Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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O IPVA na Propriedade de Aeronaves

Ricardo Alvarenga
Diretor jurídico da Líder Táxi Aéreo S/A, em Belo Horizonte,
membro da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial e do Centro Jurídico Brasileiro
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O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores foi introduzido na legislação pátria após o permissivo da Emenda Constitucional nº 27, de 28.11.85, que veio a acrescer ao art. 23 da Constituição Federal de 1967, com a redação da Emenda nº 1/69, o item III que elasteceu o rol de impostos inseridos na competência estadual. Ulteriormente, a Assembléia Constituinte de 1988, editando a nova Carta Política, de 5 de outubro daquele ano, manteve a competência das unidades federativas para exigirem este tributo, consoante se lê no art. 155, inc. i, alínea c, in verbis.

"Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir:

I - Imposto sobre:

‘Omissis’

c) propriedade de veículos automotores."

É também cediço que tal imposto se propunha a ser o sucedâneo da antiga Taxa Rodoviária Única, antes cobrado pela própria União Federal sob a égide da mesma Constituição de 1967, posteriormente emendada. Portanto, sob o ponto de vista teleológico, deveria onerar apenas os veículos terrestres, trafegáveis por rodovias estaduais. Nunca veículos que transitam por ferrovias, aerovias ou aquavias.

Com o permissivo constitucional, é evidente que todos os Estados da Federação procuraram, desde logo, através de suas assembléias legislativas, promulgar as próprias leis que passariam a regular a matéria em âmbito interno. Em Minas Gerais, verbi gratia, veio à balha a Lei nº 9.119, de 27 de dezembro de 1985, que criou o IPVA, disciplinando o assunto, quantum satis. Naquela oportunidade, o legislador mineiro não cogitou de incluir aeronaves no rol de veículos automotores e assim procedeu acertadamente, no entender do signatário, porquanto não se pode confundir alhos com bugalhos, como será visto mais adiante.

Realmente, o conceito de aeronave muito se distancia da definição emprestada à expressão "veículo automotor", razão pela qual se pode entender como totalmente equivocada a tentativa de alguns Estados de também fazerem incidir o IPVA sobre a propriedade desses bens (dentre eles São Paulo e Mato Grosso do Sul), equiparando-os aos automóveis, caminhões e quejandos. Aliás, o vocabulário "aeronave" possui definição própria, plasmada pelo Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986), em seu art. 106, ad litteram.

"Art. 106. Considera-se aeronave todo aparelho manobrável em vôo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas.

Parágrafo único. A aeronave é bem móvel registrável para o efeito de nacionalidade, matrícula, aeronavegabilidade (arts. 72, I, 109 e 114), transferência por ato entre vivos (arts. 72, II e 115, IV), constituição de hipoteca (arts. 72, II e 138), publicidade (arts. 72, III e 117) e cadastramento geral (art. 72, V)."

Depreende-se, destarte, que, ao contrário dos veículos automotores convencionais, como os automóveis de passeio, caminhões e utilitários, as aeronaves são manobráveis em vôo, sustentando-se no ar e circulando no espaço aéreo, não em rodovias de qualquer Estado, mas em aerovias, quando em vôos de cruzeiro, se se permite a "blague", mediante reações aerodinâmicas. Por isso mesmo, consultando-se a melhor doutrina, depara-se com a lição irreprochável de José da Silva Pacheco, ad litteram.

"A aeronave não se confunde com veículo automotor nem tampouco a ela se estende o conceito de veículo automotor. No máximo, num enfoque muito geral, poder-se-ia admiti-la como espécie do gênero veículo, deste modo:

Contudo, mesmo sob esse enfoque genérico, não se pode deixar de reconhecer que aeronave e veículo automotor são espécies completamente diferentes, que de comum só têm a possibilidade de serem veículos. [E de transportarem pessoas e coisas, vale acrescentar.]

Pela definição legal (art. 106 do CBA, art. 5º do Reg. Aprovado pelo Decreto nº 70.050, de 25.01.1972) são caracteres essenciais, sem os quais não há aeronave:

1º) ser um aparelho, isto é, um sistema integrado, uma organização, um conjunto de mecanismos, uma complexa máquina;

2º) ser manobrável (do francês manoeuvrer), isto é, poder executar movimento em todas as direções, no espaço aéreo, quando em vôo;

3º) ser sustentável e circulável, isto é, poder manter-se e locomover-se, transitar e trafegar no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas;

4º) ter possibilidade de ser meio de transporte de pessoas ou coisas.

Vê-se pois, que o veículo automotor não pode ser equiparado à aeronave, porque:

a) não é manobrável em vôo, no espaço aéreo;

b) não é sustentável nem circulável no espaço aéreo.

Não procede a invocação do princípio de que onde a lei não distingue não é lícito ao intérprete fazê-lo, porque o conceito de ‘veículo automotor’ não se estende à aeronave, que para caracterizar-se exige, essencialmente, a aptidão de sustentação no espaço mediante reações aerodinâmicas.

A aeronave não existe para trafegar no Estado ou Município, mas para voar no espaço aéreo, que é da competência da União Federal.

Quando em terra, apenas faz manobra em áreas aeroportuárias, que não pertencem ao Estado e nem ao Município, mas à União, por força do art. 38 do CBA.

Ela não é licenciada pelo Município nem registrada pelo Estado, mas pela União (arts. 72 a 76 do CBA).

A propriedade de aeronave decorre do Registro Aeronáutico Brasileiro, que é órgão federal (art. 115 do CBA). (...)" – apud Comentários ao Código Brasileiro de Aeronáutica – Rio de Janeiro: Forense, 1990, ps. 212/214.

Pode-se acrescentar que algumas aeronaves nem sequer motor possuem, como aquelas destinadas ao vôo à vela, comumente denominadas planadores. Há também os balões dirigíveis, que se enquadram nessa categoria, que tampouco são dotados de qualquer espécie de motor.

Portanto, bem estudada e apreendida a lição do mestre Pacheco, afigura-se um verdadeiro despautério o desiderato dos Executivos estaduais, de modo geral, que vislumbram tributar a propriedade de aeronaves como se fosse de veículos automotores, com os quais aquelas não se confundem, como se viu. E dentre essas tentativas, algumas vezes frustradas pelo Poder Judiciário quando chamado a dirimir questões do mesmo jaez, depara-se com a iniciativa, já há muito anunciada, do Chefe do Poder Executivo de Minas Gerais. Sua Excelência, o Governador Eduardo Azeredo, através da Mensagem nº 220/97, de 9 de setembro transato, remeteu à Assembléia Legislativa deste Estado, para análise e ulterior aprovação dos Deputados mineiros, o Projeto de Lei nº 1.425/97, dispondo sobre o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA, cujo texto, ressalte-se, há de causar espécie ao analista mais arguto.

Com efeito, o art. 1º do Projeto de Lei acima indigitado prevê que o IPVA incida, anualmente, sobre a propriedade de veículos automotores de qualquer espécie, dentre eles as aeronaves, locomotivas e embarcações, sujeitos a registro, matrícula ou licenciamento no Estado. Incidiria, também, conforme a dicção do parágrafo único do art. 1º sobre a propriedade de veículo automotor, ainda que dispensado do registro, matrícula ou licenciamento no órgão próprio, desde que o seu proprietário seja domiciliado no Estado. Esta regra se coadunaria com o art. 4º, cuja redação proposta assevera que o contribuinte do IPVA é a pessoa proprietária do veículo automotor, esclarecendo-se, depois, que as alíquotas do imposto são, no que concerne a aeronaves (além de locomotivas e embarcações), de 3%, se os bens se destinam a transporte público, devidamente autorizado, e de 5% nos demais casos, para estupefação de muitos, por ano.

Relendo-se o parágrafo único do art. 1º do Projeto de Lei em análise, percebe-se, aí, uma verdadeira armadilha preparada para os proprietários de aeronaves. Ocorre que, como se viu, a aeronave não está sujeita a qualquer licenciamento no Estado, nem a matrícula ou a registro, a qualquer título, além de não ser equiparável a veículos automotores, por sua própria natureza, física e jurídica. A competência para esse ato, ou seja, para registrar a propriedade dessa espécie de bens móveis, é a do Registro Aeronáutico Brasileiro, órgão do Departamento de Aviação Civil do Ministério da Aeronáutica, como consignado no Código Brasileiro de Aeronáutica (art. 72). Entretanto, bastando que o proprietário de aeronave seja domiciliado no Estado, haverá a exigência do tributo, consoante o Projeto de Lei do Executivo mineiro, inobstante a ausência das outras circunstâncias imprescindíveis para se convalidar a exigência, inclusive de natureza ontológica.

Ora, permissa venia dos ilustres consultores jurídicos da Fazenda Pública mineira, que, certamente, devem ter estudado o assunto, não se sabe com que profundidade, não se pode compactuar com tal heresia jurídica. Ainda que se possa fazer uma abstração dos demais defeitos da exigência que se pretende pespegar contra os proprietários de aeronaves, se bastasse a condição de residente ou domiciliado em Minas Gerais para se configurar a situação de contribuinte do imposto, ainda que o aparelho fosse adquirido e mantido em outro Estado, ou, até, em outro país, estaria coonestada a extraterritorialidade fiscal, a despeito da inexistência de tratado ou convenção internacional que a justifique, em flagrante violação da regra estampada no art. 102 do Código Tributário Nacional. Em outras palavras, na hipótese de uma pessoa física ou jurídica ter adquirido uma aeronave em qualquer outro país, como seria comum em casos de grandes empresas, especialmente as transnacionais, para transportes de seus principais executivos, tal bem ficaria sujeito ao imposto mineiro, pelo simples fato de tal empresa ter sede neste Estado, ainda que a aeronave ficasse matriculada no Estado estrangeiro, lá permanecendo, inclusive fisicamente, para todos os fins. Trocando em miúdos, Minas Gerais estaria tributando a propriedade de um bem que nem sequer ultrapassaria as fronteiras do Estado estrangeiro, hélas, para não se falar da hipótese doméstica, onde seria criado insolúvel problema de competência para tributar entre as unidades federativas! E qual seria a lógica dessa tributação? Há de se indagar sobre isto, pois, se não existe lógica na incidência do IPVA sobre aeronaves nacionais, porquanto estas nem sequer transitam pelos territórios estaduais, haja vista que o espaço aéreo se insere na competência legislativa da União Federal, mercê da prescrição ínsita no art. 21, inc. XII, alínea c da Carta Magna em vigor, onde ali este outro ente exerce sua soberania (art. 11 do Código Brasileiro de Aeronáutica), menos lógica haveria na outra hipótese, de se tributar aeronaves que circulem no espaço aéreo submetido à alienígena. Infere-se, pois, que a pretensão do Poder Executivo mineiro configura verdadeira sandice, com o perdão do vocábulo menos airoso, vilipendiando, de forma flagrante, a Constituição Federal, o Código Brasileiro de Aeronáutica e o próprio Código Tributário Nacional. Seria o mesmo, a grosso modo, de se querer exigir o ICMS na circulação de mercadorias que não transitam pelo território mineiro simplesmente porque seu adquirente tem domicílio neste Estado. Nonsense, diriam os ingleses com sua indefectível fleuma. E, se a moda pega, para se utilizar uma expressão mais prosaica, os municípios se sentirão tentados a tributar imóveis existentes em outras cidades, até de outros países, conquanto que seus proprietários sejam aqui residentes, haja vista que o imposto sobre a propriedade imobiliária grava a propriedade desses bens de forma análoga a que o IPVA grava os veículos automotores.

Last but not least, há de se destacar, outrossim, que as aeronaves não se classificam como veículos automotores nem à luz do Código Brasileiro de Aeronáutica (art. 106), como se disse, nem perante a legislação que regula o Imposto de Importação nem sob a do Imposto sobre Produtos Industrializados, haja vista que tais bens figuram no Capital 88 da Nomenclatura Brasileira de Mercadorias, enquanto os veículos automóveis, tratores, ciclos e outros engenhos de circulação terrestre estão classificados no Capítulo 87, inexistindo, portanto, identidade entre estes e aqueles bens.

Como se tudo isso não bastasse para que a exigência do IPVA sobre a propriedade de aeronaves fosse repudiada, como deve ocorrer e vem ocorrendo nas oportunidades em que o Poder Judiciário é chamado para dirimir as controvérsias criadas por alguns contribuintes recalcitrantes em aceitar passivamente mais esta exação flagrantemente inconstitucional, há de se ressaltar que a criação desse tributo à míngua de Lei Complementar que a amparasse, a teor da regra consignada no art. 146, III, a, da Constituição Federal, é outro vício que conspurca a pretensão do Estado de Minas Gerais, manifestada no Projeto de Lei nº 1.425/97, ora em comento. Recente artigo assinado por Marcelo Viana Salomão, publicado na Revista Dialética de Direito Tributário (nº 13, ps. 41 usque 54), bem demonstra mais esta pecha que se pode imputar ao texto examinado, além de apontar outras inconstitucionalidades na cobrança desse tributo pela lei paulista que regula a matéria.

À guisa de ilustração de como o Judiciário está entendendo apenas algumas das facetas do tributo examinado, no que se refere à propriedade de aeronaves, traga-se à colação ementa do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, publicada pela Revista IOB de Jurisprudência (2ª quinzena de abril de 1995, nº 8/95, ps. 136) e vazada nos seguintes termos:

"IPVA – Aeronaves – Lei nº 622/85 – MS – Não Incidência.

Apelação Cível – Ação Anulatória de débito fiscal – IPVA – Aeronaves – Não Incidência – Sentença reformada – Provida. Na interpretação da lei tributária não se pode utilizar a analogia para a cobrança de tributo sobre fato ou bem cuja previsão não seja expressa na lei. Assim sendo, o IPVA não incide sobre a propriedade ou posse de aeronaves, eis porque deve ser anulado o lançamento com relação a fato gerador calcado nessa situação (ac. unân. da 3ª T. Cív. do TJMS – AC classe "b", XV – nº 38.731-1 – Rel. Des. Luiz Carlos Santini – j. 09/11/94; Apte.: Mato Grosso do Sul Táxi Aéreo Ltda.; Apdo. Estado do Mato Grosso do Sul – DJ MS 10/02/95, p. 09, ementa oficial)."

A propósito, o relator enfatizou, em seu voto que, "além do mais, o fato gerador estabelecido na lei é a propriedade ou posse de veículos automotores registrados e licenciados no Estado, de forma que, como as aeronaves são registradas em órgão federal, impossível a ocorrência daquela situação fática prevista para a incidência do imposto. Por outro lado, como o imposto é anual, a incidência em aeronaves é inviável, pois estas não são anualmente passíveis de registro ou licença".

De lege ferenda, ainda que fosse possível tributar aeronaves com o IPVA, se superados forem os obstáculos legais e constitucionais ora trazidos a debate, é evidente que as alíquotas idealizadas pelo Estado de Minas Gerais, no projeto de lei sub examen, seriam absolutamente escorchantes, isto é, 3% em caso de aeronaves destinadas ao transporte público e 5% nos demais casos, por ano, bem entendido. Ora, apenas para batizar a discussão, deve-se lembrar que o Imposto de Importação desses bens, recentemente aplicados pelo Governo Federal em seu mais recente "pacote fiscal" para salvar a moeda em circulação, segundo apregoado, com o devido estardalhaço, pela mídia nacional, obedece à alíquota única de 3%, sendo este tributo recolhido ao Erário Federal de uma só vez. Entretanto, mantendo o bom senso, o Executivo Federal, através do Decreto nº 2.376, de 12 de novembro de 1997, que compõe o sobredito "Pacote Fiscal", deliberou reduzir a Zero a alíquota do mesmo imposto (Imposto de Importação) quando se tratar de aeronaves e outros veículos aéreos, compreendidos na posição 8802 na Nomenclatura Comum do Mercosul relativa à mercadoria. Daí se pode imaginar o que significaria para a arrecadação fazendária, caso não houvesse o benefício fiscal, a importação de uma aeronave de grande porte, do tipo denominado wide body como é um "Boeing" 774-400, com valor estimado em U$ 150,000,000.00. A alíquota de 3% sobre essa base de cálculo representaria, portanto, US$ 4,500,000.00 para a União Federal, sem se levar em conta a incidência do IPI, em uma única operação. Já o Fisco mineiro, com suas fauces hiantes, como diria o pranteado ex-presidente Tancredo de Almeida Neves, quando ainda militava nas hostes parlamentares como Senador da República, deseja arrecadar o mesmo estratosférico valor todo ano, durante toda a vida útil desse bem, que bem pode ser estimada em cerca de 50 anos. Convenhamos, mutatis mutandis, ainda que não sejam aeronaves de tamanha envergadura, todos sabem que esses bens possuem elevado va-lor venal, especialmente os jatos executivos. E um imposto anual como esse seria capaz de conduzir à débâcle todas as empresas de aviação estabelecidas nesse Estado.

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