicações por ele, ou em seu nome, inscritas no conhecimento aéreo. Em se considerando o valor probatório dos documentos, as indicações relativas ao peso, dimensões, embalagem da carga e número de volumes constituem presunção dos fatos declarados, salvo prova em contrário. Contudo, não constituem prova contra o transportador as declarações relativas à quantidade, volume e estado aparente da carga, exceto no caso em que tenham sido por ele checadas em presença do expedidor e exaradas no conhecimento. Digna de nota, a conseqüente exclusão da indicação da natureza.

2. Regime de Responsabilidade do Transportador

A – Morte ou Lesão a Passageiro

Inúmeros outros princípios da Convenção de Montreal poderiam ser citados como evidência precípua de seu caráter revolucionário e, não obstante, a quem quer que se detenha em seu exame, é incontestável a importância do novo regime de responsabilidade por morte ou lesão a passageiro, em cujos arredores, de uma forma ou de outra, giraram todas as deliberações da Conferência, dependendo de sua unânime aprovação, o sucesso da adoção do novo instrumento.

Trata-se, a bem dizer, de um regime de responsabilidade em dois níveis, compreendendo a noção de responsabilidade objetiva até o limite de 100.000 direitos especiais de saque (DES) (cerca de 135.000 dólares) e, em um segundo nível fundado na culpa presumida, a ausência de limites e o ônus da prova sobre o transportador.

Originando-se em proposta do Grupo Especial, após refutada a proposição da 30a. Sessão do Comitê Jurídico quanto à possibilidade da eleição, no momento da ratificação, entre uma variedade de regimes opcionais, o regime adotado vem refletir as tendências mais modernas da indústria de transporte aéreo, havendo recebido respaldo imediato da Comunidade Européia, da IATA e dos Estados-membros da Comissão Latino Americana de Aviação Civil, bem como dos Estados Unidos, Canadá, Japão, dentre outros. Ainda assim, as inúmeras controvérsias suscitadas quanto à sua conveniência fomentaram as mais exacerbadas discussões, dominando os debates que precederam a sua adoção.

Diversas iniciativas dignas de nota foram antes trazidas à colação, com o intuito de assegurar, da maneira mais eqüitativa, tanto os interesses do usuário no recebimento de justa e adequada indenização, quanto os interesses do transportador na manutenção, em níveis razoáveis, dos prêmios de seguro, assim evitando complexos e extensos litígios e despropositados conflitos legais. Neste contexto, é deveras interessante ressaltar, pela sua significância ao encaminhamento das negociações, a similaridade dessas propostas que, em consonância à prática atual, pretendiam consagrar, ademais da responsabilidade objetiva até o limite de 100.000 DES, também a responsabilidade ilimitada, diferindo, contudo, quanto aos critérios para a sua consecução, como por exemplo, sobre quem recairia o ônus da prova. Pequenas divergências foram apenas encontradas na proposta do Vietnam que, comportando um regime fundado na culpa presumida do transportador em seu primeiro nível, não recebeu o respaldo da Comissão, como também em proposta da India, onde se condicionava a quebra dos limites à prova de que o dano resultara de um ato ou omissão do transportador ou de seus agentes com a intenção de causar dano.

De extremada relevância, oferecendo alternativa bastante viável sobretudo do ponto de vista dos países em desenvolvimento, preocupados com o impacto da ilimitação da responsabilidade sobre os prêmios de seguro e a sobrevivência de suas empresas aéreas de pequeno e médio porte, foi a proposta apresentada por 53 Estados africanos que, conservando um primeiro nível de responsabilidade objetiva até 100.000 DES, caracterizava-se pela criação de um nível intermediário, fixado, em princípio, em negociáveis 500.000 DES, fundado na culpa presumida do transportador, reservada a este a defesa da não-negligência. Para pedidos excedentes a este valor, restaria sobre o autor a carga da prova da culpa ou negligência do transportador.

Bem recebida pela Comissão, causando evidente comoção à plenária e, a bem da verdade, aportando novos ânimos às negociações, esta proposta foi referida ao Grupo de Amigos do Presidente para a sua consideração, juntamente com pequenas variações, tal como aquela sugerida pelo Paquistão, relativa à manutenção, neste nível intermediário, do ônus sobre o passageiro para a prova da negligência do transportador.

Porquanto destinada a contrabalançar a ausência de limites, a estipulação do ônus da prova foi objeto de variadas sugestões. Por um lado, propugnava-se pela sua inversão, desde que em caráter não tão oneroso para o transportador, em se trabalhando a terminologia da defesa da não-negligência. De outro, pela tradicionalidade do princípio actroi incumbit probatio, conservando a responsabilidade do passageiro (ou demandante) pela prova da culpa ou negligência do agente causador do dano. Dentre os prosélitos desta última teoria, além da quase totalidade dos países africanos, como nos foi dado demonstrar, destacaram-se os países-membros da Comissão Árabe de Aviação Civil. Representando a posição anterior, salienta-se a existência de regulamentação da Comunidade Européia neste sentido. Segundo esclarecimento do Presidente, nos países da Common Law, a questão do ônus da prova perde sua relevância diante da aplicação prática do princípio res ipsa loquitur : uma vez provada a ocorrência do acidente a bordo de uma aeronave, automaticamente se transferirá do passageiro ao transportador a carga da prova, de modo que deverá este último provar a sua não-negligência ou a culpa do passageiro.

Havendo debatido ampla e exaustivamente estas possibilidades, foi apenas através do esclarecimento da extensão dos danos indenizáveis que se tornou possível à Comissão optar pela inversão do ônus da prova nos casos de responsabilidade ilimitada, contribuindo para o almejado consenso que resultou, finalmente, na adoção do supra-mencionado regime de responsabilidade, e permitindo, inclusive, se considerasse o instituto jurídico da quinta-jurisdição.

Destarte, segundo o disposto na Convenção de Montreal, fica positivada a responsabilidade objetiva do transportador em caso de morte ou lesão a passageiro, uma vez efetuada pelo demandante a prova do acidente (ocorrido a bordo da aeronave ou em curso das operações de embarque ou desembarque) e da existência dos danos, bem como do nexo causal entre eles. Por conseguinte, surge a obrigação de reparar e caberá indenização por parte do transportador ofensor até a quantia máxima de 100.000 DES, independente de se cogitar da imputabilidade ou de se investigar a ocorrência ou não de culpa de sua parte.

O transportador, por sua vez, se libera de sua responsabilidade pelos danos excedentes a 100.000 DES, por passageiro, se prova que: a) o dano não se deveu à negligência ou outro ato ou omissão de sua parte ou de seus prepostos ou agentes; ou b) o dano causado se deveu unicamente à negligência ou outro ato ilícito ou omissão de uma terceira parte. Exonerar-se-á de sua responsabilidade em ambos os níveis, total ou parcialmente, provando a culpa (negligência ou outro ato ou omissão) exclusiva ou compartida do demandante ou de quem derive este o seu direito. A introdução desta defesa, conhecida nas jurisdições que reconhecem a sua validade como a "defesa da culpa compartida", retirando-se-lhe o caráter discricionário e a referência à lex fori que a caracterizava no Protocolo de Haia, vem, mais uma vez, refletir a intenção dos legisladores de promover a uniformização dos diversos sistemas legais. Ressalta-se sua aplicabilidade indistinta à todos os dispositivos da convenção relativos à responsabilidade, inclusive à responsabilidade objetiva do transportador por morte ou lesão ao passageiro, ajudando na manutenção do equilíbrio entre ambos.

B – Da Extensão e Tipos de Danos Indenizáveis

Como nos foi dado observar, outrossim, a limitação da extensão e tipos de danos indenizáveis contemplados pela convenção revelou-se o quid pro quo indispensável à aceitação unânime do regime de responsabilidade proposto, restaurando a eqüidade entre o usuário e o transportador, diante da ausência de limites e da inversão do ônus da prova.

Neste sentido, valendo-se da experiência ditada pelas distintas interpretações decorrentes do silêncio da Convenção de Varsóvia quanto aos danos punitivos, o que tantas vezes levou à aplicação independente pelos tribunais, sobretudo nos Estados Unidos, de leis locais que os autorizam, resultando na concessão de absurdas indenizações, a Convenção houve por bem expressar, em um dispositivo explícito e consistente com seu caráter uniformizador, a proibição da reparação de danos punitivos, exemplares, ou quaisquer outros tipos de danos não compensatórios, vale dizer, aqueles cujo intento não se traduz em compensar a vítima pelos danos sofridos, destinando-se a constituir-se em punição ao transportador por sua conduta e a evitar condutas semelhantes no futuro.

Em verdadeiro berço de controvérsias constituíram-se, por sua vez, os danos mentais, diferindo sumamente as opiniões quanto à possibilidade e extensão da sua reparação no âmbito da convenção. A bem da verdade, contudo, referida controvérsia não se apercebera nem um pouco novidosa aos estudiosos do Sistema, uma vez fundada nas próprias interpretações jurisprudenciais divergentes desenvolvidas ao longo dos anos quanto ao alcance da terminologia adotada pela Convenção de Varsóvia em 1929. Ora, se a versão autêntica francesa, língua em que se produzira o texto original daquela convenção, empregara o termo "lésion corporelle" para, juntamente com a morte e ferimentos, definir a extensão dos danos ressarcíveis ao passageiro, as traduções inglesas não-oficiais dos Estados Unidos e Inglaterra optaram ambas pela tradução literal do mesmo como "bodily injury". Em 1979, o Protocolo da Guatemala, por sua vez, adotou a expressão "danos pessoais", como já o fizera o predecessor Protocolo de Montreal, em 1966, constando da versão inglesa o termo "personal injury" em contraposição à versão francesa, onde se manteve a terminologia original varsoviana. Recentemente, o Comitê Jurídico da OACI encerrara a sua 30a. Sessão com um consenso pelo emprego da expressão "lesões corporais e mentais", alterada posteriormente pelo Grupo Especial, que propôs o emprego restritivo de "bodily injury". O alcance da expressão original "lésion corporelle" tornou-se, assim, mais uma vez, objeto de profundas indagações durante as deliberações da Conferência.

Neste contexto, cumpre ressaltar que o princípio da responsabilidade civil, segundo a teoria prevalente no direito civil contemporâneo, ao definir o dever de indenizar, comporta a reparação de todos e quaisquer danos causados, classificando-os, para fins didáticos, de acordo com a sua natureza, em danos materiais (ou patrimoniais) e danos morais. Constituem os danos materiais aqueles relativos a toda perda patrimonial sofrida pela vítima, aí se incluindo também o não incremento de seu patrimônio (lucrum cessans), como consequência da diminuição permanente ou temporária da sua capacidade de trabalho. Por exemplo, citam-se as despesas funerárias, de tratamento médico, alimentos à família desprovida, e tudo aquilo que estará a vítima privada de ganhar. Os danos morais, por sua vez, se referem a sua integridade física (eg, lesões corpóreas, deformidades), mental (eg. traumas psíquicos, sequelas mentais) e moral (eg. honra, privacidade) bem como ao sofrimento (pretium doloris) pessoal devido ao acidente, ou de sua família (solatium doloris), em caso de morte. A idéia da reparação se traduz, via de regra, na oferta à vítima de um equivalente pecuniário aos danos materiais, acrescido dos lucros cessantes, de acordo com as condições sócio-econômicas específicas de cada caso e à arbitragem de um valor razoável e proporcional aos danos morais sofridos.

O sistema da Common Law que, por seu turno, desenvolveu o princípio da responsabilidade civil fundado nos chamados "torts", justapondo-se ao direito civil, abrange o ressarcimento dos danos compensatórios (pecuniários e não-pecuniários), equivalentes, portanto, às categorias acima mencionadas, mas também, às vezes, como nos foi dado demonstrar, dos danos não compensatórios (punitivos). Contudo, apresenta variáveis próprias e restrições aos tipos e extensão de danos compensatórios passíveis de indenização, a serem determinados de acordo com cada tribunal competente.

Vale ressaltar, neste momento, a título de observação, que ainda que um mesmo evento possa ensejar uma ação de reparação de danos quer seja fundada na convenção ou em bases contratuais, atos ilícitos ("torts") ou qualquer outra causa que permita a lei nacional, somente se poderá intentar a ação ressalvadas as condições e limitações impostas pela convenção.

De acordo com estas considerações, e sobretudo diante da pouca assistência oferecida pela análise dos travaux préparatoires da Convenção de Varsóvia, insuficiente para determinar a intenção dos signatários quanto à extensão dos danos mentais, alguns tribunais, acreditando que sua versão francesa original buscara refletir o sistema civil de responsabilidade, propugnaram-se pela prevalência do alcance atribuído à expressão pelo direito francês, segundo o qual, o conceito de "lésion corporelle" abrange não apenas as perdas de caráter pecuniário (dano patrimonial), bem como os danos físico e mental (danos morais), melhor enunciados para muitos, talvez, pela expressão mais singela "danos pessoais". Por outro lado, outros tribunais da Common Law consideraram irrelevante a referida interpretação no contexto uniforme da convenção.

Por conseguinte, a jurisprudência tem evoluído para considerar de maneira diversa o que fora a intenção uniformizar, proporcionando tratamento diferenciado aos usuários de um mesmo sistema, às vezes vítimas comuns de um mesmo acidente. Este fato se evidencia em algumas relevantes e precursoras decisões das cortes americanas: a) Burnett v. Trans World Airlines (6), pela interpretação estrita da expressão "lésion corporelle" no direito francês, como atentado à integridade física, precluindo a compensação dos danos mentais se desacompanhados de um dano físico; b) Rosman v. Trans World Airlines e Herman v. TWA (7), onde as partes acordaram quanto à acuidade da tradução americana, e as cortes determinaram a expressão "bodily injury" excludente de danos mentais desacompanhados de palpáveis manifestações físicas, distintas de manifestações meramente "comportamentais"; c) Husserl v. Swiss Air (8), por uma interpretação liberal e a compensação independente dos danos mentais, na ausência de evidência que fora a intenção dos signatários precluirem a reparação de qualquer tipo de dano em particular. d) Patagonia v. Trans World Airlines (9), pela prevalência do direito francês na interpretação da terminologia, segundo o qual, todos os tipos de danos são ressarcíveis; e) Krystal v. British Overseas Airways Corporation (10), pela interpretação de que a linguagem do Protocolo de Montreal de 1966 ("danos pessoais") sugerira a intenção de clarificar e permitir a reparação dos danos mentais; f) Eastern Airlines v. Floyd (11), revertendo entendimentos anteriores, a decisão da Suprema Corte pela insuficiência dos danos mentais para responsabilizar o transportador nos termos da Convenção de Varsóvia, onde a terminologia francesa há de ser compreendida como "bodily injury", não havendo se pronunciado quanto à possibilidade de compensação daqueles quando derivados de uma lesão corporal.

Esta situação de evidente contradição viu-se novamente refletida nos argumentos levantados durante a Conferência Diplomática, muito embora a grande maioria se inclinasse por "certa" forma de compensação dos danos mentais. Assim, de um lado, propugnando-se pela inclusão explícita do termo "lesão mental", sob o forte argumento de que a expressão "bodily injury" ou lesão corporal não comporta o mesmo significado nos diversos sistemas jurídicos, e lembrando a intenção precípua da convenção, qual seja, a uniformização e a eqüidade, diante do fait accompli de que cabe ao passageiro a prova da extensão (seriedade) dos danos mentais sofridos, encontravam-se a Suécia e a Noruega, recebendo o apoio manifesto dos países-membros da CLAC, bem como da Dinamarca, Namíbia, Santa-Sé, Espanha, dentre outros. Em contraposição, argumentava a IATA, em defesa das empresas aéreas, como indesejável conseqüência, o aumento incontido dos prêmios de seguro em um contexto de responsabilidade ilimitada, diante dos riscos potenciais de ações intentadas em caráter frívolo e não-meritório, além de obstaculizar o desenvolvimento da jurisprudência.

A França, por sua vez, como o apoio do Madagascar, defendia a manutenção do termo original "lésion corporelle", esclarecendo seu âmbito para o direito francês, como abarcando ambos os tipos de danos físicos e mentais. Nesta linha, o Reino Unido manifestou-se pelo termo "bodily injury", desde que constara dos travaux préparatoires a intenção dos signatários relativa à admissibilidade da compensação dos danos mentais independente de manifestações físicas.

Relembrando à Plenária a própria história do sistema de Varsóvia, a Itália, com o apoio da Nova Zelândia, sustentava a inclusão do termo "danos pessoais", com supedâneo na linguagem dos Protocolos de Montreal e da Guatemala, representando ambas as lesões corpóreas e mentais. Neste sentido, a IUAI houve por bem mencionar a Convenção de Atenas para o Transporte de Passageiros e Bagagem pelo Mar de 1974, onde a quebra dos limites impostos à responsabilidade do transportador pelos "danos pessoais" ao passageiro se encontra, contudo, diretamente condicionada à prova do animus injuriandi do transportador. Proposta semelhante se deveu ao Paquistão, batendo-se pela não qualificação e preferência pelo termo genérico "danos".

Propugnaram-se as Ilhas Maurício, por sua vez, pela solução adotada pelo Grupo Especial, quando se acordara pela exclusão do termo "lesões mentais" do Projeto de Convenção, sem prejuízo, contudo, da concessão de justa e adequada compensação desde que os danos mentais se encontrassem relacionados às lesões corporais, fato este que se faria constar expressamente dos travaux préparatoires da convenção.

Na mesma vertente encontrava-se a proposta efetuada pela China, com o apoio do Egito, Singapura e Camarões, que poderia se resumir na determinação expressa da compensação dos danos mentais desde que diretamente resultantes de uma lesão corporal. Diversas redações foram sugeridas para a expressão e assim, juntamente com as proposições anteriores, diante de seu caráter substancial, foram referidas à consideração do Grupo de Amigos, cujos trabalhos se iniciaram com base em um consenso, a partir das conclusões iniciais da Comissão Plenária, quanto à possibilidade de compensação de danos mentais associados a ou derivados de uma lesão corporal, fato este inclusive já manifesto pela jurisprudência de alguns tribunais.

Após relevantes deliberações, o Grupo concordou em considerar igualmente o reconhecimento dos danos mentais como categoria independente de danos ressarcíveis. Neste contexto, merece destaque a proposta do Chile, perfeccionando sugestão da CLAC relativa à qualificação do termo "lesões mentais", referência seja feita à lesão mental com efeitos significativos à saúde do passageiro. Diante do aparente suporte geral, pequenas variações terminológicas foram sugeridas pelo Reino Unido e IUAI e referidas ao Grupo de Redação.

Foi naquele âmbito restrito, e entre amigos, que os Estados Unidos, apreensivos, manifestaram pela primeira vez nesta Conferência a sua antiga preocupação pela interferência da expressão no desenvolvimento da jurisprudência americana, que como nos foi dado demonstrar, já inclui no termo "bodily injury" as referidas lesões mentais, argumentando não haver, portanto, necessidade de qualquer menção explícita, quanto mais de sua qualificação, o que poderia, inclusive, acarretar consequências adversas como a invalidação de precedentes judiciais ou mesmo riscos exorbitantes ao transportador, uma vez não existindo standards estipulados para a sua apreciação independente, que será feita pelo júri.

Sendo assim, esclarecida a verdadeira intenção da Conferência, reconhecendo a compensação dos danos relacionados às lesões mentais em determinados casos, optou-se, por fim, pela retenção da conhecida expressão mais abstrata "morte ou lesões corporais", manifesto o interesse no desenvolvimento liberal das jurisprudências nacionais. Portanto, o juiz competente, ao apreciar o fato interjurisdicional, qual seja a determinação do tipo de danos compensatórios compreendido pela expressão adotada, procederá de acordo com a lex fori, ou, se necessário, aplicar-lhe-á lei de outra jurisdição. Esperemos que não se restrinja em suas interpretações.

Por derradeiro, à luz da defesa da "culpa compartida" e da definição da extensão dos danos mentais, solucionou-se a controvérsia relativa à influência do estado de saúde anterior do passageiro na possibilidade de exoneração do transportador de sua responsabilidade em caso de acidente. Três posições diferentes haviam sido, em princípio, constatadas:

Em defesa das empresas aéreas, a fim de se garantir um equilíbrio aceitável entre o usuário e o transportador diante do novo regime de responsabilidade, bem como da até então provável incorporação expressa e independente dos danos mentais, a IATA, com o apoio de Singapura, Egito, Áustria, França, Indonésia e Líbano, dentre outros, argumentava a manutenção dessa defesa adicional, segundo a qual se eximiria o transportador de sua responsabilidade "na medida que" a morte ou lesão do passageiro se devera a seu estado de saúde. Seria este levado em conta apenas no que tange à intensidade dos danos sofridos. Em contrapartida, liderados pela Suécia e Noruega, um grupo de países defendia a exclusão do dispositivo do texto da convenção, por favorecer ao transportador em detrimento do passageiro com estado de saúde vulnerável, o qual poderia, inclusive, vir a ter dificuldades para segurar-se apropriadamente. Outra proposta conciliadora procurara acrescentar ao dispositivo o advérbio "exclusivamente", de maneira a esclarecer sua verdadeira intenção, qual seja, permitir a exoneração na medida que a morte ou o dano se devera "exclusivamente" ao estado de saúde do passageiro. Inclinando-se por esta solução, já incorporada ao Protocolo da Guatemala, encontravam-se os Estados Unidos, Brasil, Costa do Marfim, Canadá, Argentina, Cuba, Colômbia, Federação Russa, Kenia, Senegal, Nova Zelândia, México, para citar apenas alguns poucos.

Finalmente, diante do consenso quanto à definição restritiva dos danos ressarcíveis contemplados pela Convenção e devido à existência de defesa relativa à exoneração do transportador pela culpa (negligência ou outro ato ou omissão) exclusiva ou parcial do demandante ou de quem deriva este o seu direito, optou-se pela omissão de qualquer referência ao estado de saúde do passageiro.

C – Perda, Destruição ou Avaria de Bagagem

Com supedâneo nos dispositivos do Protocolo da Guatemala, o regime de responsabilidade do transportador com relação à perda, destruição ou avaria de bagagem evoluiu da culpa presumida para a responsabilidade objetiva, de sorte que o transportador se exonerará da sua responsabilidade se e na medida que o dano se deva a um defeito inerente, qualidade ou vício próprio da bagagem despachada. Salienta-se, contudo, que se o referido protocolo não diferenciara, para estes fins, entre bagagem despachada e de mão, o texto da nova convenção estabelece esta distinção, porquanto condiciona à prova, pelo passageiro, da culpa do transportador ou de seus agentes a sua responsabilidade com relação à bagagem de mão, incluindo objetos pessoais.

Substituiu-se, para efeitos deste dispositivo, a condição que o evento ocorrera a bordo da aeronave ou durante as operações de embarque ou desembarque, pela mais efetiva terminologia sugerida pelo Comitê de Redação, qual seja, qualquer período em que a bagagem despachada se encontre sob a custódia do transportador.

Incontroversa inovação, que teve origem na 30.a Sessão do Comitê Jurídico, foi a estipulação de um período de 21 dias para que se tenha a bagagem despachada como perdida e se permita ao passageiro fazer valer contra o transportador os direitos oriundos do contrato de transporte.

A responsabilidade do transportador, contudo, encontra-se limitada à 1000 DES por passageiro (e não mais por bagagem despachada). Ressalva seja feita à existência de uma declaração especial feita pelo passageiro ao transportador, quando da entrega a ele da bagagem despachada, referente ao valor de sua entrega no lugar de destino. Neste caso, obriga-se o transportador a indenizar-lhe um valor não excedente da soma declarada, a não ser que prove ser esta superior ao valor real da entrega.

Referida limitação não se aplicará diante da prova que os danos resultaram de ato ou omissão do transportador ou de seus dependentes ou agentes, desde que no exercício de suas funções, com a intenção de causar dano ou com temeridade e consciência de que danos provavelmente resultariam de sua conduta.

D – Atraso no Transporte de Passageiro, Bagagem ou Carga

Cuidando para que não se inserira uma definição de atraso que desse margem a demasiado amplas interpretações, diante da inexistência de consenso quanto às suas razões ou duração, o texto da nova convenção limitou-se a determinar a responsabilidade por danos decorrentes do atraso no transporte de passageiros, bagagem ou carga com base na culpa presumida do transportador, que se libera uma vez provando que: a) ele e os seus agentes tomaram todas as medidas necessárias para que se evitara o dano; ou b) não lhes foi possível tomá-las.

Por conseguinte, amplo debate se seguiu quanto à conveniência de um dispositivo estabelecendo uma soma fixa como limite à responsabilidade por atraso no transporte da passageiros. A favor da sua exclusão, uma vez que um limite pré-estabelecido poderia tornar-se base de pedidos abusivos em ações de reparação, encontravam-se os Estados africanos. Seu fundamento: cumpre aos tribunais competentes investigar as defesas do transportador, inexistindo, portanto, a necessidade de se arbitrar previamente um valor, em se desconhecendo as circunstâncias particulares causadoras do atraso e dos danos produzidos.

Haja vista a possível interpretação equivocada que a supressão do dispositivo poderia ensejar diante de um contexto de responsabilidade ilimitada, acordou-se pela sua conservação, estipulando-se um valor limite de 4150 DES por passageiro, em caso de danos decorrentes do atraso no transporte de passageiros.

Por seu turno, a responsabilidade do transportador pelo atraso no transporte de bagagem encontra-se limitada a 1000 DES, prevalecendo as mesmas ressalvas acima mencionadas para os casos de destruição, perda ou avaria de bagagem.

Em ambos os casos, não se aplicam os limites de responsabilidade uma vez provado decorrerem os danos de um ato ou omissão do transportador ou seus dependentes com a intenção de causar dano ou com conhecimento de que danos poderiam resultar de sua conduta.

Quanto ao atraso no transporte de carga, o consenso fez prevalecer o mesmo limite de 17 DES do Protocolo de Montreal n.3 e a impossibilidade, mediante disposição expressa, da quebra da limitação, pelas razões que veremos a seguir.

E – Carga

Em virtude da recente entrada em vigor do Protocolo de Montreal n.4, quase a totalidade dos Estados-membros da OACI representados na Conferência defendia a incorporação integral de seus termos e dispositivos no texto da nova convenção, em benefício próprio da indústria do transporte de carga. Neste sentido, incorporou-se, com ligeiras modificações de caráter editorial, o regime de responsabilidade estipulado no referido documento, segundo o qual, vale lembrar, o transportador se libera de sua responsabilidade pela destruição, perda ou avaria à carga, na medida que prova haverem resultado de: a) defeito inerente, qualidade ou vício da carga; b) embalagem defeituosa feita por pessoa outra que o transportador ou seus prepostos; c) ato de guerra ou conflito; d) ato de autoridade pública em conexão com a entrada, saída ou trânsito da mercadoria.

Consoante o Protocolo de Montreal n.3, um limite simbólico de 17 DES por quilograma para a responsabilidade do transportador pela perda, destruição, avaria ou atraso no transporte de carga foi considerado apropriado, em virtude da situação especial dos transportadores de carga, indústria sofisticada e consciente da necessidade de segurar-se por valores acima dos mencionados, não necessitando desta forma de proteção.

Diversos argumentos em oposição à quebra de limites proposta durante a última sessão do Comitê Jurídico foram levantados pelos Estados Unidos, Canadá, Japão, Nova Zelândia, bem como pela IATA e IUAI, em reconhecimento da referida sofisticação empresarial, bem como da probabilidade de acarretar onerosos e improdutivos litígios, em que apenas se decidiria a existência da obrigação do segurador pelo pagamento dos danos. Pela retenção da possibilidade da prova da intenção de dano como pressuposto da quebra da limitação, propugnaram-se inutilmente o Reino Unido, Suécia, Noruega, Finlândia, Países Baixos e Líbano, diante da obstinação e inflexibilidade dos poderosos porta-vozes dos interessados.

Vale ressaltar, por fim, como disposição geral, e antecedendo à legítima curiosidade do usuário, que o recebimento, sem protesto, pelo destinatário da bagagem despachada ou carga constituirá presunção de que lhe foi entregue em ótimas condições, em conformidade com o documento de transporte. Em caso de avaria, cabe a ele protestar imediatamente após a sua constatação ou, quando muito, sete ou quatorze dias depois em se tratando, respectivamente, de bagagem despachada e carga. Quanto ao atraso, o prazo é de 21 dias a partir do momento em que foi colocada à sua disposição.

F – Mecanismo para a Revisão dos Limites de Responsabilidade

A verdadeira singularidade do novo instrumento se revela outra vez, sem sombra de dúvidas, com a introdução de um mecanismo que possibilita seja efetuada a revisão dos limites de responsabilidade contemplados pela convenção, a fim de contrabalançar possível desvalorização e efeitos adversos da inflação. A existência de semelhante mecanismo não se faz estranha a outros tratados internacionais, de maneira que não foi difícil o assentimento unânime à sua adoção, evitando-se a convocação de conferências diplomáticas apenas para a adoção de pequenos ajustes.

Assim, os limites de responsabilidade deverão ser revisados pelo Depositário a cada cinco anos, devendo ser efetuada a primeira revisão ao final do quinto ano seguinte à data da entrada em vigor da convenção, com referência a um índice de inflação correspondente à taxa de inflação acumulada desde a sua entrada em vigor (para futuras revisões, desde a anterior). De acordo com sugestão do Presidente, uma vez que o convênio não entre em vigor em cinco anos a contar da data em que foi aberto à assinatura, uma revisão deverá ser efetuada durante o primeiro ano da sua entrada em vigor.

Em se determinando excedente de dez por cento o índice de inflação, o Depositário notificará os Estados-partes da revisão, que se tornará efetiva seis meses após a notificação. Digno de nota, revelando a aparente automaticidade do mecanismo, com base no princípio da soberania, os Estados retém o direito de expressar a sua desaprovação nos três meses seguintes à notificação e, uma vez registrada a desaprovação de uma maioria, não se tornará efetiva a revisão, referindo-se o assunto a uma reunião entre os Estados-partes. Do mesmo modo, o Depositário notificará a todas as partes da sua entrada em vigor. Ainda assim, ressalvada está a aplicação do procedimento de revisão a qualquer tempo desde que com o apoio expresso de um terço dos Estados-partes e uma vez excedente de trinta por cento o índice de inflação.

Cumpre mencionar, ainda que sem qualquer respaldo, a proposta da India de se elevar o intervalo entre as revisões para seis anos, com o objetivo de fazê-lo coincidir com a assembléia-geral da OACI, quando uma conferência seria convocada para estes fins, assegurando a participação direta dos Estados que ainda reteriam o poder de decidir pela aplicação ou não, a si e a suas empresas aéreas, dos limites revisados. Sugestão semelhante foi feita pelo Vietnam, segundo a qual a entrada em vigor dos limites revisados estaria condicionada à sua ratificação pela maioria dos Estados-partes e, por conseguinte, só teria validade com relação aos mesmos e a seus transportadores aéreos. Ora, como era de se esperar, ditas pretensões foram imediatamente rechaçadas pela Conferência, uma vez relembrado o caráter sumamente uniformizador da convenção.

3.    Pagamentos Adiantados

Numa aferição das experiências recentes da Swissair com relação às vítimas do acidente com o vôo SR 111, nas proximidades de Halifax, Canadá, aponta-se a origem das discussões de notável caráter humanitário que levaram à adoção de dispositivo singular concernente ao pagamento adiantado à família da vítima, com razão à sua assistência econômica imediata.

Por ocasião do acidente objeto de referência, a Swissair houve por bem, voluntariamente, na inexistência de qualquer legislação interna que a obrigasse, providenciar às famílias que requereram suporte financeiro o pagamento imediato de 15.000 DES por passageiro, quantia posteriormente elevada a 100.000 DES. Estes pagamentos foram, em sua maioria, aceitos como solução intermédia, pendente talvez, de futura decisão judicial.

A evidente necessidade desses adiantamentos levou a que muitas das delegações presentes à conferência debatessem por seu caráter mandatório, inclusive no âmbito da própria convenção. Entretanto, como esclareceu, com bastante propriedade, o Presidente da conferência, por ocasião da efetuação dos referidos pagamentos, não estará ainda estabelecida judicialmente a responsabilidade pelo acidente, de sorte que fazê-los desta forma obrigatórios seria convidar a pedidos sem verdadeiro fundamento. Sendo assim, de acordo com sugestão feita logo de início pela França, optou-se pela sujeição à lei nacional do caráter mandatório do pagamento a realizar, bem como da estipulação de sua quantia inicial. De todos modos, este valor será dedutível do quantum outorgado a posteriori a título de indenização àqueles a quem assiste o direito de compensação.

Neste sentido, em sua Ata Final, a Conferência adotou uma resolução, exortando às empresas aéreas que proporcionem ao sobrevivente ou à família da vítima os referidos pagamentos e, sobretudo, encorajando aos Estados-partes à adoção das medidas necessárias, em suas respectivas leis nacionais, para promover a ação por parte de seus transportadores.

Vale lembrar que as previsões indicam que quase a totalidade das ações de reparação intentadas terão restringidos seus pedidos a 100.000 DES, diante das condições propícias da responsabilidade objetiva, estando, portanto, ainda mais acentuadas as vantagens desta solução interina para ambos usuários e transportadores.

4.    Da Quinta Jurisdição

Sem embargo das muitas outras inovações dignas de nota introduzidas pela Convenção, destaca-se por sua significância e interesse profundamente relevante ao desenvolvimento do direito internacional e da defesa do consumidor, o polêmico instituto jurídico da quinta jurisdição, forum adicional baseado na "residência principal e permanente" do passageiro, onde ações de reparação de danos decorrentes de sua morte ou lesão poderão ser intentadas, como alternativa, à escolha do autor, às demais possíveis jurisdições no território de um Estado-parte, desde antes consagradas pela Convenção de Varsóvia, e quais sejam; a) o domicílio do transportador; b) a sede principal de seu negócio; c) o lugar onde possui o estabelecimento por cujo intermédio se tenha celebrado o contrato; d) o lugar de destino.

Ora, a bem da verdade, a busca de conciliação quanto à matéria suscitada transpareceu suas temerárias dificuldades em debates memoráveis, categóricas disputas e contendas extraordinárias, em cujo caminho se altercaram, como de costume, sofismas e estratagemas em defesa do sucesso incondicional das negociações.

Demonstrando grave relutância em sua aquiescência, encontravam-se, em número considerável, os países membros da AFICAC e da ACAC, a India e o Vietnam, sob a liderança da França. Pela sua incorporação pleiteavam, por sua vez, os países-membros da CLAC, Singapura, Japão, Inglaterra, Noruega, Canadá e, obviamente os Estados Unidos. Aos demais, ainda que silentes em sua participação, não é difícil ao exegeta mais atento advinhar-lhes o posicionamento, tendo em vista correlatas deliberações de sua parte em seu contexto sócio-econômico. Neste sentido, vale ressaltar a abstenção da IATA, compreensível diante da renuência dos transportadores aéreos, em sua maioria, em assumir os riscos de defender-se contra ações intentadas em jurisdições por demais generosas e arcar com o pagamento de valores exorbitantes e despropositados em um regime de responsabilidade ilimitada.

Ao se cogitar da proteção ao passageiro, salientando que a criação de uma quinta jurisdição não se trata, em absoluto, de exigência do transporte aéreo internacional, fortes argumentos levantados pela França procuraram demonstrar o caráter mais que satisfatório das jurisdições pré-existentes como foros competentes para a solução da maior parte das ações interpostas. A estes, juntaram-se os argumentos de seus partidários quanto às implicações prejudiciais da quinta jurisdição ao futuro do transporte aéreo internacional, sobretudo no que tange à sobrevivência das empresas aéreas de pequeno e médio porte dos países em desenvolvimento, diante da ausência de limites de responsabilidade. Este fato já seria em si suficiente para diferenciá-la de seu contexto original na Convenção da Guatemala, onde se encontra limitada a responsabilidade do transportador. Estes particulares, relembrou a França, encontram guarida na Convenção de Chicago, em cujo preâmbulo os países signatários se propugnaram a estabelecer os serviços de transporte aéreo internacional com base na igualdade de oportunidades e participação equânime entre os Estados. Da mesma forma, encontram-se refletidos na recomendação da Conferência Internacional de Transporte Aéreo de 1994 que salienta a necessidade de se levar em conta, na regulamentação do transporte aéreo internacional, a participação de todos os Estados, as suas disparidades econômicas e a garantia mesma de sua presença no sistema.

A delegação francesa foi mais adiante para considerar que a adoção do instituto virá, a bem da verdade, em detrimento do próprio usuário a quem se tinha a intenção de proteger, uma vez que o provável aumento dos prêmios de seguro, uma vez repassado ao preço do bilhete, será mitigado entre os mesmos passageiros, discriminados, porém, em suas compensações pela maior ou menor generosidade da jurisdição de seu domicílio.

Refutando as referidas considerações, os Estados Unidos houveram por bem lembrar a probabilidade que apenas um número restrito de demandantes venha auferir quaisquer benefícios da quinta jurisdição. Não obstante, por eles se justificaria a sua adoção, fundada no tratamento justo e na adequada compensação recebidos em forum mais apropriado e conveniente, cujas leis e procedimentos lhes são familiares. Ora, em se considerando haverem sido as quatro jurisdições precedentes selecionadas, em detrimento do forum do lugar do acidente, por apresentarem alguma circunstância conexa a uma das partes do contrato de transporte aéreo, procurou a delegação americana evidenciar a convicção que as duas primeiras (domicílio do transportador e sede principal de seu negócio) encontram-se diretamente relacionadas ao transportador aéreo. E se um vínculo existe entre ambos transportador e passageiro e o lugar onde se celebrou o contrato, não constitui o lugar de destino, por sua vez, bases suficientes senão para mera presunção desse nexo. Diante da realidade incontestável, com que fundamento se poderia negar tratamento equivalente ao passageiro? Fazia-se mister criar uma jurisdição a ele exclusivamente relacionada. Ademais, não haveria que se falar em aumento substancial dos prêmios de seguro, uma vez que as empresas aéreas, atualmente, já se encontram seguradas para a possível quebra de limites prevista no Sistema de Varsóvia.

Invocando, por seu turno, mas com intuito diverso, a doutrina prevalente de direito internacional privado que requer a existência de um claro nexo entre a relação contratual em questão e a jurisdição escolhida, vale dizer, entre a operação do transportador e o domicílio do passageiro, regressaram os oponentes à quinta jurisdição aos argumentos levantados por ocasião dos debates do Grupo Especial quanto à necessidade de se restringir de maneira inequívoca a disponibilidade e a extensão desta opção, se adotada, sujeitando-a a uma série de condições específicas.

Sem embargo de tais ponderações, relembrou a França à Conferência que o projeto de convenção incluíra, como medida de conciliação, um dispositivo que permitiria ao Estado optar, quando da ratificação ou adesão à convenção, pela não aplicabilidade a si e a seus transportadores da cláusula relativa à quinta jurisdição, mediante declaração e notificação que o obrigaria perante a todos os Estados-partes.

Nestas conjunturas, apreensivos diante das contingências, mas reconhecendo a sensibilidade da matéria suscitada, os Estados Unidos, que já haviam anteriormente condescendido à restrição imposta pelo direito internacional quanto ao nexo contrato-jurisdição, reafirmaram o seu apoio à exigência da presença significativa do transportador naquela jurisdição. Ao mesmo tempo, do pedestal da sua privilegiada posição no transporte aéreo internacional, tão intransigentes como autoritários, conhecedores do alcance de seu poder de barganha, anunciaram, com a graça que acompanha notícias já não mais surpreendentes, que não ratificariam a convenção na ausência do instituto jurídico da quinta jurisdição, resultando-lhes igualmente inaceitável submetê-lo a uma cláusula opcional.

Conscientes do dogma que os limitava em suas deliberações, diante do fracasso iminente do que se fulgurara ser a derradeira esperança, a comunidade internacional partiu decidida na busca de um consenso. Providências foram tomadas para a definição das premissas de caráter mandatório e de valor cumulativo e concomitante a que estaria submetida a admissibilidade da quinta jurisdição como competente para considerar ações de reparação exclusivamente relativas à morte ou lesão ao passageiro. Assim, com supedâneo na proposta do Grupo Especial consubstanciada no projeto de convenção e após ligeiras modificações, acordou-se que a ação de responsabilidade poderá ser intentada no território de um Estado-parte onde, à época do acidente: a) o passageiro possua a sua "residência principal e permanente"; e b) território este ao qual ou a partir do qual o transportador opere serviços de transporte aéreo de passageiros: i) em suas próprias aeronaves; ou ii) nas de outro transportador em decorrência de um acordo comercial: e c) no qual o transportador realiza suas atividades: i) a partir de locais arrendados; ou ii) de sua propriedade; ou iii) de outro transportador com quem possua um acordo comercial.

Vale, ainda, ressaltar a proposta anterior da França, onde se procurara esclarecer a verdadeira natureza da presença do transportador no território da quinta jurisdição, com o escopo de se precluir indesejáveis situações em que empresas aéreas de pequeno ou médio porte, por intermédio de acordos comerciais com outro transportador, se vissem submetidas à competência deste forum adicional, apesar de não constituirem presença significativa nesta jurisdição. Para tanto, sugerira evitar qualquer menção ao transportador de fato, como constava no projeto de convenção, na definição das condições específicas relativas aos serviços operados pelo transportador, restringindo-as a uma terminologia mais simples, de caráter genérico, e relativa apenas à operação de serviços aéreos pelo transportador e à condução de suas atividades a partir de locais por ele arrendados ou de sua propriedade. O verdadeiro fundamento desta colocação se encontrava na tentativa de se evitar o uso de expressões vagas e imprecisas, que poderiam ensejar excessivamente amplas interpretações quanto ao escopo das operações do transportador efetuadas mediante acordo comercial, as quais poderiam parecer comportar desde serviços de "rampa", operações charter, ou wet lease ao código compartido e às alianças, para citar apenas algumas possibilidades.

A bem da verdade, as indagações respeito à essa terminologia remontam às discussões do Grupo Especial que, ao considerar o assunto, concluíra ser a intenção referir-se às alianças e aos acordos de código compartido, excluindo acordos "interline", os serviços de "rampa", acordos de agência para a venda de bilhetes e quaisquer outros serviços de apoio. Este fato viu-se refletido nas discussões durante à Conferência, quando se decidiu pela incorporação ao texto da convenção de uma definição de acordo comercial que evidenciara um acordo entre transportadores, que não um acordo de agência, relativo à provisão de "joint services".

De extremada relevância, haja vista suas diferentes percepções nos mais variados sistemas jurídicos, o entendimento da noção de "residência principal e permanente", a que se acordara associar a quinta jurisdição, tampouco resultara fácil. Se, a princípio, o Comitê Jurídico optara pela expressão "domicílio e residência permanente", uma análise mais aprofundada revelara a necessidade de se encontrar uma definição precisa e apropriada à terminologia, a fim de se evitar divergentes interpretações legais. Trabalhando neste sentido, o Grupo Especial chegara a um consenso quanto ao termo "domicílio", fazendo referência a uma localidade geográfica definida. Não obstante, ainda que de uso habitual em muitos países, sobretudo na Europa e América Latina, revelara-se o mesmo insuficiente por apresentar diferentes conotações perante os tribunais do sistema da common law. Enquanto nos Estados Unidos o emprego generalizado do termo "domicílio" já levara, inclusive, ao desenvolvimento de extensa jurisprudência, o Reino Unido, todavia, prefere fazer uso da expressão "residência ordinária" que, por sua vez, se adotada, implicaria problemas para outros Estados, por consignar, aparentemente, a noção de nacionalidade. Finalmente, após refutados conceitos tais como "residência habitual" ou mesmo extensas definições de lapsos de tempo, uma solução consensual do mesmo Grupo propugnou-se pela adoção conjunta dos termos "residência principal e permanente", referindo-se ao lugar em que de fato o passageiro possui sua "moradia" fixa e permanente à época do acidente. Esta definição foi incorporada ao texto da nova convenção, acrescida de menção expressa que, na sua aplicação, a nacionalidade do passageiro não deverá constituir-se único fator determinante.

A história deste dispositivo vem refletir a preocupação expressada pela França quanto à introdução de um conceito até então desconhecido para o direito internacional, cuja interpretação pelos tribunais poderia facilmente ensejar a compreensão de equivalência entre "moradia permanente" e aquela a que se tem a intenção de retornar, ainda que se viva temporariamente em outro lugar, criando verdadeiro precedente de privilégio jurisdicional à nacionalidade do demandante. Desta forma, poderia ele escapar da competência de um foro estrangeiro para acionar sempre em seu próprio país. Este fato viria contrariar diversos instrumentos internacionais como, por exemplo, o Protocolo Suplementar à Convenção de Haia de 1971 sobre o reconhecimento e execução de julgados cíveis e comerciais estrangeiros, o qual estabelece como inaceitável à definição do foro internacional competente a "nacionalidade" do autor.

Com o intuito de fortalecer seus argumentos em defesa da quinta jurisdição, os Estados Unidos ainda ressaltaram ser a mesma consistente com a lei nacional de muitos Estados que concedem a seus cidadãos o direito de demandar localmente em ações por responsabilidade contratual, independentemente do lugar da celebração do contrato. Ademais, à relutante comunidade internacional, receosa quanto a submeter seus transportadores às exorbitantes indenizações dos tribunais americanos, relembraram-lhe a limitada aplicação que terá na prática a quinta jurisdição no que tange às ações intentadas por estrangeiros perante a um tribunal norte-americano. Em virtude da doutrina da common law do forum non conveniens, a fim de evitar um ônus excessivo a uma das partes, declinar-se-á sua competência em favor de outra jurisdição mais conveniente, se disponível, provavelmente aquela do país de origem do autor, uma vez adotada a norma relativa à quinta jurisdição. Uma proposta da Austrália pela codificação deste princípio, segundo a qual, se o transportador demandado fora capaz de convencer ao tribunal onde se iniciara a ação (qualquer que seja ele dentre os foros permitidos pela convenção) da existência de uma jurisdição prevista mais conveniente e apropriada a todas as partes, poderia aquele declinar sua competência em favor desta, não foi aceita pelos países que não conhecem da existência desta doutrina, ressalvado aos demais seu uso continuado.

5.    Arbitragem

A arbitragem, como mecanismo jurisdicional alternativo para a solução de controvérsias relacionadas à responsabilidade do transportador aéreo, fora consignada pela Convenção de Varsóvia, a qual limitara a sua admissibilidade ao transporte de carga. Durante os debates do Grupo Especial, argumentou-se a possibilidade de submeter quaisquer disputas oriundas do contrato de transporte aéreo à arbitragem, cujos procedimentos poderiam ter lugar, à escolha do demandante, em qualquer dos foros previstos pela Convenção. Ora, diante da adoção da quinta jurisdição, se a arbitragem claramente beneficiaria ao passageiro, não há dúvidas que permitiria a solução pacífica, rápida e menos onerosa das disputas. Dentre aqueles que se inclinavam pela maior amplitude deste dispositivo, citam-se o Brasil, a Suíça e a República Dominicana.

Entretanto, diante da oposição veemente da França, Itália, Suécia e Alemanha quanto à provável onerosidade das indenizações concedidas na Europa através deste mecanismo, como também do Japão, optou-se, assim, por restringir novamente esta possibilidade ao transporte de carga, conservando disponíveis as cinco jurisdições mencionadas como opções para o foro arbitral, à escolha do autor. A delimitação do direito aplicável, que geralmente incumbe às partes, também se encontra determinada pela Convenção e o árbitro ou tribunal arbitral aplicará as provisões da mesma.

Sem embargo destas estipulações, a partir de iniciativa do Líbano, esclareceu o Presidente da Conferência que não existe nada inconsistente no texto da Convenção a que o transportador e o demandante, em caso de acidente, acordem entre si por confiar qualquer disputa relativa à responsabilidade à arbitragem, a qual permanece viável desde que permita a lei nacional.

6.     Transportador Contratual e Transportador de Fato

A Convenção de Montreal houve por bem incorporar, com ligeiras modificações de caráter editorial, os dispositivos da Convenção de Guadalajara de 1961 relativos ao transportador contratual e ao transportador de fato. Assim, se o transportador de fato realiza no todo ou em parte um transporte que se encontre regido pelo novo convênio, estarão ambos submetidos às suas disposições, o transportador contratual com respeito à totalidade do transporte previsto no contrato, e o de fato apenas quanto à parte que efetue.

Não nos cumpre aqui analisar essas disposições, uma vez já por demais conhecidas dos estudiosos do sistema, senão para salientar que na determinação da responsabilidade solidária de ambos transportadores por seus atos e omissões, bem como pelos de seus prepostos desde que atuando no exercício de suas funções, nenhuma obrigação assumida pelo transportador contratual mediante contrato especial, renúncia de direitos ou defesas estabelecidos pelo convênio, ou declaração especial de valor acima da limitação prevista afetará ao transportador de fato, sem o seu conhecimento ou assentimento. Esta provisão havia sido abolida a pedido dos Estados Unidos durante os debates do Grupo Especial devido à eliminação dos limites de responsabilidade, sob o argumento que estariam ambos os transportadores em melhores condições de requererem indenização apropriada entre si, uma vez a eles assegurado pela convenção o direito de recurso. Entretanto, por iniciativa da China e com o apoio do Reino Unido, diante do grande número de Estados para os quais se encontra em vigor a Convenção de Guadalajara e do conseqüente impacto sobre seus transportadores da abolição deste princípio, acordou-se durante à conferência pela sua re-incorporação.

Ademais, em decorrência da admissibilidade da quinta jurisdição, cumpre assinalar que no que tange ao transporte efetuado pelo transportador de fato, uma ação de reparação de danos poderá ser interposta contra ele ou o transportador contratual, ou contra ambos conjunta ou separadamente, no território de um Estado-parte perante a qualquer tribunal, à escolha do demandante, em que se possa intentar uma ação contra o transportador contratual, ou ainda, ante o tribunal em cuja jurisdição o transportador de fato possua seu domicílio ou estabelecimento principal.

7.     Seguro Obrigatório

Acredita-se que o aumento dos limites de responsabilidade e a introdução da quinta jurisdição ver-se-ão refletidos nos prêmios de seguro. Contudo, segundo informação concedida pela IUAI durante a conferência, seu impacto potencial não resulta fácil de se calcular, ainda que a longo prazo. Dentre os diversos fatores que devem ser levados em consideração para esses efeitos destacam-se os diferentes valores concedidos a título de indenização pelos diversos tribunais, bem como as características particulares a cada transportador aéreo quanto a seu grau de exposição ao risco, quantidade de tráfego transportada, geografia e natureza das rotas e regimes de responsabilidade a elas aplicáveis, reputação, história de acidentes, registros de segurança, tipo e idade das aeronaves operadas, tipos de passageiros e capacidade do mercado (12), como também as imprevisíveis forças de mercado em um negócio altamente competitivo. Ainda assim, em termos do custo total da operação ou tarifas, espera-se que o custo adicional aos passageiros não exceda de dois dólares por viagem redondo para aqueles transportadores provenientes de países em desenvolvimento, ou mesmo de um centavo de dólar em se tratando de empresas com ótimos registros de segurança, considerando-se também a mitigação destes custos para aqueles que hoje já operam aos Estados Unidos (13).

Como medida de salvaguarda dos direitos do passageiro, a Conferência procurou inovar mais uma vez com a introdução de cláusula referente ao seguro obrigatório do transportador, que deverá ser suficiente para cobrir suas responsabilidades em virtude da convenção. Será responsabilidade dos Estados-partes exigi-lo de seus respectivos transportadores. Na mesma vertente, o Estado-parte a que um transportador opere serviços poderá exigir-lhe evidências do cumprimento dessa obrigação.

8.     Reservas

Optou-se por incorporar a terminologia consagrada pelo Protocolo de Haia, segundo a qual não se permite sejam feitas reservas à convenção por um Estado-parte, exceto ao transporte de pessoas, bagagem ou carga efetuado para suas autoridades militares em aeronaves por ele matriculadas, cuja capacidade total tenha sido reservada por essas autoridades ou em seu nome. Por sugestão da Costa do Marfim e com o apoio do Egito, Colômbia, Estados Unidos e Canadá, acordou-se acrescentar expressão evidenciadora da possibilidade de que sejam essas aeronaves arrendadas pelo Estado.

Por derradeiro, com supedâneo em propostas combinadas da Namíbia e dos Estados Unidos, bem como do próprio Presidente, permitiu-se declaração, também mediante notificação ao Depositário, que a convenção não se aplicará ao transporte aéreo internacional efetuado pelo Estado-parte para fins não comerciais, com respeito a suas funções e obrigações como estado soberano. O objetivo é possibilitar reservas aos serviços aéreos de segurança, emergências e apoio internacional, dentre outros, que não se enquadram na categoria de aeronaves militares.

IV - Conclusão

De tudo que nos foi dado demonstrar, não restam dúvidas que, pela primeira vez na história já nem tão recente do Sistema de Varsóvia, uma cerimônia de assinatura de um novo instrumento concluiu-se com aplausos dignos de uma "grande-finale". Prelúdios ominosos são coisas do passado. Desafiando conceitos fundamentais, a Convenção de Montreal colocou em pauta a ordem do dia. Na harmonia dos princípios e regras do direito internacional conseguiu restaurar a clareza e a uniformidade. Ao modernizar, superou todas as limitações. Na consolidação de instrumentos, capitalizou todos os seus atributos. Ao codificar, deu lugar a mudanças transcendentais, fazendo das tendências contraditórias o equilíbrio necessário entre o usuário e o transportador. Resultado do esforço coletivo, constitui-se a derradeira esperança da comunidade internacional, que consciente de seus benefícios, houve por bem adotar uma Resolução exortando aos Estados que a ratifiquem o antes possível.

Notas:

  1. Cf; para uma análise detalhada do Projeto de Convenção e seus aspectos substanciais desenvolvidos pelo Grupo Especial, bem como de seus antecedentes relativos ao Sistema de Varsóvia: Alessandra Andrade, "O Colapso do Sistema de Varsóvia", in Revista Brasileira de Direito Aeroespacial, no. 76, Novembro/99.   (Volta ao texto).
  2. Associação de Transporte Aéreo Internacional (IATA), União Internacional dos Seguradores Aeronáuticos (IUAI), Câmara de Comércio Internacional (CCI), Comunidade Européia (CE), Comissão Latino Americana de Aviação Civil (CLAC), Comissão Africana de Aviação Civil (AFICAC), Comissão Árabe de Aviação Civil (ACAC), Conferência Européia de Aviação Civil (ECAC), Comitê Interestatal de Aviação (IAC), Associação Latino Americana de Direito Aéreo e Espacial (ALADA), Associação de Direito Internacional (ILA).   (Volta ao texto).
  3. Membros do Grupo de Redação: Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Botswana, Brasil, Canadá, China, Costa do Marfim, Cuba, Egito, Espanha, Estados Unidos, Federação Russa, França, Ilhas Maurício, India, Japão, Kênia, Líbano, Panamá, Reino Unido, Suécia.    (Volta ao texto).
  4. Membros do Grupo de Amigos do Presidente: Arábia Saudita, Austrália, Camarões, Canadá, Chile, China, Egito, Eslovênia, Estados Unidos, Federação Russa, França, Gana, Ilhas Maurício, India, Japão, Líbano, Namíbia, Nova Zelândia, Paquistão, Reino Unido, Singapura, Síria, Sri Lanka, Suécia, Suiça, Tunísia, Uruguai, Vietnã.    (Volta ao texto).
  5. Membros do Comitê de Credenciais: Costa do Marfim, Finlândia, Jordânia, Panamá e Paquistão.   (Volta ao texto).
  6. 12 Avi. 18405, U.S. District Court, District of New Mexico, 13 December 1973.   (Volta ao texto).
  7. 13 Avi. 17231, New York Court of Appeals, 13 June 1974.    (Volta ao texto).
  8. 13 Avi 17603, U.S District Court, Southern District of New York, 10 February 1975.   (Volta ao texto).
  9. New York Supreme Court, 1978 .   (Volta ao texto).
  10.    14 Avi 17128, U.S. District Court, Central District of California, 10 September 1975.   (Volta ao texto).
  11.    23 Avi 17367 e 17811, Supreme Court of the United States, 17 April 1991.   (Volta ao texto).
  12.   AT-WP/1769 (Análise Sócio Econômica dos Limites de Responsabilidade do Transportador) in DCW Doc No. 30.   (Volta ao texto).
  13.   Idem.   (Volta ao texto).

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