Revista
Brasileira de Direito Aeroespacial
De Varsóvia a Montreal:
Rota Final com Destino à Terra Prometida? (*)
Alessandra Andrade
Mestre em Direito pela McGill University
(Institute of Air and Space Law) e especializada em gerência
da aviação civil pelo International Aviation Management
Training Institute (Montreal),.
Em 28 de Maio de 1999, reunidos na sede da
Organização de Aviação Civil Internacional (OACI), em Montreal, 582 representantes de
118 Estados e 11 organizações internacionais preparavam-se para virar a página
derradeira do complexo, extenso e por demais fragmentado capítulo dedicado ao ineficaz
Sistema de Varsóvia, e assim, fizeram-se testemunhas de um acontecimento histórico.
Estava aberta à assinatura de todos os Estados a Convenção para a Unificação de
Certas Regras para o Transporte Aéreo Internacional.
Resultado de três semanas de intensas
deliberações pela Conferência Internacional de Direito Aeronáutico, sob os auspícios
da OACI, a Convenção de Montreal representa um passo decisivo rumo à uniformização do
direito internacional privado em matéria de responsabilidade civil do transportador
aéreo, garantindo o equilíbrio de interesses entre transportadores, usuários, Estados,
bem como a indústria de transporte aéreo.
Tomando por base o Projeto de Convenção preparado
pelo Comitê Jurídico da OACI e pelo Grupo Especial (**), em
espírito de conciliação transcorreram as negociações e debates sob a direção do
Presidente eleito K. Rattray (Jamaica), com o objetivo de modernizar e consolidar os
diversos instrumentos integrantes do Sistema de Varsóvia, através da adoção de um
instrumento único, uniforme e passível de ratificação.
Esforços se consolidaram na busca de consenso entre
os mais variados entendimentos de diversos sistemas jurídicos, havendo sido necessário
conduzir as negociações mediante a apreciação de "pacotes" e a adoção
conjunta de seus elementos fundamentais, quais sejam, o regime de responsabilidade em caso
de morte e lesão ao passageiro, os danos mentais e o instituto da quinta jurisdição.
A adoção final de um regime de responsabilidade
por morte ou lesão a passageiro em dois níveis, compreendendo a noção de
responsabilidade objetiva até o limite de 100.000 direitos especiais de saque (DES), e um
segundo nível de culpa presumida com a ausência de limites e ônus da prova sobre o
transportador, não resultou fácil. Sua origem remonta à proposta do Grupo Especial
apresentada à Comissão Plenária, adotada pela Conferência após ligeiras
modificações. Dita proposta recebera respaldo imediato dos Estados representados pela
Comunidade Européia e Comissão Latino Americana de Aviação Civil (CLAC), bem como dos
Estados Unidos e Canadá, dentre outros.
De extremada relevância nos amplos debates
anteriores, havendo recebido especial destaque, fora a proposta apresentada por 53 Estados
africanos que propugnavam-se pela criação de um nível intermediário, fixado em 500.000
DES, baseado na culpa presumida do transportador, reservada a este a defesa da
não-negligência. Citam-se também as propostas isoladas do Vietnam (ônus sobre o
passageiro) e India (associação do dolo ao ato ou omissão como causa do dano), que não
receberam apoio da Comissão.
Diante das distintas ponderações, foi através do
esclarecimento da extensão dos danos indenizáveis que se chegou à adoção do regime
introduzido pela Convenção e permitiu-se considerar o instituto da quinta jurisdição.
A fim de se precluir os riscos potenciais que o conceito de lesões mentais como forma
independente de ressarcimento de danos ensejariam em um contexto de responsabilidade
ilimitada, analisou-se proposta da China de compensação do dano mental desde que
diretamente relacionado às lesões corporais, bem como proposta liderada pelo Chile, qual
seja a qualificação do termo como referência a significativos efeitos adversos à
saúde do passageiro. Entretanto, exacerbadas pressões de última hora exercidas pelos
Estados Unidos, sob influência de seus transportadores aéreos, levaram à exclusão
absoluta do termo, alegando-se interesse geral na não-interferência no desenvolvimento
corrente da jurisprudência a nível nacional.
Por sua vez, em verdadeiro berço de controvérsias
consistiu-se o instituto da quinta jurisdição, forum adicional baseado no domicílio ou
residência permanente do passageiro, onde ações de responsabilidade relativas à sua
morte ou lesão poderiam ser intentadas.
Em garantia dos interesses do passageiro, contando
com o incondicional apoio da CLAC, Japão, dentre outros, os Estados Unidos defenderam a
sua incorporação como essencial à ratificação. Diante da enorme relutância à sua
aceitação, devido às conhecidas por exorbitantes compensações dos tribunais
americanos, procuraram argumentar a limitada aplicação que terá na prática a quinta
jurisdição no que tange às ações intentadas por estrangeiros, uma vez que, em virtude
da teoria do forum non conveniens, declinar-se-á a competência deste tribunal em
favor de outras jurisdições, se disponíveis. Contra a sua conveniência, por sua vez,
manifestaram-se os países africanos e membros da Comissão Árabe de Aviação Civil,
liderados pela França, apontando como consequências desfavoráveis o indesejável
aumento dos prêmios de seguro e riscos assumidos pelas empresas aéreas de pequeno e
médio porte, além de vir a constituir-se perigoso precendente ao desenvolvimento do
direito contemporâneo.
Como medida de conciliação, com supedâneo em
proposta apresentada pela França, a Conferência culminou por adotar a quinta
jurisdição, sujeitando-a, contudo, à apresentação concomitante de circunstâncias
específicas relativas à presença comercial e operacional do
transportador naquele Estado, salientando-se, contudo, que na aplicação
do conceito de residência como a moradia fixa e permanente do passageiro por ocasião do
acidente, a nacionalidade não deverá constituir-se único fator determinante.
Dentre outros elementos incorporados pela
Convenção de Montreal destacam-se:
- Simplificação e modernização dos documentos de transporte;
- Aumento dos limites de responsabilidade em caso de atraso no
transporte de passageiros, destruição, perda ou atraso no transporte de bagagem para
4150 e 1000 DES, respectivamente;
- Mecanismo automático para a revisão de limites;
- Pagamento adiantado em caso de acidente, para assistência imediata,
em conformidade às exigências da lei nacional, dedutível do quantum outorgado a
posteriori a título de indenização;
- Manutenção de seguro a ser exigida pelos Estados de seus
transportadores.
A Convenção de Montreal encontrar-se-á aberta à
assinatura dos Estados na
sede da OACI, onde espera a sua entrada em vigor, que se dará no sexagésimo dia a contar
do depósito do trigésimo instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou
adesão, e prevalecerá sobre toda regra que se aplique ao transporte aéreo
internacional. Esperemos sejam finalmente atendidas as expectativas da comunidade
internacional, pondo fim a setenta anos de absurda multitude de combinações de regimes
de responsabilidade decorrentes do complexo Sistema de Varsóvia. Em um emocionado
apelo, que aqui repetimos, manifestou-se o Presidente da Conferência durante um de seus
muitos momentos de tensão: a história da aviação civil desta vez não perdoará um
fracasso. O mundo clama por conciliação.
Notas
* Esta nota complementa o disposto pela autora
no artigo "O Colapso do Sistema de Varsóvia", in Revista Brasileira de
Direito Aeroespacial, no. 76, págs. 25 e segs. e receberá análise detalhada na
edição de Novembro/99 da RBDA (Volta ao texto)
** Cf., para uma
análise dos trabalhos do Grupo Especial com relação ao Projeto de Convenção para a
Unificação de Certas Regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional: Alessandra Andrade, ob.cit.,
págs. 27 e segs. (Volta ao texto)
(Volta a Revista)
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