Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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A LEGISLAÇÃO APLICÁVEL AO TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL
José Gabriel Assis de Almeida

1. Introdução

O transporte aéreo internacional é hoje uma realidade do quotidiano de inúmeras pessoas. Com efeito, nos últimos anos, o transporte aéreo internacional banalizou-se, tornando-se cada vez mais um corriqueiro meio de transporte.

Os dados e as estatísticas demonstram este fato . No mundo, o tráfego aéreo internacional regular cresceu 9% no ano de 1997 em comparação com o ano de 1996, sendo que o tráfego aéreo nacional cresceu um pouco menos, 7%. As previsões para os próximos vinte anos são de um crescimento anual de 5%. Em termos de número de passageiros, o ano de 1997 registrou o transporte de mais um bilhão e quinhentos milhões de passageiros em todo o mundo do que em 1996.

Esta situação é ainda mais aguda no Brasil, por razões geográficas. O tamanho do território brasileiro torna inviável a deslocação ao exterior por outros meios que não o transporte aéreo. Dois outros fatores contribuem ainda para incentivar o transporte aéreo. Por um lado, a localização do Brasil, na América Latina, longe dos grandes centros econômicos e turísticos mundiais. E por outro lado, a inserção - cada vez maior - do Brasil na vida e na economia mundial, que aumentou consideravelmente o intercâmbio e as necessidades de viagens internacionais. Assim, as estatísticas da Embratur indicam que, no ano de 1997, foram realizadas 4.582 milhões viagens por via aérea do Brasil para o exterior, o que representa um incremento de 27,7% com relação aos números de 1996 . Os dados indicam ainda que hoje há mais 32% de vôos saindo do Brasil para a Europa e o Estados Unidos do que em 1997 .

Porém, surpreendentemente, a popularização do transporte aéreo internacional não foi acompanhada da divulgação das regras jurídicas que regulam esta atividade. Basta considerar que no Brasil o único livro contendo a legislação aplicável ao transporte aéreo estás esgotado há quase uma década. E a doutrina, salvo raras e honrosas exceções, também não tem demonstrado maior interesse com relação ao direito aeronáutico. A estes fatos, soma-se o fato do direito aeronáutico não ser matéria obrigatória na esmagadora maioria das Faculdades de Direito.

O resultado deste desconhecimento da matéria jurídica aeronáutica é uma errática aplicação das normas de direito por parte dos nossos tribunais, desvirtuando a natureza, o conteúdo e os objetivos das normas sobre transporte aéreo.

Uma das maiores dificuldades tem sido a de definir a legislação que rege, atualmente, o transporte aéreo internacional. A finalidade do presente artigo é precisamente procurar determinar a legislação aplicável.

2. A definição de transporte aéreo internacional

A definição de transporte aéreo internacional é dada pelo texto da Convenção de Varsóvia, de 1929, com a redação dada pelo Protocolo de Haia, de 1955.

Estes acordos internacionais entraram em vigor no Brasil em virtude dos Decretos de Promulgação, assinados pelo Presidente da República, nºs 20.604/31 e 56.463/65.

O art. 1º da Convenção de Varsóvia define ser transporte aéreo internacional o transporte em que o ponto de partida inicial e o ponto de destino final sejam situados em Estados distintos. Para esta definição, é irrelevante se o transporte realiza uma ou mais escalas em um único Estado. No entanto, o transporte será internacional se o vôo - apesar do ponto de partida e do ponto de destino estarem situados em um mesmo Estado - fizer escala em um Estado diferente do Estado de partida e de destino.

Deste modo, e exemplificando, um vôo que parta do Rio de Janeiro, faça escala em São Paulo e em seguida continue para Buenos Aires será um transporte internacional. Em contrapartida, um vôo que parta do Rio de Janeiro, faça escala em São Paulo e prossiga para Porto Alegre será um transporte nacional. Mas um vôo que saia do Rio de Janeiro, faça escala em Montevidéu e em seguida se dirija para Porto Alegre será um transporte internacional.

3. A aplicação da Convenção de Varsóvia e do Protocolo de Haia

No entanto, a Convenção de Varsóvia - com a redação do Protocolo de Haia - não se limitou a definir o que seria transporte aéreo internacional. Estes dois textos legais regem e regulam o contrato e a responsabilidade civil no transporte aéreo internacional.

Nesse sentido, o art. 1º da Convenção de Varsóvia é claro:

"A presente Convenção aplica-se a qualquer transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias, efetuado mediante remuneração. (...)"

Por outro lado, note-se que o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei n° 7.565/86) não veio revogar os textos acima.

Pelo contrário, o Código Brasileiro de Aeronáutica veio revigorá-los pois estabeleceu expressamente no seu art. 1° que:

"O Direito Aeronáutico é regulado pelos Tratados, Convenções e Atos Internacionais de que o Brasil seja parte, por este Código e pela legislação complementar."

Consequentemente, os textos base que regulam o transporte aéreo internacional no Brasil são a Convenção de Varsóvia, com a redação dada pelo Protocolo de Haia.

O Código Brasileiro de Aeronáutica aplica-se unicamente de forma subsidiária e somente nas matérias não reguladas expressamente pelos dois textos internacionais acima mencionados.

Da mesma forma, a Portaria 957/89 do Ministério da Aeronáutica tem aplicação meramente complementar e subsidiária.

4. A não aplicação do Protocolo de Guatemala e dos Protocolos de Montreal

De notar que, em diversas oportunidades, os Estados signatários da Convenção de Varsóvia e do Protocolo de Haia procuraram rever estes dois textos básicos.

Assim, por exemplo, foram redigidos o Protocolo da Guatemala de 1971 e os Protocolos de Montreal de 1975.

Existe alguma confusão sobre a vigência ou não destes textos que importa esclarecer.

Para tanto é necessário lembrar que a vigência das normas de direito internacional público se faz - de acordo com a ordem jurídica brasileira - a dois níveis. Ou seja, é necessário, em primeiro lugar, que o texto legal tenha validade na órbita do direito internacional. E, em seguida, é necessário que o texto legal internacional tenha sido incorporado à ordem jurídica brasileira.

Deste modo, de acordo com o sistema adotado no Brasil, as normas de direito internacional público têm a sua exigibilidade no território brasileiro condicionada ao cumprimento de dois requisitos: (a) exigibilidade na ordem jurídica internacional; (b) transposição para a ordem jurídica interna.

Assim, a análise da aplicabilidade dos dois supracitados textos (Protocolo da Guatemala de 1971 e os Protocolos de Montreal de 1975) depende da verificação dos dois requisitos acima.

O Protocolo de Guatemala de 1971 ainda não entrou sequer em vigor no plano internacional pois não foi atingido o número mínimo de ratificações necessárias. Assim, não estando sequer vigente na ordem jurídica internacional, não se coloca sequer a questão da sua exigibilidade na ordem jurídica interna.

A situação relativa aos Protocolos de Montreal apresenta algumas nuances.

Os Protocolos de Montreal têm duas finalidades precípuas. A primeira é o aumento dos valores estipulados como limite da responsabilidade presumida previstos na Convenção de Varsóvia e já revisto no Protocolo de Haia. A segunda finalidade é modificar o padrão monetário das indenizações, substituindo os francos-ouro Poincaré pelos Direitos Especiais de Saque (DES), adaptando o critério usado ao sistema monetário posterior à declaração Nixon sobre a conversibilidade dólar/ouro.

Nesse sentido, o Protocolo nr. 1 de Montreal reproduz o texto da Convenção de Varsóvia, simplesmente substituindo os valores indicados em francos-ouro Poincaré por DES. O Protocolo nr. 2 reproduz o texto da Convenção de Varsóvia, tal como modificado pelo Protocolo de Haia, com a modificação dos valores e a sua indicação em DES. O Protocolo nr. 3 faz o mesmo com o texto do Protocolo de Guatemala e o Protocolo nr. 4 estabelece regras semelhantes para o transporte de mercadorias.

Ocorre que os Protocolos nrs. 1 e 2 de Montreal durante mais vinte anos não obtiveram o número de ratificações necessárias.

Consequentemente, a jurisprudência e a doutrina eram unânimes em considerar estes textos inaplicáveis, no Brasil, ao transporte aéreo internacional

Nesse sentido, é o acórdão deste Excelso Supremo Tribunal Federal, proferido no RE n° 113.498-4/RJ, de lavra do Ministro Francisco Rezek, publicado na Lex JSTF, n° 117/179.

Veja-se igualmente o seguinte trecho de acórdão proferido pela Eg 7a Câmara do 1° Tribunal de Alçada Civil de São Paulo:

"Tratando-se de transporte aéreo internacional, vigora, no caso, a Convenção de Varsóvia, com as alterações posteriores formuladas pelo Protocolo de Haia, pois, as mais recentes alterações introduzidas pelos Protocolos de Montreal, no ano de 1975 e cujos Protocolos Adicionais de n°s 1,2, 3, e 4, foram aprovados em nosso país pelo Decreto Legislativo n° 22 de 1979, não se encontram em vigendo, conforme já decidido neste Tribunal (...), pois ainda não foi atingido o quorum de ratificações (...)", (Embargos Infringentes n° 613.765-3/01;594.848-3, Rel. Juiz Candido Além, julgados em 28/03/95, Embargantes José Carlos Nogueira e outros, Embargada Tap Air Portugal, não publicado).

Ainda nesse sentido, veja-se também o artigo do Dr. Luís Camargo Pinto de Carvalho, Juiz do 2° Tribunal de Alçada Civil deste Estado, publicado na Revista do Advogado, n° 44 Outubro 94, pág. 43.

Porém, após mais de vinte anos de espera, os Protocolos nrs. 1 e 2 de Montreal atingiram o número mínimo de ratificações. Assim, é indubitável que atualmente os ditos Protocolos estão em vigor na ordem jurídica internacional.

No entanto, é preciso também examinar se os mesmos já foram transpostos para a ordem jurídica interna, segunda condição para a sua vigência no Brasil.

A este propósito importa examinar o regime - estabelecido na Constituição da República - para a transposição das normas internacionais para a órbita interna.

É sabido que, entre as diversas deficiências da atual Constituição, figura o tratamento desta matéria. Somente dois dispositivos - os arts. 84, VIII, e 49, I - tratam da questão.

Não cabe aqui examinar as discussões surgidas em torno destes dois artigos . Basta, de uma forma geral, constatar que é normalmente aceite que o tratado seja subscrito pelo Poder Executivo e que em seguida o ato de subscrição seja aprovado pelo Congresso Nacional. Esta aprovação do ato de subscrição leva a forma de um Decreto Legislativo que é, normalmente, publicado no Diário do Congresso Nacional.

Habitualmente, o passo seguinte é a publicação, no Diário Oficial da União, do Decreto do Presidente do Poder Executivo promulgando o tratado. A publicação deste Decreto presidencial é acompanhada da publicação do próprio texto do tratado. Após esta publicação considera-se, então, a norma internacional em plena vigência na ordem interna.

A particularidade dos Protocolos nrs. 1 e 2 de Montreal é que os mesmos foram subscritos pelos Poder Executivo, o ato de subscrição foi aprovado pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nr. 22/79, este decreto legislativo foi publicado, acompanhado do texto dos tratados, no Diário do Congresso Nacional.

Porém, até à data, ainda não foi publicado, no Diário Oficial da União o Decreto do Presidente da República, promulgando os Protocolos e acompanhado do texto destes.

Esta situação explica-se pelo fato dos referidos Protocolos terem sido subscritos pelo Poder Executivo e este ato de subscrição ter sido aprovado pelo Congresso Nacional, quando ainda não havia sido atingido o número de ratificações necessárias à vigência internacional dos textos.

Assim, naturalmente, o Poder Executivo ficou aguardando a vigência internacional dos textos em questão, para então, quando obtida essa vigência internacional, dar-lhes força de lei na ordem interna, através da publicação do decreto presidencial de promulgação.

Porém, repete-se, até à data não se verificou a publicação do decreto presidencial de promulgação.

Face a esta bizarra situação, alguns tribunais tem decidido que os Protocolos nrs, 1 e 2 de Montreal estão em vigor. Fundam-se estas decisões nos seguintes pontos.

O primeiro é que a Constituição da República não exige expressamente, para a validade da norma internacional na ordem jurídica interna, que haja a publicação do decreto presidencial de promulgação.

O segundo argumento é que o texto dos ditos Protocolos já foi aprovado pelo Congresso Nacional, nos termos do art. 84, VIII, da Constituição da República e publicado no Diário do Congresso Nacional.

Não obstante, esta posição está equivocada.

Não se trata sequer de discutir se o decreto presidencial de promulgação é ato indispensável ou não. Trata-se de examinar se o requisito imposto pelo art. 1o do Decreto-Lei 4.657/42, a Lei de Introdução ao Código Civil está preenchido. Segundo este dispositivo:

"Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o País 45 (quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada."

Deste modo, qualquer norma - seja de origem internacional seja de origem nacional - tem a sua vigência condicionada à prévia publicação oficial.

Poder-se-á argumentar que os Protocolos nrs. 1 e 2 de Montreal foram publicados no Diário do Congresso Nacional, estando assim preenchida a referida condição.

Porém, ocorre que o Diário do Congresso Nacional não é o órgão oficial para a publicação das normas jurídicas.

Com efeito, o Decreto 96.671/88, que regula a publicação dos atos oficiais, assim estabelece nos arts. 1o 2o e 3o :

"Art. 1º . Incumbe ao Poder Executivo, através do Departamento de Imprensa Nacional do Ministério da Justiça, a publicação:

"I – das leis e dos demais atos resultantes do processo legislativo previsto na Constituição;

"II – dos tratados, convenções e outros atos internacionais aprovados pelo Congresso Nacional;

"(...)

"Art. 2º . O Departamento de Imprensa Nacional do Ministério da Justiça exerce as suas funções de publicar atos e documentos oficiais por meio dos seguintes órgãos:

"I – "Diário Oficial";

"II – "Diário da Justiça";

"(...)

"Art. 3o . São obrigatoriamente publicados, na íntegra, no "Diário Oficial":

"I – as leis e os demais atos resultantes do processo legislativo previsto na Constituição;

"II – os tratados, convenções e outros atos internacionais aprovados pelo Congresso Nacional e os respectivos decretos de promulgação; (grifos acrescentados)

Deste modo, as disposições dos Protocolos nrs. 1 e 2 de Montreal, para vigerem no Brasil, dependem ainda da sua publicação no Diário Oficial, Seção I.

Como esta publicação ainda não ocorreu, não é legalmente possível afirmar que os referidos Protocolos estejam em vigor na ordem jurídica interna.

A este propósito, recente decisão do Supremo Tribunal Federal, a propósito de um outro acordo internacional, veio ratificar o entendimento acima exposto no sentido da não vigência dos Protocolos de Montreal.

Com efeito, em decisão relativa à aplicação do Protocolo sobre Medidas Cautelares adotado no âmbito do Mercosul, o Supremo Tribunal Federal proferiu, por unanimidade, decisão com a seguinte ementa:

"MERCOSUL. Protocolo de Medidas Cautelares (Ouro Preto/MG). Ato de direito internacional público. Convenção ainda não incorporada ao direito interno brasileiro. Procedimento constitucional de incorporação dos atos internacionais que ainda não se concluiu. O Protocolo de Medidas Cautelares adotado pelo Conselho do Mercado Comum (MERCOSUL), por ocasião de sua VII Reunião, realizada em Ouro Preto/MG, em dezembro de 1994, embora aprovado pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo nº 192/95), não se acha formalmente incorporado ao sistema de direito positivo interno vigente no Brasil, pois, a despeito de já ratificado (instrumento de ratificação depositado em 18/3/97), ainda não foi promulgado, mediante decreto, pelo Presidente da República. Considerações doutrinárias e jurisprudenciais em torno da questão da executoriedade das convenções ou tratados internacionais no âmbito do direito interno brasileiro. Precedentes: RTJ 58/70, Rel. Min. OSWALDO TRIGUEIRO - ADI nº 1.480-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO.

É ainda interessante transcrever o seguinte trecho – ainda que extenso - da decisão do relator, Min. Celso de Mello, onde a questão é examinada em profundidade:

"Nem se alegue, para justificar a pretendida concessão de exequatur, que as diligências rogadas - embora de caráter executório - encontrariam fundamento em convenção internacional consubstanciada no Protocolo de Medidas Cautelares aprovado pelo Conselho do Mercado Comum (MERCOSUL), por ocasião de sua VII Reunião, realizada em Ouro Preto/MG, nos dias 16 e 17 de dezembro de 1994.

"É que esse ato de direito internacional público, muito embora aprovado pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo nº 192/95), não se acha formalmente incorporado ao sistema de direito positivo interno vigente no Brasil, pois, a despeito de já ratificado (instrumento de ratificação depositado em 18/3/97), ainda não foi promulgado, mediante decreto, pelo Presidente da República.

"Na realidade, o Protocolo de Medidas Cautelares (MERCOSUL) - que se qualifica como típica Convenção Internacional - não se incorporou definitivamente à ordem jurídica doméstica do Estado brasileiro, eis que ainda não se concluiu o procedimento constitucional de sua recepção pelo sistema normativo brasileiro.

"A questão da executoriedade dos tratados internacionais no âmbito do direito interno - analisado esse tema na perspectiva do sistema constitucional brasileiro, tal como resultou debatido no julgamento da ADI nº 1.480-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO - supõe a prévia incorporação desses atos de direito internacional público ao plano da ordem normativa doméstica.

"Não obstante a controvérsia doutrinária em torno do monismo e do dualismo tenha sido qualificada por CHARLES ROUSSEAU ("Droit International Public Approfondi", p. 3/16, 1958, Dalloz, Paris), no plano do direito internacional público, como mera "discussion d'école", torna-se necessário reconhecer que o mecanismo de recepção, tal como disciplinado pela Carta Política brasileira, constitui a mais eloqüente atestação de que a norma internacional não dispõe, por autoridade própria, de exeqüibilidade e de operatividade imediatas no âmbito interno, pois, para tornar-se eficaz e aplicável na esfera doméstica do Estado brasileiro, depende, essencialmente, de um processo de integração normativa que se acha delineado, em seus aspectos básicos, na própria Constituição da República.

"Daí a precisa observação de JOÃO GRANDINO RODAS ("Tratados Internacionais", p. 17, item n. 8, 1991, RT):

"É corolário da teoria dualista a necessidade de, através de alguma formalidade, transportar o conteúdo normativo dos tratados para o Direito interno, para que estes, embora já existentes no plano internacional, possam ter validade e executoriedade no território nacional. Consoante o monismo, não será necessária a realização de qualquer ato pertinente ao Direito interno após a ratificação.

Grande parte dos Estados, seguindo a concepção dualista nesse pormenor, prescreve sejam os tratados já ratificados incorporados à legislação interna através da promulgação ou simples publicação." (grifei)

"Não obstante tais considerações, impende destacar que o tema concernente à definição do momento a partir do qual as normas internacionais tornam-se vinculantes no plano interno excede, em nosso sistema jurídico, à mera discussão acadêmica em torno dos princípios que regem o monismo e o dualismo, pois cabe à Constituição da República - e a esta, somente - disciplinar a questão pertinente à vigência doméstica dos tratados internacionais.

"Sob tal perspectiva, o sistema constitucional brasileiro - que não exige a edição de lei para efeito de incorporação do ato internacional ao direito interno (visão dualista extremada) - satisfaz-se, para efeito de executoriedade doméstica dos tratados internacionais, com a adoção de iter procedimental que compreende a aprovação congressional e a promulgação executiva do texto convencional (visão dualista moderada).

"Uma coisa, porém, é absolutamente inquestionável sob o nosso modelo constitucional: a ratificação - que se qualifica como típico ato de direito internacional público - não basta, por si só, para promover a automática incorporação do tratado ao sistema de direito positivo interno. É que, para esse específico efeito, impõe-se a coalescência das vontades autônomas do Congresso Nacional e do Presidente da República, cujas deliberações individuais - embora necessárias - não se revelam suficientes para, isoladamente, gerarem a integração do texto convencional à ordem interna, tal como adverte JOSÉ FRANCISCO REZEK ("Direito Internacional Público", p. 69, item n. 34, 5ª ed., 1995, Saraiva).

"Desse modo, e para além da controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas, impõe-se reconhecer que, em nosso sistema normativo, é na Constituição da República que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao ordenamento doméstico brasileiro. Para esse efeito, a Lei Fundamental da República qualifica-se como a sedes materiae que se mostra essencial à identificação do procedimento estatal concernente à definição do momento a partir do qual as normas constantes de tratados internacionais passam a vigorar, com força executória, no plano do sistema jurídico nacional.

"O exame da Carta Política promulgada em 1988 permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe - enquanto Chefe de Estado que é - da competência para promulgá-los mediante decreto.

"A própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao analisar a questão pertinente à inserção dos atos internacionais no âmbito do direito positivo interno brasileiro, destacou - na perspectiva da disciplina constitucional que rege esse processo de recepção - que, "Aprovada essa Convenção pelo Congresso Nacional, e regularmente promulgada, suas normas têm aplicação imediata, inclusive naquilo em que modificarem a legislação interna" (RTJ 58/70, Rel. Min. OSWALDO TRIGUEIRO).

"Esse entendimento jurisprudencial veio a ser confirmado e reiterado no julgamento da ADI nº 1.480-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, ocasião em que se enfatizou, uma vez mais, que o decreto presidencial, que sucede à aprovação congressual do ato internacional e à troca dos respectivos instrumentos de ratificação, revela-se - enquanto momento culminante do processo de incorporação desse ato internacional ao sistema jurídico doméstico - manifestação essencial e insuprimível, especialmente se considerados os três efeitos básicos que lhe são pertinentes: (a) a promulgação do tratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno.

"Lapidar, sob essa perspectiva, a decisão proferida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que, bem apreciando a questão da integração dos tratados internacionais ao nosso direito interno - e refletindo o próprio magistério da doutrina (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", vol. 2/21, 1992, Saraiva) -, acentuou:

"...No direito brasileiro, dá a Constituição Federal competência privativa ao Presidente da República para celebrar tratados e convenções internacionais ad referendum do Congresso Nacional (...). Por outro lado, tem o Congresso Nacional competência exclusiva para resolver definitivamente sobre tratados e convenções celebrados com os Estados estrangeiros pelo Presidente da República (...). Assim, celebrado o tratado ou convenção por representante do Poder Executivo, aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Presidente da República, com a publicação do texto em português no órgão de imprensa oficial, tem-se como integrada a norma da convenção internacional no direito interno." (grifei)

(Revista de Jurisprudência do TJRS, vol. 4/193, Rel. Des. PAULO BOECKEL VELLOSO)

"O eminente Ministro FRANCISCO REZEK, hoje Juiz da Corte Internacional de Justiça, em Haia, ao discorrer sobre esse tema em valiosíssima obra monográfica ("Direito dos Tratados", p. 384/386, itens ns. 321 e 322, 1984, Forense), ressalta a imprescindibilidade da promulgação e da publicação, por ordem presidencial, dos tratados celebrados pelo Brasil (desde que já definitivamente aprovados pelo Congresso Nacional), sob pena de absoluta ineficácia jurídica desses atos internacionais no plano doméstico:

"O ordenamento jurídico, nesta república, é integralmente ostensivo. Tudo quanto o compõe - resulte de produção legislativa internacional ou doméstica - presume publicidade oficial e vestibular. Um tratado regularmente concluído depende dessa publicidade para integrar o acervo normativo nacional, habilitando-se ao cumprimento por particulares e governantes, e à garantia de vigência pelo Judiciário.

...............................................................................

"No Brasil se promulgam, por decreto do Presidente da República, todos os tratados que tenham feito objeto de aprovação congressional.

..............................................................................

Cuida-se de um decreto, unicamente porque os atos do Chefe de Estado costumam ter esse nome. (...). Vale aquele como ato de publicidade da existência do tratado, norma jurídica de vigência atual ou iminente. Publica-os, pois, o órgão oficial, para que o tratado - cujo texto completo vai em anexo - se introduza na ordem legal, e opere desde o momento próprio." (grifei).

"Vê-se, portanto, que a aprovação congressual e a promulgação executiva atuam, nessa condição, como pressupostos indispensáveis da própria aplicabilidade, no plano normativo interno, da convenção internacional celebrada pelo Brasil (CELSO D. DE ALBUQUERQUE MELLO, "Curso de Direito Internacional Público", vol. 1/125, itens 89 e 90, 4ª ed., 1974, Freitas Bastos; HILBEBRANDO ACCIOLY, "Tratado de Direito Internacional Público", vol. I/577 e 601-603, itens 904 e 933-935, 2ª ed., 1956, RJ).

"Torna-se irrecusável admitir, portanto, que o Protocolo de Medidas Cautelares celebrado no âmbito do MERCOSUL ainda não se acha formalmente incorporado ao sistema de direito positivo interno do Brasil, razão pela qual não pode ele ser invocado, no plano doméstico, como fundamento de concessão do exequatur, em tema de cartas rogatórias com efeito executório."

Deste modo, fica claro que sem o decreto de promulgação, os Protocolos que vêm sendo invocados e aplicados, o são incorretamente. Consequentemente, os textos ainda atualmente vigentes relativos ao transporte aéreo internacional são unicamente a Convenção de Varsóvia e o Protocolo de Haia.

5. A não aplicação do Código de Consumo (CDC)

5.1. O quadro geral

No quadro geral de indefinição da legislação aplicável ao transporte aéreo internacional, surgiu, em 1991, um novo elemento. Com efeito, em Março de 1991 entrou em vigor a Lei 8.078/90, o Código de Consumo.

O advento desta nova norma levou alguns autores e alguns tribunais a declará-la aplicável ao transporte aéreo internacional. Esta posição, no entanto, parece ter sido motivada pela natural atração da lei nova e não tanto por critérios jurídicos adequados.

Com efeito, os motivos para a não aplicação da Lei 8.078/90 ao transporte aéreo internacional são: (a) a preponderância do direito internacional sobre o direito nacional; (b) o fato da lei nova não revogar a lei anterior, se esta é lei especial; (c) o princípio da territorialidade das leis.

E, na verdade, posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça veio a declarar inaplicável a Lei 8.078/90 ao transporte aéreo internacional.

5.2. A inaplicabilidade do CDC em razão da preponderância do direito internacional sobre o direito nacional

O transporte aéreo internacional só existe no Brasil em razão do Brasil haver assinado tratados internacionais que regulam essa atividade internacional. Ou seja só é possível haver transporte aéreo internacional no Brasil porque o Estado Brasileiro subscreveu e ratificou a Convenção de Varsóvia e outros tratados internacionais que disciplinam o tráfego aéreo internacional.

Noutro enfoque, isto quer dizer que o Estado Brasileiro se obrigou perante os demais Estados igualmente signatários, a respeitar esses tratados.

Deste modo o Brasil não é livre (como o não são os demais Estados signatários) para regular diferentemente do estabelecido nesses tratados, a matéria de responsabilidade civil emergente de transporte aéreo internacional.

Aliás, é pela necessidade de respeitar, na ordem interna, os acordos e tratados internacionais que se estabelece como um dos princípios básicos, a prioridade desses mesmos tratados sobre a lei interna.

Assim sendo, especialmente em se tratando de transporte aéreo internacional, o CDC não poderia nunca ter revogado o disposto na Convenção de Varsóvia. Com efeito, os tratados, acordos, convenções e demais atos internacionais prevalecem sobre as normas internas, mesmo quando estas normas são posteriores.

Esta regra resulta do disposto no art. 5° § 2° da Constituição da República.

E resulta também do art. 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, subscrita pelo Brasil e em vias de apreciação pela Congresso Nacional.

Segundo o art. 27 desta convenção:

"Uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno para justificar o descumprimento de um tratado."

Por outro lado, a suspensão da execução de um tratado só pode se verificar se observado o procedimento previsto nos arts. 65 e seguintes da referida Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.

É o que dispõe o n° 2 do art. 42 da mesma convenção:

"A extinção de um tratado, sua denúncia ou a retirada de uma das partes só pode ocorrer em virtude da aplicação das disposições do tratado ou da presente Convenção. A mesma regra aplica-se à suspensão da execução do tratado."

Deste modo, resulta claro que o CDC, por ser norma interna, ainda que posterior, não pode revogar o disposto na Convenção de Varsóvia.

É certo que o Supremo Tribunal Federal, no acórdão proferido no REx 80.004 de 1977 decidiu que norma interna posterior afasta a aplicação de norma internacional anterior. Esta decisão foi fortemente criticada pela doutrina e gerou enorme discussão que não cabe, no âmbito do presente texto, reavivar .

Para os efeitos deste artigo, basta indicar que atualmente estão reunidas as condições para a revisão dessa posição jurisprudencial. Com efeito, estamos sob a égide de uma nova Constituição da República que aparentemente consagra no art. 5o § 2o o respeito às normas internacionais e aos direitos por elas garantidos. Por outro lado, as mudanças ocorridas no cenário internacional e nomeadamente a participação no Mercosul obrigaram a uma revisão do sistema dualista com preponderância do direito interno.

De notar ainda que o próprio CDC prevê a manutenção em vigor dos atos internacionais. Com efeito, o art. 7° do CDC estabelece que:

"Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, (...)."

Ora, a Convenção de Varsóvia estabelece vários direitos para os passageiros no transporte aéreo internacional. Assim, esses direitos permanecem em vigor e não podem ser substituídos pelo disposto no CDC.

Daqui resulta que, aplicar o CDC ao transporte aéreo internacional significaria negar vigência a tratado internacional (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 105, III, a) e contrariar o próprio CDC.

5.3. A inaplicabilidade do CDC em virtude do disposto no art. 2° § 2° da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC, Decreto-Lei n° 4.657/42).

O CDC também não é aplicável ao transporte aéreo em virtude do disposto no art. 2° § 2° da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC, Decreto-Lei n° 4.657/42).

Segundo este artigo e parágrafo:

"A lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes não revoga nem modifica a lei anterior." (grifo acrescentado)

Assim sendo, mesmo se o transporte aéreo fosse uma relação de consumo, ainda assim as normas da Convenção de Varsóvia, com a redação do Protocolo de Haia, prevaleceriam sobre as do CDC.

Isto porque, em primeiro lugar, é indubitável que a Convenção de Varsóvia e o Protocolo de Haia contém disposições especiais relativas à matéria aeronáutica.

E, em segundo lugar, porque, tendo sido promulgados respectivamente em 1931 e 1965, os textos da Convenção de Varsóvia, e do Protocolo de Haia são, como se vê, anteriores ao CDC, vigente a partir de 1991.

Assim, conforme se depreende do art. 2° § 2° da LICC, o CDC não revogou as normas especiais que regem o transporte aéreo internacional.

E isto ainda mesmo que se considere o CDC como uma lei especial, que rege as relações de consumo. Pois, na verdade, nessa questão, as normas de direito aeronáutico são ainda mais especiais do que o CDC.

Efetivamente, admitindo-se que o transporte aéreo internacional fosse uma relação de consumo, seria sempre uma relação de consumo especial e particular, com relação ao CDC que vem regular um universo bem mais vasto que é o da totalidade das relações de consumo.

Deste modo, em caso de confronto de duas normas especiais, sendo uma (a relativa ao transporte aéreo internacional) ainda mais especial do que a outra (o CDC), a norma posterior não revoga a norma anterior mais específica.

5.4. A inaplicabilidade do CDC face ao principio da territorialidade das leis

Há ainda um outro argumento a ser levado em consideração. É que o transporte aéreo internacional - pela sua própria natureza - envolve atos e condutas realizados fora do território brasileiro.

Coloca-se assim o problema do alcance extraterritorial do CDC.

Por exemplo, tendo o contrato de transporte sido celebrado em Londres (local onde foi adquirido o bilhete de passagem) para o percurso Londres/Rio de Janeiro e tendo ocorrido o atraso na partida, o passageiro brasileiro aciona, no Rio de Janeiro, a companhia transportadora, através do seu escritório situado no Rio de Janeiro, invocando o CDC.

Ora, é manifesto que o CDC não se poderia aplicar ao atraso. Pois trata-se de evento que extrapola as fronteiras territoriais do Brasil e que escapa, consequentemente, à legislação brasileira de âmbito interno.

Ou seja, trata-se de ato fora da competência territorial do CDC.

Ainda que timidamente, alguns acórdãos atentaram para esta particularidade do transporte aéreo internacional e declararam o CDC inaplicável à espécie, por esse motivo.

5.5. A posição da jurisprudência nacional

Por último, note-se que a jurisprudência mais recente dos tribunais brasileiros é no sentido da não aplicação do CDC ao transporte aéreo.

Veja-se, por exemplo, o acórdão proferido pelo Tribunal de Alçada de Minas Gerais, com a seguinte ementa:

"A indenização devida pelo extravio de bagagem em transporte internacional, por via aérea, adstringe-se ao valor estabelecido na Convenção de Varsóvia, modificada pelo Protocolo de Haia, salvo se houver sido paga sobretaxa especial, sendo inaplicáveis o Código de Defesa do Consumidor e o art. 159 do CC, face à prevalência dos tratados de que o Brasil é signatário sobre a lei interna, na forma do art. 5°, parágrafo 2° da CF." (3a Câmara Cível, Ap. Cív. n° 172.646-7, Relator Juiz Tenisson Fernandes, julg. em 22/06/94, Wagner Bruno Cateb x Aerolíneas Argentinas, pub. in Coad-Adv Jurisprudência n° 69.875)

Esta posição foi confirmada, ainda que sob outro fundamento, pelo Eg. Superior Tribunal de Justiça, em recente acórdão, proferido no recurso especial interposto do acórdão anteriormente citado, e onde ficou estabelecido que:

"Lei - Tratado.

"O tratado não se revoga com a edição de lei que contrarie norma nele contida. Perderá, entretanto, eficácia quanto ao ponto em que exista antinomia, prevalecendo a norma legal.

"Aplicação dos princípios pertinentes à sucessão temporal das normas, previstos na Lei de Introdução ao Código Civil. A lei superveniente, de caráter geral, não afeta as disposições especiais contidas em tratado.

"Subsistência das normas constantes da Convenção de Varsóvia, sobre transporte aéreo, ainda que disponham diversamente do contido no Código de Defesa do Consumidor." (3a Turma, REsp. 58.736 MG, Relator Min. Eduardo Ribeiro, julg. em 13/12/95, Wagner Bruno Cateb x Aerolíneas Argentinas)

6. Conclusão sobre a legislação aplicável ao transporte aéreo internacional

Em virtude do que ficou exposto, resulta claro que o transporte aéreo internacional, no Brasil, é regido pela Convenção de Varsóvia, com a redação dada pelo Protocolo de Haia.

Subsidiariamente, ou seja nas matérias não reguladas pelos dois textos internacionais, aplica-se o Código Brasileiro de Aeronáutica e a Portaria 957/89.

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