Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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Questões Polêmicas Atuais:

Contrato de Transporte Aéreo de Passageiros (*)

Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

1 – O CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO DE PASSAGEIRO é aquele pelo qual alguém querendo ir, por avião, de um lugar a outro, convenciona com um transportador levá-lo ao ponto desejado, mediante preço e condições previamente ajustadas.

Transportador é quem assume o encargo de transporte por aeronave fazendo a transferência de pessoa de um lugar para outro, mediante pagamento.

Passageiro é quem se utiliza dos serviços do transportador.

O bilhete de passagem constitui prova do contrato (art. 227 do Código Brasileiro de Aeronáutica e art. 1º da Portaria do Ministério da Aeronáutica, de nº 957 de 19 de dezembro de 1989) e dele constam as principais condições contratuais, com o nome do passageiro, valor da tarifa paga, dia, hora, local, número e classe do vôo, origem e destino da viagem, data da validade do bilhete e suas eventuais restrições, inclusive relativas ao peso da bagagem a ser transportada.

Tais indicações nem sempre são todas muito claras, eis que são feitas em código, com nomes abreviados, letras e números, apesar do Código de Defesa do Consumidor em seu art. 6º, III, prescrever que :

"Todo consumidor tem direito à informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços".

O transportador é obrigado a entregá-lo ao passageiro, sob a forma individual ou coletiva, se o transporte for de um grupo, indicando o lugar, a data de emissão, os pontos de partida e destino bem como os nomes dos transportes, em se tratando de transporte sucessivo (Código Brasileiro de Aeronáutica, art. 227).

Trata-se de obrigação do transportador e direito do passageiro.

Todavia, consoante a regra do art. 226 do Código Brasileiro de Aeronáutica, sua falta, irregularidade ou perda não prejudica a existência e a eficácia do contrato.

O contrato de transporte aéreo de passageiros conclui-se pelo acordo de vontades entre o viajante e o transportador, ou pessoa que atue em seu nome.

O bilhete de passagem tem validade de um ano, a partir da data de sua emissão (Código Brasileiro de Aeronáutica, art. 228).

2 - Na sua conceituação jurídica, o contrato de transporte aéreo de passageiros é de natureza complexa.1

Nele há uma combinação de locação de serviços e de coisas. É um contrato bilateral, consensual e oneroso.

Bilateral e consensual porque se forma pelo consentimento para ambos os contratantes : o transportador, obrigando-se a realizar o transporte e o passageiro, a pagar-lhe o preço.

Oneroso, porquanto acarreta encargos recíprocos.

A onerosidade do contrato constitui um elemento essencial, sendo o pagamento do preço da passagem obrigatório.

O transporte gratuito, de cortesia e dos diretores empregados do transportador situam-se na esfera da responsabilidade civil, mas fora do âmbito contratual, consoante o Código Brasileiro de Aeronáutica, art. 267.2

É também contrato de adesão, aperfeiçoando-se pela manifestação de vontade do transportado às condições genéricas de preço, lugar, data, hora e demais condições gerais da empresa aérea transportadora.3

Esta adesão formal resulta da compra do bilhete de passagem e da posterior utilização da aeronave no momento escolhido.

3 – O contrato de transporte aéreo de passageiros apresenta alguns típicos problemas na sua execução, com reflexos na seara jurisprudencial.

São eles, além dos decorrentes da responsabilidade civil por lesões corporais à pessoa dos passageiros e morte, os seguintes :

I – O atraso de vôos.

II – O cancelamento de vôos.

III – O extravio e perda de bagagens.

IV – O overbooking (recusa em embarque por sobrevenda de assentos disponíveis, em vôo confirmado).

V- O no show (a ausência dos passageiros para embarque confirmado).

Os três primeiros tipos importam na responsabilidade do transportador, regulados por sistemas legais decorrentes do Sistema da Convenção de Varsóvia/Haia e pelo Código Brasileiro de Aeronáutica, segundo se trate de transporte internacional ou nacional, respectivamente.

Tais questões tem encontrado composição com o emprego da lei e da jurisprudência, com soluções mais ou menos sedimentadas.

Sobre as três primeiras questões, o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565, de 19.12.1986) fixa condições obrigatórias a serem insertas nos bilhetes de passagens representativo do contrato de transporte, obrigando ao transportador a providenciar o embarque imediato do passageiro em outro vôo ou, alternativamente, o reembolso a importância paga pelo passageiro no caso do cancelamento do vôo e outras penalidades para os casos de atraso na partida ou interrupção de viagem por mais de 4 hs.(Código Brasileiro de Aeronáutica, arts. 229, 230 e 231) e pagamento de despesas de transporte pessoal, alimentação, hospedagem, sem prejuízo da responsabilidade civil.

O Código Brasileiro de Aeronáutica ainda prevê a responsabilidade por dano ao passageiro e à sua bagagem (art. 256).

4 - Para as outras duas matérias restantes (o overbooking e no show) a situação é diversa e sobre elas é que versarão as nossas considerações, nesta pequena reflexão.

São modalidades de questões só recentemente cogitadas, há cerca de três décadas, em razão do crescimento e democratização dos transportes aéreos, com a larga utilização dos aviões como transportadores de massa.

O no show, como vimos, é a ausência de embarque de passageiro, com reserva confirmada, que não se confunde com excesso de venda de passagens (oversales).

Pode ser voluntário ou acidental, segundo origine-se da ausência querida ou da ausência forçada, por diversos fatores, especialmente o atraso de vôo de conexão, por defeito da execução de serviços aéreos, até da própria empresa transportadora.

O overbooking só agora vem sido levado à discussão em pleitos judiciais, não existindo ainda uma diretriz legal sedimentada para sua solução, que vem escapando do campo do direito obrigacional puro para encontrar abrigo na regras legais relativas ao dano moral, que alcançou recentemente o cânone constitucional (art. 5º, X) e do amparo do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90, Capítulo VI), especialmente os arts. 1º, 2º e 3º, § 2º do Código de Defesa do Consumidor.

Efetivamente, o tal código estabeleceu em seu art. 1º normas de proteção e defesa do consumidor, as quais considerou de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, XXXII, 170, V, da Constituição Federal e 48 de suas Disposições Transitórias, explicitando que :

Art. 2º - Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Art. 3º - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1º - ...

§ 2º - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante, remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Atualmente, registre-se, os passageiros aéreos tem sido estimulados pela nova legislação do consumidor a pleitear a proteção judicial para as questões derivadas do overbooking, reclamando indenizações fundadas em prejuízo de caráter material e moral.

Recentemente, em acórdão prolatado na Apelação Cível nº 7.145/98, da 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, Relator o Des. ELY BARBOSA, foi decidido, por maioria de dois votos a um, conceder-se indenização por dano moral a um grupo familiar de quatro passageiros que não conseguiu embarcar em vôo internacional de Miami para o Rio de Janeiro em razão de overbooking, justificado pela decisão judicial de não ser caso fortuito, sendo, ao contrário, evento previsível e evitável; pesaram na decisão judicial os fatores da recusa ter dado enfim de viagem ao exterior, com recursos financeiros exauridos, cansaço, tensão emocional e pelo motivo adicional de terem sido impedidos de chegar a tempo de comemoração familiar de mãe, sogra e avó que completava 80 anos ! 4

A cada membro da família foi concedida uma indenização de 400 salários mínimos pelo fato !

A jurisprudência também vem punindo a sobrevenda de lugares, pela ocorrência de dano patrimonial pela má execução do contrato, por quebra do princípio de boa-fé e ainda pela aplicação de teoria do risco da atividade empresarial, previsto do Código de Defesa do Consumidor, que faz o transportador ser objetivamente responsável pelos danos causado aos passageiros.

A defesa, nestas hipóteses, fica restrita à culpa exclusiva dos passageiros, pelo atraso na apresentação para embarque ou ao desrespeito a regulamentos administrativos.

Paralelamente concorrem para sua ocorrência a prática viciosa da feitura de múltiplas reservas pela agência de viagens, visando atender seus clientes, dando-lhes múltiplas oportunidades de escolha de vôos.

As questões sobre o overbooking e no show reclamam, indubitavelmente, solução econômica, legal e harmônica em virtude de sua interdependência.

Se não houvesse no show, por certo, não haveria overbooking !

São deveras devastadores sobre a saúde econômica e financeira da empresas de transportes aéreos os efeitos da ausência de passageiros no embarque em vôo confirmado.

5 - AGOSTINHO ALVIM, no seu livro clássico sobre a inexecução de obrigações, observava, a três décadas, a escassez de decisões nos nossos Tribunais com relação a indenização por dano moral, outrora só aceito com severas reservas. 5

Hoje, porém, apresenta-se situação de caráter diametralmente oposta, em razão de reconhecimento da indenização por dano moral como importante direito individual. 6

As questões sobre danos morais, sobre os mais variados aspectos, vem absorvendo a atenção do Poder Judiciário !

Para o sentido finalístico do Poder Jurisdicional, de composição de conflitos de interesses, seria valioso que se procurasse buscar o equilíbrio e harmonização da dupla faceta das questões, sob via regulamentar, restringindo-se ou diminuindo-se a pletora das ações indenizatórias.

6 - Tais soluções não precisam, obrigatoriamente, passar pela via de edição de normas legais, podendo vir através da AUTO-REGULAMENTAÇÃO, com a atuação do organismo diretor da aviação civil, de cunho administrativo e da empresarial, tais como o estabelecimento de multas moderadas para os no show injustificados, venda de bilhetes mais baratos, com mais restrições ao no show, dificultando sua proliferação; para o overbooking, a concessão de prêmios extras já concedidos nos sistemas de incentivos na utilização de fidelidade à mesma empresa transportadora e leilões com indenizações financeiras compensadoras para os passageiros prejudicados com a inexecução culposa dos contratos de transporte aéreo, sem as incertezas do que eventualmente possam ser originadas de pleito judicial. 7

7 - As experiências americana e européia no tratamento destas matérias, incorporadas nos Regulamentos de Departamento de Transportes, de 1997, pelo ato intitulado OVERSALES, de 1997 e Regulamento 295/1991, do Conselho da Comunidade Econômica Européia, não devem ser negligenciadas, antes, aproveitas e desenvolvidas. 8

Também, as recomendações da Organização Internacional da Aviação Civil e da IATA merecem ser cogitadas, como a imediata indenização material do passageiro com o fornecimento de numerário, de pronto pagamento, para suas despesas de hospedagem, alimentação, comunicação e transportes terrestres.

Se isso não for exequível, ficará o Poder Judiciário com os encargos e responsabilidade adicionais de ter que responder sozinho pela solução destas questões.

Não que não possa fazê-lo; mas se o fizer, que seja de forma moderna, adequada e buscando obter o equilíbrio contratual dos interesses dos consumidores e dos empresários dos transportes aéreos, consensualmente.

Isto é uma meta ideal possível e não utópica !

Notas

* Síntese da intervenção em painel do II Seminário de Direito Aeronáutico, Rio de Janeiro, maio de 1999.  (Volta ao texto)

 

(1) Em paralelismo com os contratos de transportes em geral, tal contrato pode ser conceituado como locação de serviços, de coisas e transportes de pessoas, consoante a lição do grande comercialista italiano CESARE VIVANTI.
Sobre as várias teorias acerca da natureza jurídica do contrato de transporte, consulte-se EURICO PAULO VALE, Direito Aeronáutico Brasileiro, pags. 53/54, Editora Coelho Branco, 1947.
(Volta ao texto)

(2) Neste sentido a lição de JOSÉ DA SILVA PACHECO, Comentários ao Código Brasileiro de Aeronáutica, Revista Forense, 2ª Edição, 1998, pág. 363, nº 450. (Volta ao texto)

(3) Contrato de adesão no direito brasileiro, segundo definição legal, é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo (Código de Defesa do Consumidor, art. 54 ). (Volta ao texto)

(4) O voto vencido negou enfaticamente a ocorrência do dano moral.  (Volta ao texto)

(5) Da Inexecução das Obrigações e suas consequências, Ed. Saraiva, 4ª edição, 1972, pag. 218. (Volta ao texto)

(6) Conforme art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988. (Volta ao texto)

(7) Neste sentido, como informa Mauro Gandra, o recente termo de compromisso firmado entre as quatro maiores empresas aéreas brasileiras e o Departamento de Aviação Civil, na qual elas se comprometem a compensar os usuários, eventualmente atingidos pelo overbooking em valores corrigidos por Direitos Especiais de Saque, conforme índice divulgado pelo Central, no informativo do SNEA, ano II, nº 5, fevereiro de 1999.  (Volta ao texto)

(8) Consulte-se sobre o tema as relevantes e minuciosas informações e soluções apresentadas em tais regulamentos no Artigo de Hélio de Castro Farias,  na Revista de Direito Aeroespacial, nº 72, pág 3/8 e no estudo sobre Overbooking, atraso de vôo e extravio de bagagem, de Antônio Henrique Browne Rego, em publicação do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias, SNEA, 1999.  (Volta ao texto)

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