Revista Brasileira de Direito Aeroespacial
Outra Perspectiva:
O Direito do Consumidor e o Transporte Aéreo
Ricardo
Alvarenga
Diretor Jurídico da Líder Táxi Aéreo.
Tema dos mais palpitantes, na atualidade, indaga-se se o transporte aéreo, por seu caráter de internacionalidade, subordinado a complexas regras jurídicas, grande parte delas insculpida em tratados , convenções e atos internacionais, seria afetado pelas leis de defesa do consumidor, estas já codificadas, no Brasil, através da Lei n. 8.078, de 11/09/90.
Com efeito, a bíblia do transporte aéreo regular é a Convenção Internacional de Varsóvia, de 1929, assinada pelo Brasil e devidamente ratificada pelo Congresso Nacional, passando, pois, a viger entre nós outros com o "status" de norma internacional acolhida pelo Estado brasileiro, cujo predomínio ante a lei interna seria garantida pela Carta Magna, consoante doutrina e jurisprudência. SILVA PACHECO adverte que, "...uma vez ratificado o Tratado e promulgado, no Brasil, tem ele vigência imediata, inclusive naquilo em que modificar ou contrariar legislação interna, como aliás, decorria do texto do art. 119, n. III, da CF de 1969, e já foi decidido pelo STF, no RE n. 71.154, de 04.08.1971 (in Ver. Trim. De Jurisp. N. 58, p. 71) e como sustentaram Adroaldo Mesquita (Parecer n. 738-H da CGR in DO de 26.09.68), Vicente Marotta Rangel ("Os conflitos entre o direito interno e os tratados internacionais", in Boletim da Soc. Bras. de Dir. Int., Rio, n. 45 e 46, 1967, p. 54 e segs.) e Haroldo Valladão (Direito Internacional Privado, vol. I, Rio, 1980, p. 56 e segs.). O art. 5o., parágrafo 2o., da CF, de 1988, dá prioridade aos Tratados.)" - "apud" Comentários ao Código Brasileiro de Aeronáutica, 1a. ed., Rio de Janeiro : Forense, 1990, p. 29.
Mais recentemente, no entanto, a jurisprudência emanada de alguns pretórios estaduais e até do STJ vem se inclinando a fazer vistas grossas de normas contempladas em diplomas de direito internacional privado quando em detrimento de legislação interna, especialmente no que se refere a algumas questões que vêm atormentando os usuários do transporte aéreo, tanto doméstico quanto internacional, a saber: i) o "overbooking"; ii) o desaparecimento de bagagem; iii) o atraso ou o cancelamento de vôos.
O "overbooking", vocábulo da língua inglesa de uso corrente na aviação regular, onde já se incorporou ao jargão dos funcionários de empresas aéreas, agentes de viagem e alguns passageiros mais curiosos ou bem informados, significa a reserva de assentos em uma aeronave em número superior à capacidade desta. Em outras palavras, algumas empresas, por que não dizer a maioria delas, para se defenderem dos prejuízos causados por reservas que nunca são confirmadas (também conhecidas por outra expressão do idioma de Shakespeare, ou seja, o "no-show" ou não comparecimento), costumam adotar essa prática, muitas vezes deletérias a alguns passageiros. A imprensa vem denunciando com freqüência, ainda mais em épocas de férias de final de ano, alta temporada para o turismo internacional, que inúmeros passageiros vêm sendo preteridos em seus embarques para os mais variados destinos, a despeito de terem confirmado a reserva e comparecido no aeroporto no horário determinado pela companhia aérea. Como agir nessa hipóteses? Poderia o passageiro prejudicado propor uma demanda contra a empresa de transporte aéreo pleiteando indenização por perdas e danos? O Código de Defesa do Consumidor seria aplicável ao fato ou a matéria seria regida pelo Código Brasileiro de Aeronáutica e pelos tratados e convenções internacionais que disciplinam a matéria? E quando o passageiro embarcado, tendo antes despachado sua bagagem no balcão de atendimento da companhia aérea, durante o chamado "check-in", tem a desagradável surpresa de saber, já no destino, que suas malas desapareceram no percurso da viagem, não se sabendo nem seu paradeiro e nem a quem reclamar? Haveria prejuízos indenizáveis? Deve-se aceitar o valor que companhia aérea alega ser devido, ou seja, $F250,00 (duzentos e cinqüenta Francos-Ouro "Poincaré" *) por quilograma, quando se tratar de bagagem sem valor declarado? Finalmente, havendo atraso em decolagens de aeronaves, ou até mesmo o cancelamento de vôos, da forma mais abrupta que se pode imaginar, e cuja motivação pode ser a mais ampla possível: que fazer nesses casos? A companhia poderá ser responsabilizada por danos materiais ou morais causados ao passageiro?
Ora, no que concerne ao "overbooking", as próprias autoridades aeronáuticas já demonstram preocupação, tal a freqüência das reclamações dos usuários. Por isso, normas expressas estão em fase de elaboração e deverão ser baixadas muito proximamente, através de Portarias coordenadas pelo Departamento de Aviação Civil. A expectativa é de que pesadas multas devam ser impingidas ao transportador que não puder dar embarque ao passageiro com viagem confirmada por motivo de excesso de reservas no mesmo vôo. É evidente que o Código de Defesa do Consumidor é também aplicável à matéria, em harmonia com o Código Brasileiro de Aeronáutica, pois o serviço de transporte aéreo não pode ser contemplado como exceção aos demais. O usuário é equiparado ao consumidor e a companhia aérea deverá responder por abusos praticados, como qualquer outro fornecedor de produtos ou serviços. Aliás, a melhor doutrina sobre a matéria leciona que, na hipótese de "overbooking", o passageiro deve ser embarcado em outra aeronave, para o mesmo destino, no prazo de quatro horas após a partida da aeronave para a qual tinha a reserva confirmada. Se a empresa de transporte aéreo não puder embarcar o passageiro com reserva confirmada, nesse interregno, deverá oferecer-lhe outro horário para vôo destinado à mesma localidade (podendo ser até de outra companhia aérea, através do chamado endosso do bilhete de passagem) ou, caso o passageiro prefira, reembolsar-lhe o valor despendido com a compra do bilhete. Esta é a regra do art. 230 do Código Brasileiro de Aeronáutica, cuja aplicação deve ser estendida aos casos de "overbooking", consoante escreve JOSÉ DA SILVA PACHECO (ob. cit., pág. 449). Caso o passageiro venha a sofrer prejuízos de maior monta que repute indenizáveis, deverá propor a ação judicial que entender adequada. Evidentemente, a prova do dano e o nexo causal entre este a impossibilidade de viajar no horário determinado pela companhia aérea, além da culpa grave ou dolo do transportador, caso o valor pleiteado seja superior aos limites legais, deverão ser plenamente demonstrados, o que também ocorre na hipótese de dano pessoal ao passageiro (injúria física, em razão de sinistro ou de evento ocorrido a bordo ou no curso das operações de embarque e desembarque), consoante prescreve o art. 256 , combinado com os arts. 246 e 248 da lei aeronáutica (Lei n. 7.565, de 19/12/86).
No que tange ao sumiço de bagagem, a questão se revela ainda muito polêmica, a despeito de um acórdão do Supremo Tribunal Federal determinando que um passageiro fosse indenizado por perdas e danos morais sofridos em decorrência do desaparecimento de uma de suas malas durante uma viagem internacional. A polêmica se tornou ainda mais candente quando alguns juristas passaram a vituperar o julgado do STF ao argumento de que um tratado internacional, na verdade a Convenção Internacional de Varsóvia, havia sido ostensivamente vilipendiado pelos Ministros que compuseram a Turma julgadora do caso na mais Alta Corte.
Realmente, o art. 22 da Convenção de Varsóvia preceitua que, não constando do conhecimento o valor da mercadoria transportada, aplica-se, como teto, para efeito de indenização ao passageiro prejudicado , no transporte aéreo internacional, o valor máximo de F$250,00 (duzentos e cinqüenta Francos-Ouro "Poincaré") por Kg de bagagem registrada. Em alguns Juizados Especiais, a questão vinha sendo interpretada de forma mais favorável ao transportador, a despeito de ter sido pedida a compensação por danos morais, entendendo-se que, "o simples aborrecimento ou sensação de desconforto que alega a autora ter sofrido não constitui dano moral suscetível de indenização". O julgado, proferido pelo 7o Juizado Especial Cível da Comarca da Capital do Rio de Janeiro (autos n. 7.852/96), acolheu, como pertinente, a regra da Convenção Internacional de Varsóvia, rejeitando-se o pedido de reparação por dano moral ("apud" Pedro Gordilho, o dano moral em direito aeronáutico - panorama da jurisprudência brasileira, Revista Brasileira de Direito Aeroespacial , n. 73, p. 16). Entretanto, no outro caso que atingiria a Suprema Corte, patrocinado, em causa própria, por um advogado carioca, o Ministro Marco Aurélio apreciou uma questão semelhante sob ângulos totalmente diversos. Asseverou ele em seu voto condutor (RE n. 171.720-9), julgado à unanimidade pela 2a. Turma do STF, que a ofensa à tranqüilidade do autor da demanda, bem como o enxovalhamento aos sentimentos e ao próprio afeto do demandante, então recorrente, configuraram, de forma inquestionável, o dano moral indenizável. Acrescentou que a prevalência do tratado se dá apenas em face da legislação interna infraconstitucional, havendo preeminência da Carta Magna de 05 de outubro de 1988, que expressamente prevê a indenização por dano moral (art. 5o. , X) sobre qualquer norma transnacional. Entendeu ainda o STF que a limitação indenizatória prevista na Convenção de Varsóvia somente compreende danos materiais, não se aplicando a danos morais devidamente comprovados. Deve ser ressaltado que a mesma demanda, em julgamento precedente no Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso especial, obteve julgamento diametralmente oposto, entendendo o Ministro Nilson Naves, relator da matéria, que, se o tribunal local (do Rio de Janeiro) considerara que o aborrecimento advindo do extravio de bagagem não seria capaz de causar desconforto a ponto de justificar a indenização por dano moral, não poderia o STJ fazê-lo, a menos que reexaminando o conjunto probatório, o que lhe seria vedado pela Súmula n. 7.
Já o atraso ou o cancelamento de vôos encontra na jurisprudência coetânea plena guarida para os reclamos de passageiros prejudicados por esta outra forma de inadimplemento do contrato de prestação de serviços de transporte aéreo. O próprio Código Brasileiro de Aeronáutica é bastante explícito quando determina que o transportador responde pelo dano decorrente de atraso do transporte aéreo contratado (art. 256, II, do Código Brasileiro de Aeronáutica). Os sobreditos arts. 230 e 231 da lei aeronáutica disciplinam a questão sob o ponto de vista das obrigações do transportador. As alternativas são limitadas e claras: ultrapassado o lapso temporal de 4 horas do momento em que o passageiro deveria ser embarcado, ou a companhia aérea o embarca em outra aeronave, da mesma empresa ou de outra, realizando o transporte sucessivo previsto no art. 259 do Código Brasileiro de Aeronáutica, ou devolve o valor do bilhete de passagem, caso o passageiro não queira viajar em outro vôo que decolar além das 4 horas. Demandas que venham a ser propostas contra o transportador, vindicando reparação de danos materiais e morais, deverão ser analisadas com a devida acuidade pelo Poder Judiciário, pois somente o elenco das provas apresentadas pelas partes poderá determinar se o demandante poderá ou não ser atendido.
A propósito, há mister em se destacar que nem sempre o transportador poderá ser taxado de responsável pelo atraso ou cancelamento do vôo. A aviação, como é cediço, depende sobremaneira das condições meteorológicas , assim como das condições operacionais dos aeródromos tanto para manobras de pousos quanto para decolagens. Fatores adversos decorrentes do clima e dos equipamentos de auxílio à navegação aérea podem ser determinantes de um prolongado atraso ou até do cancelamento de determinados vôos. No inverno rigoroso do hemisfério norte, "verbi gratia", aeroportos de grande movimento como o "OHare", em Chicago, ou mesmo
o conhecido Aeroporto Kennedy, em Nova Iorque, podem estar fechados por longas horas em razão de intensas nevascas. Nesta hipótese, pode ser aplicada a teoria da imprevisão, segundo a qual o transportador não poderia ser responsabilizado, a despeito de sua culpa presumida, em razão do contrato de transporte existente, pelo atraso ou cancelamento do vôo, em decorrência da cláusula "rebus sic stantibus". Ademais, como não podia ser diferente, a lei prevê que os atos de força maior e os de caso fortuito ("acts of God") sejam excludentes de responsabilidade. Não há, pois, como se falar em indenização devida pelos transportadores, nas hipóteses em que os atrasos ou cancelamentos dos vôos possam ser imputadas a tais fatores climáticos ou operacionais que afetem o adimplemento da obrigação contratual firmada com o passageiro.
Nota:
(*) F$ 250,00 (duzentos e cinquenta francos-ouro "Poincaré") equivalem a cerca de US$ 20,00 (vinte dólares). (volta ao texto)