Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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O DANO MORAL E A DESAGREGAÇÃO SOCIAL

"O bem mede-se pela totalidade daquilo que é efetuado; o mal, por qualquer defeito de percurso, de partida ou de chegada."
                                    (Antônio Meneghetti)

 

Décio Antônio Erpen
Desembargador TJ – RS.
Professor de Direito PUC .

Examinando algumas demandas onde são pleiteados valores efetivamente exagerados, tive dificuldades em deferir, na ausência de critérios legais precisos, indenizações a título de dano moral, também chamado dano extrapatrimonial, nos casos de ilícitude relativa. A realidade é alarmante e a preocupação tem razão de ser porque estar-se-iam estimulando demandas pela via pretoriana . Periclita, em tais casos, um dos suportes da vida em sociedade, qual seja, a segurança jurídica. No campo da Sociologia, o Judiciário, ao invés de ser instituição de integração social, de concórdia, de solvedor de litígios, passaria a ser elemento de desagregação social. Na busca de reparação estabelece-se uma verdadeira loteria jurídica, formulando-se equação perversa onde as variáveis, levadas a grau extremo, são a dor do ofendido e a necessária punição ao ofensor. Ocorre que nesta esfera do direito a dupla aferição, no mais das vezes, fica entregue ao subjetivismo puro do juiz.

Dentro desta linha de raciocínio fica afastada a conclusão simplista de que bastaria ao homem portar-se adequadamente e que os inconvenientes desaparecerão. Retruco: o homem não pode esquecer suas origens de ser criatura e não Criador. Há erros suportáveis e erros que devem ser punidos. Extremamente apropriada a colocação feita pelo Prof. Menghetti quando diz:

"O bem mede-se pela totalidade daquilo que é efetuado; o mal, por qualquer defeito de percurso, de partida ou de chegada." (MENEGHETTI, Antonio. Sistema e Personalitá, 2ed., Psicològica. Editrice,Roma, l996).

O sistema jurídico brasileiro não foi indiferente à natureza humana quando, ao adotar a responsabilidade objetiva dos serviços públicos, segundo a teoria do risco social ( dispensado o exame de eventual culpa na fase da programação e execução prestação dos mesmos) previu, casos de sua não aplicação. Instituíram-se, então, as chamadas "cláusulas de salvaguarda " que estariam resumidas nos casos de não incidência e casos de exclusão.

Não há responsabilidade do Poder Público na atividade legiferante, mesmo na adoção de legislação equivocada ou inconstitucional. Tratando-se de ato de soberania pura, seria ela infensa ao crivo de outrem. Cuidar-se-ia de erro coletivo do sistema. Este é o princípio geral, com poucas exceções. Há espaço para discussões em torno de atos de governos de fato ou outras casos, que refogem ao presente tema. O princípio dominante é de que o Estado não responde por danos causados na atividade legislativa pura. Assim, o Parlamentar e o Chefe do Executivo ( no caso de sanção) , podem incorrer em erro que venha a causar dano injusto a outrem, sem que se gere o dever de indenizar. Em tese, reafirmo.

Outra hipótese está no chamado erro judiciário. JOSÉ DE AGUIAR DIAS ( Da Responsabilidade Civil,Vol.II, 4ª ed. P.681 e ss) enfrenta o tema, sustentando a incidência da responsabilidade pelos prejuízos causados pelo mau funcionamento deste serviço. Diz que a tendência é de se adotar a teoria da responsabilidade. Admite que sua posição é minoritária. Traz, em abono à sua tese, oportuna colocação:

"O problema se reduz à procura de uma solução de equilíbrio entre a preocupação de equidade, que não tolera fique a vítima de erro judiciário sem compensação, e o interesse não menos imperioso de não perturbar o funcionamento da justiça, inspirando aos juízes o enervante receio de estar, possivelmente, com sua atuação, provocando futuras ações de indenização contra o Estado."(p.685)

 

O princípio geral foi mantido no sentido de que a orientação judicial equivocada não gera o dever de indenizar.Com isto, não se criou a faixa de instabilidade para os magistrados decidirem segundo seu entendimento, quer na interpretação da norma, quer dos fatos. A margem de erro , igualmente á absorvida pelo sistema. Os integrantes do mecanismo judiciário se sentem à vontade para decidir, também e, em especial , porque são pessoas humanas, como tal, falíveis. Em razão de tal colocação é que, Aguiar Dias, traz sábia ponderação em prol da atividade judicante, que venha incorrer em erro, dizendo": "Tais riscos, lamentáveis, são fatais à obra humana"(p.686).

Referente à hipótese de exclusão ou de responsabilidade advinda de dano causado pela Administração traz-se o exemplo de a vítima haver provocado ou contribuído para o evento danoso, colocação que não tem pertinência com o tema em discussão.

Se analisarmos o contexto desta segunda metade de século no mundo Ocidental, veremos que as demandas por dano moral tiveram grande incremento nos Países do chamado primeiro mundo, a partir dos anos sessenta, sendo motivadas por bizarrias de toda ordem, verdadeiras extravagâncias jurídicas, alinhadas com situações de efetivo sofrimento e laceração emocional. Este imenso impulso imprimido aos pleitos judiciais, aos quais sucedeu resposta do Judiciário os contemplando, em parte, correspondeu a um momento histórico de grandes movimentos de legitimação e imposição social de grupos, histórica e momentaneamente excluídos, como negros, pacifistas, deficientes físicos, asiáticos, mulheres, etc. Esta realidade dos Países desenvolvidos cumpriu um ciclo evolutivo e completo, com avanços e recuos, tais como sístoles e diástoles, estando hoje equilibrada, com postulações razoáveis e condenações compatíveis com os planos do consciente e do inconsciente coletivo de cada cultura. O Direito se adentrou, pois, dentro do processo histórico, em consonância com as conclusões de Miguel Reale considerado o fenômeno jurídico "no plano da experiência humana ou da cultura"(Ibidem, págs. 368/9). Ressalva, entretanto, ser necessária a avaliação se o fato foi ou não "recebido" como tal através do tempo.

Sei que a Constituição ampliou e elevou de "status" jurídico o instituto do dano moral. Mas não posso olvidar que ela é essencialmente uma estrutura de normas que condiciona o ordenamento jurídico, sendo deste, a um só tempo, base e cúpula. Base , por levar a uma inelutável congruência entre as regras, estratificando-as e, via de conseqüência, estabelecendo referenciais ônticos ( do ser) e éticos ( do dever-ser); cúpula, por estampar o ideal político da Nação, sendo em sua supremacia o horizonte normativo da mesma.

Nosso ordenamento já continha preceitos esparsos, a se iniciar pelo Código Civil quando , no art. 1.538 previa a duplicação da indenização quando o dano provocasse aleijão ou deformidade. Na mesma linha, o art. 1.547 quando dá o critério para estabelecimento do dano material, à ausência de prova objetiva a respeito. Igualmente a Lei da Imprensa, Lei da Infortunística, Código de Telecomunicações etc. Todavia, quando não tarifou, estabeleceu limites. Tudo com moderação. Pós Constituição, temos o Código do Consumidor (art.6,VI) e mais recentemente a Lei dos Direitos Autorais (Lei 9.610/98). O vetor para estabelecimento das perdas e danos, no Código Civil, além do efetivo dano material, alude o legislador ao advérbio "razoavelmente" , referindo-se ao lucro cessante. Sei que os pressupostos são diversos, mas o sistema jurídico cogita da razoabilidade, aliás, é o modo como deve ser exercido o direito – "civiliter".

Para delimitar o novel instituto, entendo fundamental expressar os preceitos constitucionais que dizem respeito com a espécie. O art. 5O cogitou as duas hipóteses, a saber:

  • "V – é assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem"

  •  

  • "X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;"

  • Deduzo que, a hipótese do item V, contempla ofensas causadas através de veículos de comunicação , ou na comunicação social. Vale para o palestrante ou articulista que procura ridicularizar o profissional que possui posição diversa, ou para os profissionais que têm vedações pelo respectivo Código de Ética.

    Já o item X – refere ele à "intimidade", "vida privada", "honra"e "imagem" das pessoas, não fazendo nenhuma alusão às inadimplências contratuais ou deficiente prestação de serviços, estes previstos no Código do Consumidor, que engloba, igualmente a má qualidade de produtos. Ao cogitar do dano material e moral, não explicitou o Legislador que a cumulação sempre existiria, pela óbvia razão de que pode ocorrer um, sem que necessariamente haja outro. Ainda assim, observa-se que adotou-se um caráter preventivo e se valorou muito a atuação administrativa.

    O chamado dano moral tem sido deferido, cumulativamente ao dano civil. A matéria já está sumulada junto ao STJ (verbete 37) que permite a cumulação do dano material ao moral. Mas não necessariamente, por suposto. Quando cabível, é claro. O deferimento sistemático e paralelamente ao dano material, gera uma perversa via de mão dupla: numa, o dano material e noutra, o dissabor provocado pelo contratante inadimplente, dando ensejo à indenização pelo dano moral, caminho na qual não pretendo transitar sem maiores perquirições. O extravio da bagagem, no contrato de transporte, é o exemplo mais palpitante e que estimulou magistrados de escol, inobstante haverem convivido com pequenas comunidades regidas sob a égide da solidariedade e tolerância recíprocas, a adotarem os novos rumos.

    Obviamente que não estou confundido dano moral, com o psíquico nem com o estético. Todos tem pressupostos próprios. Restrinjo-me ao dano moral, advindo da inadimplência contratual ou de dissabores comuns do cotidiano.

    No tocante a este último aspecto, penso importante destacar que a jurisprudência não tem deferido, pelo menos de forma genérica, dano moral a título de dissabor advindo de relação afetiva, pela óbvia e simples razão de que a satisfação e o desgosto são típicos da bipolarização desta interação. A afeição de um, não tem a mesma dimensão que o sentimento do outro, gerando-se o impasse pelo desequilíbrio. Os sentimentos não estão na área do controle da pessoa humana. Suas reações, sim. O namoro desfeito seria o exemplo edificante. A ruptura do casamento ou da união estável, mesmo que cruenta, não ensejaria o dever de indenizar a ser suportado por quem optou por findar a relação. Em tese, bem dito.

    Como exigir do juiz uma definição científica, com bases sociológicas e jurídicas, sobre as mais diversificadas esferas que ensejam, ou não , o dever de indenizar ? Esta definição se me apresenta, em alguns casos, insuperável no exercício da jurisdição, preocupado, em especial, com o princípio que possa servir de precedente jurisprudencial .

    Quando se divulga, ou pela Imprensa, ou por Órgão que cuida do crédito, fato desabonatório ao cidadão e isso ocorre de forma incorreta, aí sim, resta ferida sua imagem . Em tais casos, a indenização tem sido deferida sem dissenso pretoriano. Os valores, ao que consta e na minha ótica (subjetiva), têm sido razoáveis. A falta de consenso está na cumulação do dano nos casos de inadimplência contratual ou por fissura nas relações inter-pessoais, com repercussão restrita às partes, ou também na prestação de serviços. Os profissionais liberais das áreas tidas nobres, são os mais visados.

    O impasse maior, no entanto, reside na quantificação da indenização.

    Com a omissão parcial do legislador, que reconheceu a hipótese teórica mas não a regrou minimamente, a estimativa dos danos passou ao arbítrio judicial, tanto na sua aferição quanto na sua quantificação.

    "A indenização é de bom tamanho", dizemos , como que se tivéssemos um critério científico para mensurá-la. Tomamos a capacidade econômica do ofensor e a qualidade da vítima. A equação estaria montada. Mas não se adentra no exame da proporcionalidade.

    Muitos diplomas legais já estabeleceram marcos, limites mínimos e máximos. Isso ocorre, especialmente, no setor de Transporte , nos Acidentes de Trabalho e na Lei da Imprensa. Ademais, onde vige o princípio da responsabilidade objetiva, tarifa-se ou limita-se a indenização, com isso se promovendo o equilíbrio nas relações. Mas, tudo com moderação.

    A sustentação da indenização imposta se legitima ante previsão legal porque tal provimento é que constitui o estado de Direito nas relações sociais, mesmo entre os particulares.

    No caso do dano moral, diante do vazio legislativo, cresceu a jurisprudência objetivando suprir a omissão. O jurista Carlos Bittar pontificou a corrente, hoje plenamente vitoriosa,ensejando-se se decida mesmo ausente o provimento legal, e tudo , segundo a visão do juiz que adotou o seu próprio perfil, como que se paradigma fosse. Aí minha insurgência ante o extremo subjetivismo que sustenta a estimativa do dano e da indenização correspondente, preponderando, por óbvio, a postura axiológica do Juiz. Este risco calculado deve, no mínimo ser proclamado e dado à publicidade, para que a sociedade o assuma. Referentemente a esta colocação penso fundamental a lição de TRUYOL SERRA , ao comentar a filosofia de São Tomás de Aquino, que construiu uma nova ordem na investigação e ensino da verdade, definindo a lei natural, como ordenação da razão do bem comum, apregoando a necessidade de uma instância que "actue em representação do corpo social."(História da Filosofia do Direito e do Estado, 8ª ed.p. 299, tradução Alianza Universidad Textos, Espanha, l982).

    Quando afirmo que há omissão do legislador, não pretendo esvaziar a jurisdição. Apenas pretendo delimitá-la para que reine sobranceiro o primado do Direito, segundo um sistema. Sei que a jurisprudência é, igualmente, fonte de Direito. Talvez a mais viçosa. Não olvido , por óbvio, que o termo "jurisprudência" tem sentido de "prudência" do direito. Todavia, o vetor da cidadania é a lei. É ela que torna necessária a presença do juiz-mediador, dentro dos limites que ela mesma consente. A aferição do fato há que se dar pelo magistrado, porquanto opera sobre o plano executivo. Todavia, a segurança jurídica do cidadão está na lei e não na direção dos julgados, ou sentimentos dos juízes, ou inclinações dos magistrados porque nem sempre elas são antecipadamente conhecidas. O magistrado deve ser o mediador entre a lei e o fato, e não a norma de conduta recôndita em seu íntimo. Do contrário geraria um estado de insegurança. A jurisdição tem como escopo a justiça, no caso concreto; a lei, objetiva outorgar a segurança, daí porque se proclama que um direito inseguro é um direito eminentemente injusto.

    Sei que temos responsabilidade um diante do outro. Devemos prestigiar o instituto da responsabilidade recíproca, mas sem abandonarmos sentimentos e valores que se inspiram no amor, na solidariedade, no equilíbrio, na temperança, no respeito ao próximo e porque não dizer, até na tolerância. A cobrança persistente e judicializada nos pequenos percalços , traduzida em litígios generalizados, vai tornar a vida insuportável. Os profissionais exercem seu mister em estado de suspense. Não é essa a nossa tradição.

    Há que se promover uma reflexão crítica sobre a hierarquia na seleção de prioridades para termos critérios sobre os valores que integram o chamado dano moral, considerando-se, igualmente, a condição de criatura e não de Criador, e como tal, falível. Se o legislador pode se equivocar; se o sistema Judiciário está sujeito a equívocos , pela natureza ínsita de seu mister, também porque o equívoco não se concentra, necessariamente na atividade do juiz, mas pode ser na qualidade do material probatório que lhe é alcançado, ( e por isso que o sistema o releva) , necessário estabelecer-se, com bases sólidas, o limite do erro do cidadão comum ou do profissional ou do produtor. A adoção de um sistema, com bases sociológicas e jurídicas se faz necessária, para que se defina, de forma inequívoca, os reais valores que integrariam o que seria, de verdade, o dano moral.

    Dentro dos princípios da teoria psicanalítica , dizemos que o ser humano é mobilizado, em seu desenvolvimento e relações com o mundo, por

    impulsos de amor e ódio. A intolerância à integração e convívio desses sentimentos promove uma dissociação na vida mental que passa a se estruturar sob a égide da divisão maniqueísta entre o bem e o mal, a qual assume outras expressões como: eu ( o bem) X os outros ( o mal) , ou aquilo que me satisfaz X o que me frustra, e assim por diante. Felizmente, as boas experiências ao longo da vida, sobretudo nos primeiros anos, permitem que conciliemos dentro de nós essas tendências , tornando-nos mais tolerantes conosco mesmos e com os demais. Qualquer pessoa dita "normal" oscila continuamente entre estes dois extremos e da resultante dessa variação dialética dependerá o colapso ou o crescimento mental.

    O professor Antônio Meneghetti (Sistema e Personalidade Coleção Ontopsicologia), quando cuida de algumas Constelações Psíquicas, e tratando da vitimologia, afirma numa passagem que :

    "... não devemos esquecer as saudáveis e boas regras da psicologia universal: quem é muito perseguido significa que há alguma coisa nele que determina a perseguição. É o conceito do vitimismo reativo: provocar a injustiça para adquirir o direito de prevalecer."(p.133).

    Os profissionais sabem que a ofensa moral ressoa com maior intensidade em personalidades que já estão predispostas ao conflito. Como avaliar o dano em sua existência e extensão, em termos jurídicos, sem um princípio geral normativo, mormente atentando-se que todos são iguais perante a lei ?

    Quando não existe provimento a respeito de fatos passíveis de serem indenizados e da quantificação do dano, passa o juiz a impor o perfil ao cidadão e, mais ainda, a delinear o gradiente de ofensas e de sanções a estas correspondentes. Contudo não podemos esquecer que existe um único norte e este é a lei, que não diz que o juiz é o paradigma, o vetor das condutas. Isso não lhe compete. E estimular demandas, ou permitir a expansão irracional da retorsão dos indivíduos é acima de tudo um falso exercício da cidadania. O humanismo que inspira nossa vivência cultural objetiva a paz social, o que se consegue pelo altruísmo, pela caridade e pela equidade, na formulação legislativa ou na justiça tópica. Não se ignora que vivemos em uma sociedade totêmica onde o mais das vezes o totem é o juiz, por isto mesmo este afasta-se da mediania para compor as lides sociais, em pequena e grande escalas.

    Impressiona-me, confesso, a alienação do legislador, permitindo a prática do dano sem a correspondente punição jurídica. Todos divisamos essas fissura legal. Encontro justificativa nos antigos, quando vejo que é aceito universalmente o axioma "Não faças ao próximo o que não queres que te façam", e que sintoniza com o conhecido princípio imperativo categórico de KANT " AGE DE TAL FORMA QUE A NORMA DE TUA AÇÃO POSSA SER TOMADA COMO LEI UNIVERSAL."

    Expressão completa disso encontramos , entre outros documentos básicos da Humanidade, no Evangelho, com uma declaração coerente de todos os direitos do ser humano, até mesmo daqueles que, por vários motivos podem ser incômodos. Mas sobressai o sentimento de amor, misericórdia e perdão. O sentimento de vingança ou de cobrança remanesceu no Antigo Testamento.

    Impõe-se fazer viger um sistema de valores concretos com vistas a um verdadeiro projeto de Justiça e que deverá levar em conta o Homem e a Sociedade, da qual esta pessoa seja, ao mesmo tempo agente e produto. Se privarmos a liberdade humana dessa perspectiva, se o ser humano não se esforçar para chegar a ser um DOM E NÃO UM DANO para outros, então esta liberdade pode revelar-se perigosa. Contra isto lutaram Kant, Scheler e todos aqueles que compartilham da ética dos valores. Mas, para tanto, se o ente social não está suficientemente esclarecido, há que sobrevir a norma com a sanção correspondente. Aí, sim, reinará sobranceiro o estado de Direito, através de um de seus valores supremos, a Segurança Jurídica.

    Se pretendemos conviver com uma sociedade pacífica, dentro dos padrões que herdamos, devemos atentar para a circunstância de que , na sociedade em geral ocorrem os mesmos processos de integração e desintegração próprias do ser humano. O estímulo ao pleito de indenizações por dano moral pode aumentar a faixa de desagregação social. É isto que ocorre, v.g. quando se promove o ódio, a rivalidade, a busca de vantagem sobre outrem, ou a exaltação ao narcisismo.

    A Pedagogia dá oportuna e sábia lição aos profissionais do Direito quando examina a relação entre o educando e o educador e o reflexo no binômio falta x castigo, asseverando que o educando pode errar. E , errará, necessariamente. Ambos , todavia, não podem se equivocar simultaneamente. E este confronto existe entre o cidadão x norma, ou o causador do dano x juiz, . Os dois não podem errar simultânea ou sucessivamente. Com isso apregoa a Pedagogia, a imperiosa necessidade de a reparação ser incensurável.

    O excesso no pleito pode gerar esta situação e a conseqüente reação pelas dimensões que assumir a censura judicial. O objetivo da reparação pecuniária não é punir o ofensor, mas deferir uma sensação agradável à vítima. Nunca uma fonte de riqueza, nem um ato de vindita.

    A institucionalização a respeito é indispensável, como aconteceu com a adoção dos Juizados Especiais, mas onde há o limite máximo pré-estabelecido e que consiste naquele que fixa sua própria competência. Aí sim, possível solverem-se os litígios na área civil e penal.

    A história mostra que as civilizações beligerantes foram inexoravelmente tragadas pelo próprio ódio, exatamente por serem conflituais, alimentadas por demandas internas e externas. Estaríamos, e disso estou seguro, criando uma sociedade belicosa tendo no Judiciário uma multiplicação de litígios onde se pleiteiam indenizações, muitas vezes milionárias sem qualquer simetria da conseqüência com a causa. Bom exemplo disto é um pedido que tramitou nesta Corte onde é postulada alta indenização por dano moral pelo fato de um consumidor ter encontrado um inseto no interior de um vidro de produto alimentício.

    A prevalecer a tese indenizatória, sem critérios legais ou adoção de parâmetros dentro da razoabilidade, estaremos alimentando o conflito, com as desastrosas conseqüências dele decorrentes, reservado ao Juiz o papel de censor social. Para o mundo jurídico, isso seria muito interessante porquanto valorizaria o profissional do direito. Para a vida social, um desastre. Não podemos olvidar que a paz é um desiderato da pessoa humana sadia e deve ser entendida não somente no plano interior, mas e principalmente, no social, ou seja, o homem que é um ser gregário, sociável e comunicativo, necessita por isto mesmo de paz social . E não posso concebê-la sem a paz jurídica.

    Quando os profissionais exercem seu mister com sobressaltos, quando o cidadão se move sem tranqüilidade, institui-se um sistema de suspense que provoca a inquietude, as agonias, o sofrimento, as noites de insônia, os medos, a neurotização ,enfim. E o estímulo a demandas generalizadas conspira, decisivamente, para estabelecimento deste triste quadro.

    Em "Rumo à Estação Finlândia" um clássico da história do pensamento, o grande ensaísta americano Edmund Wilson sugere uma síntese maior sobre as leis que transcendem as limitações humanas, pregando que a sobrevivência da sociedade implica sua reorganização em princípios igualitários, como se constata neste sábio trecho:

    "Os habitantes dos países civilizados, na medida em que conseguem atuar como seres criativos e racionais, vêm lutando por disciplinas e projetos que trariam ordem, beleza e saúde a suas vidas; porém, enquanto permanecerem divididos em grupos que têm interesse em fazer mal uns aos outros, serão prejudicados por obstáculos irremovíveis. Somente quando se conscientizarem desses conflitos e assumirem a tarefa de livrarem-se deles é que estarão no caminho que leva a um código de ética, um sistema políticos e uma escolha artística realmente humanos, e não defeituosos e limitados como os que conhecemos. Porém a correnteza do empreendimento humano segue sempre nessa direção. Cada um dos grandes movimentos políticos que transcendem as barreiras sociais proporciona uma fusão nova e mais ampla do elemento agressivo que se levanta com o elemento que ele ataca e absorve. O espírito humano está sempre se expandindo contra a pressão animal predatória, perfazendo unidades de seres humanos cada vez maiores, até que percebamos por fim, de uma vez por todas, que toda a espécie humana é uma coisa só, e que não deve fazer mal a si própria. Então ela fundamentará neste consciência uma moralidade, uma sociedade e uma arte mais profunda e mais abrangentes do que nos é possível imaginar no momento."

    Sedutor, é verdade o argumento de que a indenização teria caráter pedagógico. No entanto, à ausência de previsão legal, torna a condenação de juricidade duvidosa, além de importar, se não usurpação, em pequena intromissão em área atribuída a outrem.

    O Bel. Sérgio Pinheiro Marçal, ( RTD-3O Ofício-SP-Registrador J.M.Siviero) traz um argumento que já havíamos adotado e que merece ser reprisado , consistente no fato de que, o adoção do critério indenizatório no juízo cível sob o argumento de que o sistema criminal está falido e é indiferente à realidade, carece de fundamento legal , porque, mesmo traduzida a sanção em pecúnia, não pode haver pena que sem lei prévia a estabeleça. Tenho que se deve corrigir o sistema punitivo e não substituí-lo por outro paralelo, sem as prévias regras do jogo jurídico.

    A prevalecer esta tese, em breve os juízes criminais passariam a adotar penas alternativas , quando houve ilícito civil, não previstas em lei, sob o argumento de que o juízo cível é extremamente moroso. Com isso ruiria o estado de direito e todo o sistema jurídico vigente.

    Nos chamados Juizados Especiais adotaram-se algumas regras similares ao direito americano. Mas houve provimento legal e há limites, evitando-se indenizações milionárias, produto de criação pretoriana. Cumpre relembrar que este mecanismo judicial prima pelo espírito conciliatório, tanto é verdade que a composição é que o rege , valorada a presença de um juiz conciliador. Outrossim, o juiz decidirá segundo as regras de experiência comum, adotando critérios de eqüidade e justiça, atentando às exigências do bem comum. O critério da estrita legalidade ficou para outras áreas do Direito, dito mais formal. Em momento algum, no entanto, se adotou a trilha belicosa. Esta opção não me parece ser do legislador. Nem quero crer que seja da comunidade.

    O advogado Roberto Ferrari de Ulhôa Cintra defende a conciliação como a forma mais correta de se aplicar o Direito, concluindo que "Mas o Direito brasileiro, a exemplo do americano, tem preferido a linha belicosa." (SARAIVA – Dataletter, l8). A este respeito, ressalvo que não se me apresenta clara a opção do sistema legal, uma vez que a tendência na implantação do instituto do dano moral, na dimensão questionada, se dá pela via jurisdicional, e, ainda assim, de forma não pacificada, nem no tocante ao conceito, nem em sua quantificação.

    Desde a Lei de Talião, milenarmente conhecida pelo brocardo "olho por olho, dente por dente" existe nos sistemas jurídicos a idéia da proporcionalidade. Este ideário informa o Direito do Trabalho, o Penal, o Comercial, as regras de Processo e até a Carta Magna. Quer no plano material, quer no processual, é de observar-se o relativo equilíbrio entre a ação e a reação, entre a conduta e sanção. A quebra da harmonia como antes referida ( incongruência entre conduta e sanção), implica verdadeiro corte epistemológico na própria ciência do Direito.

    Há que se definir, pois, o que seja tolerável e o que seja indenizável, para valorizar-se qualitativamente a atividade judicante e não esvaziá-la de seus mais nobres e profundos objetivos através da multiplicação descontrolada de processos ou de soluções inaceitáveis como a instituição do seguro para cobrir indenizações advindas de dano moral.

    Temem importantes segmentos do tecido social que o incremento de condenações possa vir a fomentar uma indevida fonte de riqueza para terceiros que evidentemente se beneficiarão disto, eis que o custo será muito alto, pela inquietude, desassossego e perplexidade do cidadão demandado ou a ser penalizado. Não consigo afastar-me da idéia de que o ser humano é criatura e não Criador. Com isto pretendo realçar a falibilidade do ser, no desempenho de algumas tarefas, onde o risco a integra. Refiro-me mais aos profissionais prestadores de serviço e que têm sido o alvo preferido das reclamações nos chamados "erros médicos", entre outros. Sei que o profissisonal não tem o direito de errar, mas errará, forçosamente dentro de uma faixa dita tolerável.

    Transitamos, disso tenho certeza, na perigosa faixa do arbítrio , instituto que tanto condenamos nos regimes políticos e na interação social. Isso tudo gera, no mínimo, um estado de perplexidade, quando não lamentáveis equívocos e fomenta suspeitas que desabam sobre nós, aplicadores da norma e virtuais senhores absolutos de suas conseqüências. Esta, exatamente, é a situação que colide com toda a lógica de nosso sistema jurídico e que, mais ainda, se continuar em processo de exacerbação, levará, inexoravelmente, ao colapso do próprio princípio da reparação de danos ( no sentido mais amplo possível), por óbvia, inelutável, previsível e proporcional reação aos excessos.

    Manifestação da lavra do Bel. Sérgio Pinheiro Marçal, advogado de São Paulo e feito publicar na R.T.D. (Revista do 3O Registro de Títulos e Documentos de São Paulo – Registrador José Maria Sivieiro) , ao analisar a "Teoria do Valor do Desestímulo" afirma que a falta de previsão legal tem permitido a incorreta aplicação do instituto do dano moral, gerando distorções. Alude à mesma doutrina, adotada no sistema jurídico americano com o nome de "punitive damages", porquanto está se tornando "um verdadeiro fator de desagregação da sociedade americana, onde os cidadãos tendem cada vez mais a afastar sua própria responsabilidade para imputá-las a terceiros. Cada vez menos as pessoas assumem os próprios erros ou opções, preferindo transferir a responsabilidade de seus atos a terceiros e obter algum dinheiro com isso."(N 126, setembro de l997).

    Oportuna advertência partiu do filósofo italiano Antônio Meneghetti, ao analisar o Decálogo Mosaico, aludindo ao mal provocado pelo homem a seu semelhante, quando vaticina:

    "Ou seja, se ultrapassas a justa medida do teu viver, te prepara (para) a perda, te prepara (para) a exclusão: és tu mesmo que geras a força vingadora dos outros para a tua eliminação."( Sistema e Personalidade – Coleção Ontopsicologia – p.155.

    A indenização a título de dano moral inegavelmente existe, mas deve sofrer os temperos da lei e da vida. Sua incidência há que se dar numa faixa dita tolerável. Se o dano causado, injustamente a outrem, integra uma faixa da ruptura das relações sadias, a reparação do mesmo não pode servir de motivo para se gerar mais uma espécie de desagregação social.

    Minha posição em torno do dano moral é por demais conhecida. Sou dos mais refratários às indenizações pleiteadas, cumulativamente ao dano material pela dor sofrida pela vítima, ou mesmo, ante dissabor causado a outrem, tanto no ilícito propriamente dito, quanto no ilícito relativo.

    Faço as presentes considerações ante o vulto de ações que são ajuizadas, com os inconvenientes que procurei demonstrar, na certeza de que os argumentos em prol da moderação no acolhimento dos danos , não foram esgotados. Há que se dar uma sábia reflexão para definirmos, à luz da ciência jurídica, o novel instituto, para que reine uma Sociedade fundada na convivência pacífica, sendo elemento de integração social, sem que se preste a estimular demandas. Tudo, é claro, sob a égide da lei.

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