Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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O COLAPSO DO SISTEMA DE VARSÓVIA

Observações realizadas por ocasião dos debates que levaram à elaboração do
Projeto da nova Convenção

Alessandra Andrade
A autora, formada pela UFMG, com curso pela SBDA, é mestre em Direito pela McGill University (Institute of Air and Space Law) e especializada em gerência da aviação civil pelo International Aviation Management Training Institute (Montreal), tendo acompanhado as reuniões da OACI para a elaboração do Projeto da nova Convenção.

I - Introdução

A quem quer que se detenha no exame dos princípios e normas que instituem o Sistema de Varsóvia em sua atual complexidade, emerge, sem sombra de dúvida, a convicção de que a realidade da aviação civil contemporânea, como se nos apresenta, em termos de Direito Internacional Privado, reflete uma situação de caos absoluto. A assustadora multitude de possíveis e potenciais combinações de regimes de responsabilidade aplicáveis ao contrato de transporte aéreo internacional resultam em inevitável discriminação entre os mesmos usuários de um sistema em desintegração.

A desintegração acelerada decorrente da ausência de uniformidade de um sistema irônica e unicamente criado para fomentar a integração e a uniformidade, se apresenta como um dos temas mais complexos e fascinantes da atualidade, dado o caráter polêmico que encerra. A necessidade imperiosa de levantar-se uma indagação consistente em seus novos rumos e perspectivas tem merecido a atenção de consagrados juristas e elementos da indústria do transporte aéreo, da "International Air Transport Association" ("IATA") e da Organização de Aviação Civil Internacional ("OACI"), suscitando inúmeras controvérsias e fomentando as mais exacerbadas discussões em foro internacional.

Desafiando conceitos fundamentais, numa época de prolongada crise financeira, marcada por tendências diferentes e muitas vezes contraditórias, pela primeira vez, parece constituir-se uma unidade de dimensões universais que caminha para desembocar-se em uma das mais transcedentais mudanças em matéria de direito aeronáutico, marcando uma etapa em que as mais tradicionais concepções parecem ter sido substancialmente modificadas.

Trata-se do Projeto de Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional aprovado pelo Grupo Especial para a Modernização e Consolidação do "Sistema de Varsóvia", em Abril de 1998, sob os auspícios da OACI.

II - Aspectos Históricos

Embora seja de nosso desejo uma apreciação não muito aprofundada sobre a evolução deste sistema devido à sua complexidade, não poderíamos deixar de tecer ligeiras considerações a este respeito, limitando-nos à enumeração de seus diversos aspectos e conseqüências, pela importância decisiva que a experiência demonstrou ter na definição do regime jurídico de responsabilidade relativo ao transporte aéreo internacional.

A doutrina é uniforme no apontar a origem histórica da unificação do direito internacional privado aeronáutico nos princípios estabelecidos pela Convenção de Varsóvia de 1929, mediante os quais foi possível eliminar a maior parte dos conflitos de leis e questões jurisdicionais suscitados à época.

Muito embora se revelara possível um consenso quanto aos requisitos formais dos documentos de transporte e sua relevância legal, bem quanto ao regime de responsabilidade, princípios relativos ao transporte sucessivo e combinado e normas respeito à jurisdição, desde os primórdios de dita legislação aeronáutica, os limites de responsabilidade constituíram elemento de substancial controvérsia, escapando a quaisquer esforços satisfatórios de uniformização.

A bem da verdade, os mesmos princípios são hoje objeto de críticas que poderiam traduzir-se facilmente em excessivas formalidades, inaceitável obsoletismo, e limitado alcance jurisdicional.

Cumpre salientar que a Convenção de Varsóvia em sua forma original instituiu um regime de responsabilidade baseado na "culpa presumida" do transportador, invertendo o ônus da prova de sorte que sua responsabilidade se determinasse mediante mera prova da existência do dano, reservando-lhe, contudo, as defesas da lei. Quid pro quo, a responsabilidade encontra-se limitada à importância de 125.000 francos ouro ( cerca de US $ 10.000 ) por passageiro. Em se provando ser o dano proveniente de dolo ( ou culpa grave/equivalente ao dolo ) do transportista, não lhe assiste o direito de prevalecer-se das disposições que lhe excluam ou limitem a responsabilidade.

A propósito, as referidas disposições destinavam-se a constituir-se em medida ancilar para a proteção da incipiente atividade empresarial aeronáutica, proporcionando um balanço entre a necessidade de se proteger as companhias aéreas governamentais e as dificuldades enfrentadas pela vítima na prova da negligência, devido à natureza excessivamente técnica das provas requeridas.

Com efeito, os referidos limites logo se revelaram inadequados, de sorte que, após amplos debates, a comunidade internacional houve por bem emendar a convenção, através da adoção do Protocolo de Haia, em 1955. Dentre outras mudanças, o protocolo foi responsável pela duplicação dos limites de responsabilidade por morte e lesão ao passageiro para 250.000 francos ouro (aproximadamente US$ 20.000), simplificação dos documentos de transporte e esclarecimento do conceito de "wilful misconduct" (dolo ou culpa grave).

Malgrado os esforços dos conferencistas em Haia, os Estados Unidos jamais ratificaram o instrumento, que hoje conta com 125 assinaturas apostas, e acabaram por desencadear crise mundial ao apresentar notificação de denúncia da Convenção.

Não obstante, acederam a uma solução temporária, sob os auspícios da IATA, através da celebração do Acordo de Montreal de 1966 que, por seu turno, não constitui emenda à Convenção, mas contrato firmado entre os próprios transportistas aéreos operando desde, para e via território americano. Assegurando o aumento dos limites de responsabilidade por morte e lesão ao passageiro para US $ 75.000, incluindo custas e despesas processuais, introduziu, pela primeira vez, o instituto jurídico da responsabilidade objetiva.

Outra importante aferição encontra-se consignada na Convenção de Guadalajara de 1961, que veio a esclarecer o âmbito de aplicação de ambos instrumentos ( Convenção de Varsóvia e Convenção de Varsóvia modificada em Haia ), para atingir tanto o transportador contratual quanto o transportador de fato.

Digno de nota, o primeiro conjunto de medidas realmente revolucionárias e modernizadoras, em verdade um compromisso entre os Estados Unidos e o resto do mundo, depreende-se dos princípios contemplados no chamado Protocolo da Guatemala de 1971 . Destacam-se: (i) a simplificação dos requisitos para o documento de transporte, a fim de se permitir o processamento eletrônico de dados e a substituição do ticket por um registro computadorizado; (ii) introdução de um regime de responsabilidade independente de culpa; (iii) imposição de um limite "inquebrável" de 1.500.000 francos ouro ( US $ 100.000 ), sujeito a ajustes periódicos; e (iv) adoção de um dispositivo permitindo aos Estados estabelecer um sistema de fundo de compensação complementar da indenização em caso de morte ou lesão ao passageiro.

A entrada em vigor do referido protocolo, que até hoje conta com apenas 11 assinaturas, foi inicialmente obstaculizada pelo fato de ter seus valores expressos em "francos ouro", em uma época de crise, quando os países membros do Fundo Monetário Internacional ("FMI") haviam decidido eliminar o ouro da base do sistema monetário internacional.

Ora, esta pretensa inconveniência não passou desapercebida pela OACI que, em 1975, realizou uma Conferência Diplomática, resultante na adoção dos Protocolos de Montreal no.s 1, 2 (em vigor desde 15 de fevereiro de 1996) e 3, com o objetivo único de substituir a cláusula ouro na Convenção de Varsóvia modificada em Haia e em Guatemala , respectivamente, pelo conceito de direitos especiais de saque ( SDR ). O Protocolo de Montreal no. 4, por seu turno, também concluído nesta ocasião, e em vigor desde 14 de junho de 1998, constituiu substancial melhora da Convenção emendada em Haia no que tange ao transporte aéreo de carga.

Da aparente injustificável delonga para a ratificação dos referidos protocolos nota-se, portanto, e cada vez mais acentuadamente, a insatisfação global quanto aos limites propostos. Sem embargo, na prática dos tribunais, propugna-se por se fazer uso de todos e quaisquer meios que permitam exceder os limites estabelecidos nos instrumentos em vigor.

Na mesma vertente, pode-se trazer à colação, um conjunto de iniciativas particulares por Estados e transportadores que se afiguram quase como uma emenda de facto ao sistema, contradizendo, por assim dizer, de forma inequívoca, os princípios da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados.

Destaca-se, neste contexto, a iniciativa precursora dos países pertencentes ao Grupo de Malta, consistente no aumento dos limites de responsabilidade do transportador a uma importância de 80.000 a 100.000 SDR imposto ao sistema nacional de licenciamento de transporte aéreo.

Ainda em 1985, a Corte Constitucional da Itália julgou inconstitucionais as disposições legais que efetivavam o regime de responsabilidade instituído pela Convenção de Varsóvia modificada em Haia, tendo sido imposto, por lei, um limite de 100.000 SDR a todos os transportadores italianos operando em qualquer parte do mundo, bem como a todos os transportadores estrangeiros operando, desde, até ou via território italiano.

De extrema relevância e guardando perfeita concordância com propostas contempladas posteriormente em foro da IATA, encontra-se a iniciativa dos transportadores japoneses que, em 1992, puseram-se de acordo para submeter-se, até o limite de 100.000 SDR, a um regime de responsabilidade objetiva, de sorte que não mais se prevaleceriam da defesa contemplada no artigo 20 da Convenção, qual seja, a prova de que o transportador e seus dependentes tomaram todas as medidas necessárias para que se evitara o dano, ou que lhes fora impossível tomá-las. Não obstante, na ausência de limites, em ações de responsabilidade acima deste valor, a responsabilidade baseia-se na culpa com a inversão do ônus da prova, conservando-se as defesas pertinentes.

Na mesma linha, dentre outras iniciativas com o escopo de proporcionar um aumento substancial dos limites estabelecidos na Convenção, destacam-se a Recomendação adotada pela Conferência Européia de Aviação Civil ("ECAC") e semelhante iniciativa por parte do governo australiano, em 1995.

Fragmentava-se enfim, e definitivamente, o confuso e obsoleto Sistema de Varsóvia, fazendo-se mister um esforço conjunto a fim de se encontrar meios urgentes para uma solução de caráter uniforme e universal.

Efetivamente, a primeira iniciativa em âmbito universal desenvolveu-se em 1995 sob os auspícios da IATA, culminando na adoção, em Kuala Lumpur, do chamado "IATA Intercarrier Agreement" ("IIA"), que se caracteriza, dentre outras particularidades, por instituir uma renúncia dos limites de responsabilidade, a fim de se garantir a absoluta reparação dos danos compensatórios.

Em 1996, elaborou-se o denominado "Agreement on Measures to Implement the IATA Intercarrier Agreement" ("MIA"), em virtude do qual, os transportadores signatários concordavam em abster-se de invocar os limites de responsabilidade relativos ao transporte de passageiros dispostos na Convenção de Varsóvia, e as defesas contempladas em seu artigo 20, com relação a ações de valor não excedente a 100.000 SDR. Resguardava-se-lhes, ainda, a opção de acordar que, sujeitos à lei aplicável, os danos compensatórios indenizáveis poderiam ser determinados por referência à lei do domicílio ou residência permanente do passageiro.

É importante, contudo, que se permaneça consciente da verdadeira dimensão dos interesses da indústria do transporte aéreo na análise dos efeitos potenciais deste documento, principalmente em se considerando que as referidas negociações foram conduzidas por uma associação de companhias aéreas, guiadas por um interesse de esclarecer e discriminar riscos a serem administrados, e assim evitar extensos e onerosos litígios. Ademais, merece legítima consideração o fato de refletir expectativas e condições específicas ditadas pelos interesses dos Estados Unidos.

Em razão da importância dessas considerações, como conseqüência inequívoca das expectativas políticas e sócio-econômicas relativas à limitação da responsabilidade, e com supedâneo em entendimento universal da necessidade de um esforço conjunto de cooperação para se evitar maiores ineqüidades, a 31a. Sessão da Assembléia da OACI, em 1995, houve por bem dirigir o Conselho que continuasse seus esforços visando à expedita modernização do Sistema de Varsóvia.

III - Da Ação da OACI

A propósito, e antes de tentar escandir as inúmeras outras indagações de natureza substantiva que cercam o tema da modernização e uniformização do Sistema de Varsóvia, se nos assevera considerar, a título de informação, os trâmites das negociações efetuadas em foro internacional através da OACI.

A fim de implementar a referida decisão da 31.a Assembléia, o Conselho da OACI houve por bem estabelecer um Grupo de Estudos da Secretaria ("Study Group") para assistir ao "Departamento Jurídico" nesta tarefa, entre cujos membros destaca-se a presença de personalidades jurídicas de renome internacional.

Dentre as deliberações e recomendações exaradas na ocasião e submetidas ao Conselho em sua 147a. Sessão, destaca-se a "adoção de um novo instrumento jurídico internacional para a consolidação e modernização do Sistema de Varsóvia."

Em março de 1996, o Conselho decidiu referir o assunto ao "Comitê Jurídico" e requerer ao Departamento Jurídico, assistido pelo Grupo de Estudos, a apresentação de um primeiro projeto do novo instrumento, que lhe foi submetido para sua informação em outubro daquele ano.

Foi em um contexto de insatisfação geral, onde já não mais se justificavam perante a indústria de transporte aéreo e a comunidade internacional os objetivos circunstanciais que levaram à assinatura da Convenção de Varsóvia, que se prosseguiu, em Abril de 1997, à 30a. Sessão do Comitê Jurídico da OACI, com o objetivo de revisar, modernizar e consolidar o Sistema de mesmo nome.

Da análise das discussões e deliberações respeito à forma do novo instrumento, é deveras interessante observar que, muito embora se considerara efetuar a modernização mediante protocolos de emendas, a maioria absoluta das delegações ali presentes propugnou-se pela criação de um instrumento único que, com base em princípios de justiça e eqüidade, consolidasse e atualizasse o complexo sistema, em busca de compromisso e ratificabilidade.

Apostos os comentários do Relator, Vijay Poonoosamy, das Ilhas Maurício e após extensas considerações sobre o projeto apresentado pelo Departamento Jurídico, um Grupo de Redação terminou por adotar um novo texto, intitulado "Projeto de Convenção para a Unificação de Certas Regras para o Transporte Aéreo Internacional" .

O projeto aprovado nos finais desta Sessão optou por preservar a estrutura original da Convenção de Varsóvia de 1929, introduzindo os câmbios necessários e elementos inovadores com respeito, sobretudo, ao regime e limites de responsabilidade, documentos de transporte e jurisdições competentes. Ao mesmo tempo, procurando refletir a prática moderna, incorporou elementos do Protocolo de Montreal no. 4 relativos ao transporte carga, bem como da Convenção de Guadalajara, relativos à prática do "code-sharing" (código-compartido).

Sem embargo dos esforços realizados em busca de um consenso universal, os mesmos dispositivos, bem como outros elementos jurídicos fundamentais ou de natureza substancial acabaram por ensejar acerbas discussões. Dentre eles, destacam-se as disposições relativas ao regime de responsabilidade respeito ao passageiro, a inclusão de uma cláusula de ajuste automático dos limites de responsabilidade, e a incorporação de uma quinta jurisdicão, em caráter adicional, com base no domicílio ou residência permanente do passageiro.

Diante das inúmeras controvérsias e distintas ponderações, o Comitê Jurídico houve por bem destiná-los à consideração posterior, como forma futura de opção. Fazia-se mister um estudo mais objetivo, que pudesse ensejar unanimidade de críticas em um texto uniforme e equitativo.

Para estes efeitos, em Novembro de 1997, o Conselho decidiu criar o chamado Grupo Especial para a Modernização e Consolidação do Sistema de Varsóvia com o objetivo de elaborar sugestões de compromisso ou possíveis alternativas, particularmente com relação às disposições pendentes de discussão, bem como esclarecimentos de caráter linguístico e editorial. A finalidade era lograr um texto passível de ratificação e consistente com os objetivos de unificação e simplicidade, tomando por base o projeto, os comentários dos Estados-membros, relatórios e outros documentos relevantes. Refletindo representação apropriada de diferentes sistemas jurídicos e consistência entre as diversas línguas, o Grupo era composto por 20 membros, quais sejam Alemanha, Arábia Saudita, Austrália, Chile, China, Colômbia, Côte d’Ivoire, Estados Unidos, Etiópia, Federação Russa, França, Índia, Itália, Jamaica, Japão, Nigéria, Reino Unido e Suécia. Como membros ex-oficio, Egito, Canadá, Nepal ( como Presidente e Vice-presidentes do Comitê Jurídico ) e Ilhas Maurício ( como Relator ). A IATA e a "União Internacional de Seguradores Aéreos" ("IUAI") participaram na condição de observadores.

Havendo debatido ampla e exaustivamente reincidentes questões de natureza substancial, finalmente foi possível chegar a uma solução compromissória e harmoniosa, resultante na adoção de um texto uniforme, fazendo juz aos princípios da restituição e equitabilidade, conforme expressa disposição no preâmbulo do mesmo Projeto de Convenção.

Os resultados do trabalho deste Grupo Especial , que se reuniu em Montreal no período de 14 a 18 de Abril de 1998, foram apresentados ao Conselho, em sua 154 a. Sessão, para consideração. A proposta final de Projeto de Convenção adotada pelo grupo deverá ser submetida em breve, através do Conselho, à aprovação de uma Conferência Diplomática.

IV - Do Projeto de Convenção : Aspectos Substanciais

A análise do Projeto permite-nos estabelecer uma série de conclusões e observações pertinentes ao "novo" instrumento que pretende, em futuro próximo, substituir o complexo Sistema de Varsóvia na determinação dos princípios de direito internacional privado condutores do transporte aéreo internacional.

1. Regime de Responsabilidade do Transportador

a ) Morte ou Lesão ao Passageiro

Com supedânio em entendimento decorrente dos comentários dos Estados em resposta à solicitude da OACI, mediante a State Letter LE 4/5 - 97/65, afastando-se do texto adotado pelo Comitê Jurídico que apresentara regimes opcionais à eleição de cada Estado-parte no momento da ratificação, foi possível iniciar as discussões considerando-se a preponderância do conceito de um regime de responsabilidade em dois níveis, compreendendo a noção de responsabilidade objetiva até o limite de 100.000 SDR.

Em seu segundo nível, na ausência de limites específicos, discutiu-se a possibilidade da inversão do ônus da prova. Sugestões variavam quanto a desenvolver um ônus da prova em caráter menos oneroso para o transportador, ou, por outro lado, restringir o tipo de dano passível de indenização.

Propugnava-se neste segundo nível por um regime baseado na culpa presumida do transportador, desde que se trabalhasse a noção de culpa ou negligência em uma terminologia mais adequada, que refletisse um consenso entre os mais variados entendimentos de diversos sistemas jurídicos.

Solução unânime foi encontrada a partir de uma linguagem combinada e da introdução explícita de uma defesa adicional que, sem sombra de dúvida, garantirá maior suporte à Convenção. Assim, o transportador se libera de sua responsabilidade se prova que (i) ele e seus dependentes tomaram todas as medidas necessárias para que não se produzira o dano; ou (ii) não lhes foi possível tomá-las; ou (iii) o dano causado se deveu unicamente à negligência ou outro ato ilícito ou omissão de uma terceira parte.

Com respeito ao inciso (iii) acima, em se suprimindo como não necessária uma possível referência ao artigo 35 do Projeto de Convenção relativo à responsabilidade solidária dos transportadores contratual e de fato, o entendimento geral foi que ambos não se consideram "terceiros" em termos desta disposição.

A defesa da "culpa compartida" permanece para o transportador em ambos os níveis, bem como o direito de recurso contra terceiros, sem prejuízo de sua responsabilidade objetiva no primeiro nível.

Outro esclarecimento importante se trata da inclusão no caput deste artigo do termo "por passageiro", indicando que o limite proposto de responsabilidade por morte ou lesão se refere a cada passageiro.

b ) Extensão dos Danos Indenizáveis

Com o intuito de restaurar certo grau de equanimidade respeito aos interesses do passageiro e do transportador, devido à inversão do ônus da prova, discutiu-se uma possível limitação da extensão e tipos de danos contemplados.

Em princípio, no texto aprovado pelo Comitê Jurídico, a referência ao termo "lesões mentais" procurava apenas reconhecer a existência de extensa jurisprudência interpretativa da Convenção de 1929, no sentido em que se permite, em certas circunstâncias, a restituição destes danos quando sofridos em consequência de lesões corporais. Por outro lado, recomendava-se maior esclarecimento quanto à terminologia ou mesmo mudanças de caráter linguístico em sua definição, a fim de se evitar futuras interpretações de amplitude exagerada com relação à responsabilidade do transportador, bem como ações intentadas em caráter frívolo e não meritório.

Contudo, na falta de consenso quanto à qualificação ou definição do termo, haja vista os riscos potencias que o conceito de lesões mentais ensejariam em um contexto de responsabilidade ilimitada, optou-se por excluí-lo, sem prejuízo, contudo da concessão de justa e apropriada compensação concedida desde que o dano se encontre relacionado às lesões corporais.

Ora, se por um lado, no interesse da proteção do consumidor, o passageiro se beneficiará enormemente do regime de responsabilidade proposto, sobretudo da responsabilidade ilimitada em seu segundo nível, merece legítima consideração o fato de que permanece a necessidade de que o passageiro efetue a prova do acidente, da existência e extensão dos danos, bem como de um nexo causal entre eles.

Quanto à extensão dos danos, vale ressaltar que o texto do novo projeto expressamente exclui a reparação dos chamados danos "punitivos", bem como qualquer tipo de danos não compensatórios. A inclusão deste dispositivo veio a exercer influência decisiva na aceitação da inversão do ônus da prova e aspectos relativos à quinta jurisdição.

c ) Perda ou destruição de bagagem

Em caso de perda ou destruição ou avaria de bagagem despachada incorporaram-se os princípios contidos no Protocolo de Guatemala de 1971 que estabelecem como defesa excludente da responsabilidade do transportador o defeito inerente, qualidade ou vício da bagagem. Em se tratando de bagagem de mão, a responsabilidade baseia-se na culpa do transportador que deverá ser provada pelo passageiro.

Amplo debate se seguiu a com respeito à introdução e definição de um lapso temporal para que se tivesse a bagagem como perdida, permitindo-se ao passageiro fazer valer contra o transportador os direitos oriundos do contrato de transporte. Um período de 21 dias pareceu razoável e foi aprovado pelo grupo.

 

2. Limites de Responsabilidade

a ) Bagagem – Mercadoria – Atraso no Transporte de Passageiros

Uma importante mudança foi a determinação da responsabilidade do transportador quanto à perda ou destruição de bagagem mediante um limite por passageiro, e não mais por bagagem despachada. Os limites relativos ao transporte de mercadorias continuarão a ser calculados por quilograma.

Na ausência de um consenso, os limites específicos de responsabilidade derivada tanto do transporte de bagagem e mercadorias quanto do atraso no transporte de passageiros, foram relegados à consideração posterior da Conferência Diplomática.

3. Revisão dos Limites de Responsabilidade

É fato incontroverso que dentre as mais importantes inovações que pretende trazer o novo instrumento encontra-se a criação de um mecanismo que possibilite efetuar uma revisão dos limites de responsabilidade contemplados pela Convenção, com o objetivo de manter os direitos especiais de saque (SDR) em nível adequado.

A razão deste dispositivo se encontra na limitada proteção oferecida pelos direitos especiais de saque contra a inflação, e, ainda assim, respeito somente às cinco moedas que fazem parte deste mecanismo como definido pelo Fundo Monetário Internacional, em um contexto em que fracassara qualquer tentativa de atualizar limites hoje excessivamente desgastados.

Segundo o projeto, os limites de responsabilidade estabelecidos em virtude da convenção deverão ser revisados a cada cinco anos, de acordo com um índice de inflação que corresponda à taxa de inflação acumulada desde a revisão anterior (ou, na primeira vez, desde a data da entrada em vigor da convencão), sob a condição de que dito índice haja sido superior a dez por cento. A determinação do índice de inflação a ser utilizado deverá ser a média ponderada entre as taxas anuais de aumento ou diminuição do índice de preços para o consumidor dos Estados cujas moedas compreendem o direito especial de saque.

Em princípio, com o intuito de se evitar a convocação de Conferências Diplomáticas apenas para a adoção de pequenos ajustes, aventou-se a possibilidade de se conferir poderes ao Conselho da OACI como órgão responsável por efetuar a revisão, requerendo-se para adoção da mesma o voto de 2/3 de seus membros. Esta decisão obrigaria indistintamente aos Estados-membros da convenção, exceto se a maioria registrara a sua desaprovação perante ao Conselho no limite de tempo prescrito (6 meses).

Este tema, contudo, suscitou inúmeras controvérsias sobretudo com relação ao princípio da soberania, já que uma decisão do Conselho poderia obrigar a um Estado contra a sua vontade na impossibilidade de notificação de diferenças, como no procedimento para a aprovação de anexos à Convenção de Chicago.

Ora, a prática convencional indica a probabilidade de que o Conselho da OACI apresente em sua composição membros que não sejam partes deste novo instrumento. A estes, portanto, não lhe deveriam ser concedidos direito de voto em assuntos relacionados à Convenção.

Neste sentido, veio a receber aprovação unânime a proposta de se conferir poderes para a revisão à pessoa do Secretário-geral da OACI, no exercício de suas funções de depositário da convenção, através da notificação dos resultados e consequências deste cálculo aos Estados-membros.

Vale ressaltar que esta revisão atingirá todos os limites de responsabilidade contemplados pela Convenção, quais sejam, por morte e lesão ao passageiro, perda, destruição ou avaria de bagagem e mercadoria, atraso no transporte de passageiro, bagagem e carga.

 

4. Documento de Transporte

O texto do novo projeto procurou, de maneira inequívoca, simplificar os requisitos formais dos documentos de transporte, de sorte que evidenciassem unicamente a informação necessária para indicar que o transporte se encontra regido pelos termos da Convenção. Tratam-se dos pontos de origem e destino e, caso os mesmos se encontrem no território de um mesmo Estado-parte e existam escalas previstas em território de outro Estado, a indicação de pelo menos uma delas.

O objetivo era modernizar, permitindo às companhias aéreas adotar eficientes procedimentos eletrônicos de "ticketing", reservado, todavia, ao passageiro, o direito de requerer uma declaração escrita do bilhete.

Quanto à bagagem despachada, uma etiqueta de identificação para cada item deverá ser entregue ao passageiro como suporte de seus direitos em ações potenciais.

Entendimento unânime demonstrou que o aviso escrito que receberá o passageiro revelando que o transporte se encontra regido pelos termos da Convenção, inclusive aqueles relativos à limitação de responsabilidade não necessita acompanhar o ticket fisicamente.

Importante inovação concerne ao não-cumprimento pelo transportador dos requisitos formais do documento de transporte acima mencionados que não afetará a validade do contrato de transporte, o qual continuará sujeito às regras da Convenção, inclusive àquelas relativas à limitação da responsabilidade.

5. Arbitragem

O projeto de Convenção optou por excluir proposta do Grupo de Estudos, segundo a qual quaisquer disputas oriundas do contrato de transporte aéreo poderiam ser submetidas à arbitragem, reservando, contudo, esta alternativa para o transporte de carga.

Sem embargo destas estipulações, o entendimento do Grupo Especial revelou que a arbitragem permanece viável em qualquer Estado, desde que permita a lei nacional.

6. Transportador Contratual e Transportador de Fato

Na determinação da responsabilidade solidária do transportador contratual e do transportador de fato por seus atos e omissões, bem como pelos de seus dependentes desde que atuando no exercício de suas funções, buscou-se, em princípio, garantir proteção ao passageiro, mesmo no evento de lhe serem oferecidas condições menos favoráveis pelo transportador de fato.

Neste sentido, em se considerando estarem ambos transportistas em melhores condições de requerer indenização apropriada entre si, quaisquer obrigações assumidas pelo transportador contratual mediante contrato especial, renúncia de direitos conferidos pelo Convênio, ou declaração especial de valor (acima da limitação prevista), obrigariam também ao transportador de fato, independente de seu conhecimento ou assentimento.

Esta proposta não foi aceita pelo Grupo Especial. Entretanto, haja vista a eliminação dos limites de responsabilidade no segundo nível, acredita-se que o passageiro não será prejudicado pela não incorporação de dita provisão.

7. Seguro Obrigatório

De extremada relevância e refletindo uma realidade prática está a inclusão de cláusula referente ao seguro obrigatório do transportador que deverá ser suficiente para cobrir suas responsabilidades como dispostas na Convenção. Será responsabilidade dos Estados-membros exigi-lo como medida de salvaguarda dos direitos do passageiro contra a falência do transportador e semelhantes situações, em ações intentadas por ele ou em seu nome.

Adequou-se, contudo, a terminologia a fim de se esclarecer que o seguro obrigatório se exigirá sem prejuízo do direito de um Estado de estabelecer requisitos próprios bem como de requerer de quaisquer transportadores que operem a seu território evidência correspondente ao cumprimento desta obrigação.

Vale ressaltar que uma análise sócio-econômica realizada pela OACI em cooperação com a IATA concluiu que o impacto das mudanças nos limites de responsabilidade sobre os prêmios de seguro não será significativo. Em termos de aumento do custo total da operação ou de tarifas, espera-se que o custo adicional aos passageiros, com relação a transportadores com ótimos registros de segurança, seja calculado em meros centavos de dólar por viagem. Em se tratando de transportadores provenientes de países em desenvolvimento, não parece que dito aumento de custos excederá de 2 dólares por viagem redondo. Particularmente, aqueles transportadores que hoje operam aos Estados Unidos, ou via território americano, terão estes custos mitigados, uma vez que os prêmios já levam em consideração, quando de seu cálculo, os valores excessivos hoje ali concedidos em ações de reparação de danos e, até mesmo, em algumas jurisdições, de despropositados danos punitivos.

8. Jurisdição

Segundo o disposto no artigo 28 da Convenção de Varsóvia incorporado ao projeto de convenção, a ação de responsabilidade deverá intentar-se, à escolha do autor, no território de um Estado-parte seja perante o tribunal (i) do domicílio do transportador; (ii) da sede principal de seu negócio; (iii) do lugar onde possui o estabelecimento por cujo intermédio se tenha realizado o contrato; (iv) do lugar de destino.

Dentre as mudanças mais significativas introduzidas pelo Projeto, se nos assevera salientar a indiscutível polêmica que encerra o instituto jurídico da quinta jurisdição, verdadeiro berço de controvérsias relativas à conveniência de se proporcionar um forum adicional, baseado no "domicílio" ou "residência permanente" do passageiro, onde ações de responsabilidade relativas à morte ou lesão ao passageiro poderiam ser intentadas, conservando-se como alternativas possíveis as quatro jurisdições anteriormente citadas.

Ora, nas mais remotas discussões a respeito deste tema, restou demonstrada grave relutância em sua aquiescência por parte de Estados e transportadores aéreos, em sua maioria renuentes em assumir o risco de defender-se contra ações intentadas onde a compensação dos danos determinada pelos tribunais poderia alcançar valores exorbitantes e despropositados.

Não obstante, argumentos em defesa da quinta jurisdição originaram-se dos inadequados limites de responsabilidade consignados pelo Sistema de Varsóvia.

Sem embargo de tais ponderações, amplos debates realizados pelo Comitê Jurídico vieram a demonstrar a incompatibilidade do instituto da quinta jurisdição com a doutrina prevalente de direito internacional privado, que requer a existência de um claro nexo entre a relação contratual em questão e a jurisdição escolhida. Fazia-se necessário desenvolver critérios adequados e passíveis de aceitação que evidenciassem a conexão entre o passageiro e o Estado da jurisdição onde se intenta a ação, bem como entre a presença comercial do transportador e a jurisdição do lugar do "domicílio" do passageiro.

Ainda a respeito da matéria suscitada, fazia-se mister encontrar definições precisas e apropriadas para as noções de domicílio e residência, haja vista suas diferentes percepções nos mais variados sistemas jurídicos, o que poderia implicar sérias consequências legais.

Se por um lado desenvolvera-se nos trabalhos do Grupo Especial um consenso respeito ao termo "domicílio", como que se referindo a uma localidade geográfica definida, é cediço que o termo apresenta diferentes conotações perante os tribunais do sistema da common law, divergências estas que chegam a evidenciar-se até mesmo nas traduções das versões de língua inglesa da Convenção de Varsóvia. Enquanto o Reino Unido utiliza em sua versão o termo "residência ordinária" do passageiro, a mesma nocão causaria problemas nos Estados Unidos, onde já se desenvolveu extensa jurisprudência a respeito de "domicílio".

Após a refutação de diversos termos propostos, e tendo em vista que não obstante a terminologia adotada, a determinação da "residência" do passageiro deverá ser efetuada com base em fatos à época do acidente, uma solução consensual propugnou-se pela adoção conjunta dos termos "residência principal e permanente", referindo-se ao lugar em que de fato o passageiro possui sua "moradia" fixa e permanente.

Com o escopo de estabelecer um nexo bastante claro entre a quinta jurisdição e a operação do transportador, a fim de restringir de maneira inequívoca a disponibilidade e extensão desta opção, modificou-se a redação do artigo proposto, sujeitando esta escolha, sem prejuízo das jurisdições pré-existentes, a uma série de condições de caráter específico. Sendo assim, com respeito aos danos resultantes de morte ou lesão ao passageiro, a ação de responsabilidade poderá ser intentada no território de um Estado-parte em que, à época do acidente, o passageiro possua sua residência principal e permanente, território este ao qual ou a partir do qual o transportador, contratualmente ou mediante um transportador de fato, opere serviços de transporte aéreo. Ademais, o transportador deverá conduzir ditas operações na jurisdição concernente a partir de locais de sua propriedade, por ele arrendados, ou de propriedade ou arrendados por outro transportador com quem possua um "acordo comercial".

Com o intuinto de se precluir futuras controvérsias com relação à extensão da terminologia adotada, optou-se por incorporar ao texto uma definição do termo "acordo comercial" que evidenciara a provisão ou marketing de "joint-services", relativos ao code-sharing e às alianças .

Por derradeiro, em virtude de grande insistência por parte da França durante toda a reunião, como medida de compromisso, encontra-se incorporado ao projeto que será submetido, através do Conselho, à apreciação de uma Conferência Diplomática, um dispositivo que, se adotado, permitirá a um Estado optar, quando da ratificação ou adesão à convenção pela não aplicabilidade a si e a seus transportadores da cláusula relativa à quinta jurisdição, mediante declaração e notificação que o obrigará perante a todos os Estados-partes.

Se para muitos insatisfeitos a inclusão deste dispositivo poderá levar à desunificação das normas relativas à jurisdição, o Estado proponente acredita que na existência prévia de quatro jurisdições possíveis, já não existe uniformidade com relação aos tribunais a que se pode recorrer, justificando-se a importância da consideração de sua proposta como medida eficaz para garantir a ratificação universal do instrumento.

Vale ressaltar que os Estados Unidos deixaram bem claro que não ratificarão a nova convenção na ausência deste instituto.

V. - Conclusão

Com esta colocação nos parece que, sumariamente, abordamos o tema em toda a sua horizontalidade. Restou claro que, diante da atual realidade do Sistema de Varsóvia, a multiplicidade de instrumentos que afetam seu conteúdo nada mais fez que aumentar as diferenças entre as diversas soluções aplicadas por distintos Estados-membros para dirimir questões de responsabilidade suscitadas por seus nacionais ou contra eles. Neste sentido, o esforço realizado pela OACI, consistente em promover a criação de um Projeto de Convenção que pretende atualizar o conteúdo do sistema contemporâneo, superando suas limitações e capitalizando seus atributos, demonstrou-se fundamental para se alcançar a harmonização do Sistema de Varsóvia. Cumpre, agora, à comunidade internacional determinar se votará pela uniformização e harmonização ou pelo atual caos imperante na matéria. Está em suas mãos resolver a única questão que continua no ar com relação ao regime de responsabilidade aplicável ao transporte aéreo internacional.

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