Revista Brasileira de Direito Aeroespacial
AVIÕES CONTROLADOS POR SATÉLITES
José Monserrat Filho *
A criação de um sistema de controle de vôo, de novíssima geração, com transmissão digital de dados via satélite, permitindo que os aviões trafeguem com intervalos menores, com maior economia e maior segurança. Este foi o tema central da Conferência Mundial para Implantação dos Sistemas CNS/ATM (Comunicação, Navegação e Vigilância/Gestão do Tráfego Aéreo), promovida pela Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) no Rio de Janeiro, em maio passado, com a participação de delegações de mais de 100 países membros da entidade e de diversas organizações internacionais.
Trata-se de mais uma revolução tecnológica de nossa época com clara dimensão global. Mas ela não virá do dia para a noite. Começou a ser pensada em 1981 e, se tudo correr como recomenda a Organização das Nações Unidas (ONU), só estará plenamente instalada no ano 2010.
O plano dos Sistemas CNS/ATM ficou pronto em 1988. A necessidade de um método mais avançado e preciso de controlar os vôos evidenciou-se já no fim dos anos 70, quando o tráfego aéreo entre EUA e Europa, via Atlântico Norte, deu os primeiros sinais de congestionamento sem possibilidade de expansão.
Introduzir mais vôos no mesmo espaço aéreo, mantendo os padrões de segurança indispensáveis, passou a ser desafio crescente. O antigo sistema de controle de vôos, concebido ainda na década de 40 e baseado em estações e radares terrestres, bem como em comunicações orais, revela-se mais do que nunca insuficiente para atender às exigências emergentes.
Seu alcance é deficiente. Ele não é, nem pode ser global, como se impõe hoje. Não tem ponto de apoio nos oceanos, que ocupam a maior parte da superfície do planeta. Tampouco tem pontos de apoio nas regiões inóspitas e remotas grandes florestas, cadeias de montanhas, áreas pouco habitadas, etc. Ademais, não tem apoio nos países pobres, sem recursos para construir toda a infra-estrutura necessária. O radar instalado na ilha de Fernando de Noronha, por exemplo, capta os sinais de um avião só até o meridiano 10. A partir dali, a posição do aparelho é seguida pelo controle, em terra, com base em dados fornecidos pelo próprio piloto, via rádio.
Felizmente, já existe a tecnologia necessária para substituir os antigos sistemas nacionais de controle e gestão do tráfego aéreo, que hoje impedem o crescimento impetuoso da aviação civil. Pelo novo modelo, os aviões passam a ser orientados e controlados por satélites e computadores. As tarefas são desempenhadas, acima de tudo, por um conjunto harmônico de redes de satélites de comunicações, navegação e vigilância, inteiramente computadorizados e cobrindo todo o globo terrestre.
Graças à incomparável eficiência dos Sistemas CNS/ATM, será possível diminuir os intervalos entre os aviões com plena segurança, e todos eles poderão voar na altitude ideal para economizar combustível.
Nosso Ministério da Aeronáutica já testou a comunicação via satélite no controle de vôos e deve adotá-la no ano que vem. Nos EUA, na Europa e em parte da Ásia, ela já está em uso.
A globalização do controle de vôos, pois, traz vantagens inigualáveis em eficiência, economia e segurança. Que falta, então, para introduzi-lo o mais rapidamente possível?
Falta definir como essa transição tecnológica se dará do ponto de vista institucional e jurídico. A questão, extremamente delicada, afeta os naturais e ultra sensíveis zelos de soberania, segurança nacional e domínio tecnológico de cada país. Não por acaso, ela esteve entre as mais debatidas na Conferência da OACI.
Quem controlará os satélites que controlarão os aviões?
Esse é o "x" do problema. Os países, de comum acordo, terão de abrir mão de parte de sua soberania em benefício de um serviço extraordinariamente moderno, eficaz, econômico e seguro, mas cujo controle encontra-se, no essencial, fora de cada país. Pode-se imaginar o altíssimo grau de entendimento, cooperação e confiança que a completa instalação de tal projeto exigirá. Todos os países só o aceitarão totalmente mediante garantias muito sólidas e inquebrantáveis de que ele terá acessibilidade universal, continuidade, integridade, precisão e confiabilidade, respeitando, ao mesmo tempo, os interesses soberanos de cada nação.
Para estabelecer os Sistemas CNS/ATM é preciso, primeiro, criar o Sistema Global de Navegação por Satélites (GNSS). Essa tarefa não está na estaca zero. Já funcionam dois sistemas de satélites que podem servir de base para o GNSS: O GPS (Sistema de Posicionamento Global), dos EUA, e o GLONASS (Sistema de Navegação por Satélites), da Rússia. O governo americano ofereceu de graça o seu sistema à OACI, para ser o segmento espacial do GNSS em sua primeira fase, por tempo indeterminado, comprometendo-se a um aviso prévio de pelo menos seis anos de antecipação, para qualquer mudança que venham a fazer. O governo russo ofereceu o GLONASS em condições ainda melhores: quinze anos de graça.
Instalar o GNSS é muito simples, acenam os EUA. Basta todo mundo adotar o sistema americano GPS. Ato contínuo, ele fará o controle aéreo para todos os países, com a eficácia já comprovada nos próprios EUA. A base jurídica para tanto também já existe, acrescentam eles. É a Convenção de Chicago de 1944, que contém o essencial para ordenar a gestão global do tráfego aéreo. Para o que ela não contém, valeriam as normas e as práticas recomendadas da OACI, suficientes para regular a introdução da nova tecnologia, bem como as decisões e indicações do Conselho, do Comitê Jurídico e dos órgãos técnicos da entidade, que igualmente poderiam resolver eventuais problemas institucionais. Assim, Washington descarta a necessidade de um novo tratado internacional.
A maioria dos países, porém, recusa essa visão dos EUA, claramente vinculada a sua condição de provedor e dono da nova tecnologia, e pleiteia um novo acordo internacional, com todas as salvaguardas que possam proporcionar absoluta tranqüilidade à comunidade mundial. A Europa vê "perigos políticos e estratégicos em depender de um sistema controlado por um ou mais terceiros países" e rejeita qualquer "posição dominante ou virtual monopólio", que transforme os usuários do sistema em reféns de futuros encargos ou taxas excessivas, difíceis de anular, e bloqueie a criação de alternativas mais convenientes. A União Européia, em documento distribuído na Conferência da OACI, não faz segredo de seus receios: "Os EUA dão todos os indícios de que estão usando a vantagem estratégica de seu sistema de posicionamento militar (GPS) para estabelecer posição dominante no mercado mundial de sistemas e serviços." A indústria européia exige acesso aos avanços tecnológicos do próprio sistema e a participação num mercado altamente lucrativo, de US$ 50 bilhões, em 2005, segundo "estimativa razoável".
Se os europeus se opõem, imagine-se os países em desenvolvimento. Aqui a gama de preocupações expande-se também para outros aspectos do sistema, a sua operação, o controle, as responsabilidades. Na Conferência, o Brasil expressou isso com muita clareza, sintetizando o pensamento da maioria dos estados, quando recomendou a continuação dos estudos desses problemas, por parte da OACI.
A tendência, no entanto, é de que as divergências sejam minimizadas, e as convergências, salientadas ao máximo, como aliás já se viu na Conferência da OACI. Ninguém quer sair de um barco (avião) que promete trazer benefícios e ganhos excepcionais para todos. Na realidade, tem-se como certa uma demanda sem precedentes de aviões e vôos nos próximos anos no mundo inteiro. E isso é um estímulo irresistível para se insistir na construção de um consenso que hoje pode parecer impossível.
* Jornalista e jurista, editor do "Jornal da Ciência", da SBPC, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA) e membro da diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial. E-mail: monserrat@ax.apc.org.
(Volta)NOTA :
A Conferência Mundial sobre a Implementação dos Sistemas CNS/ATM, emitiu uma "Declaração sobre os Sistemas Globais de Navegação Aérea para o Século XXI", em que se manifesta sobre os resultados alcançados nos diversos temas tratados no encontro. No que concerne ao Jurídico, enfoca dois aspectos, um é o do sistema de satélites de navegação e o outro mais geral, engloba toda gama de relações a ser regulamentada. Melhor transcrever:
"Desejando informar à comunidade internacional o resultado de seu labor para o
...
apoiar a adoção do projeto de Carta sobre os Direitos e Obrigações dos Estados em Relação aos Serviços GNSS, como estrutura jurídica provisória, a curto prazo, enquanto se cogita da de longo prazo, a qual pode incluir a elaboração de projeto de Convenção internacional, com esse objetivo,
apoiar a continuação do trabalho, a ser feito pela OACI, sobre os complexos aspectos jurídicos que envolve a implementação dos sistemas CNS/ATM, inclusive o GNSS, com o objetivo de criar e fortalecer a mútua confiança entre os Estados em relação a CNS/ATM, e de dar o apoio à implementação dos sistemas CNS/ATM, a qual no entanto não deve ser retardada pelo dito trabalho,
..."
Isso significa que continurão os estudos e discussão e o assunto será levado à Assembléia da organização, programada para setembro próximo, em Montreal.