Revista Brasileira de Direito Aeroespacial

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A Militarização Total do Espaço
e o Direito Espacial

José Monserrat Filho *

"O mais importante objetivo continua sendo o de assegurar que o espaço exterior seja devotado exclusivamente a fins pacíficos, mas até agora este objetivo não foi atingido senão de maneira limitada. Barrar as armas, na nova dimensão, ainda não foi politicamente possível. Só agora, com o fim da Guerra Fria e com as novas relações que se desenvolvem entre todos os países, é possível dar pleno sentido ao princípio do uso do espaço exterior exclusivamente para fins pacíficos." Manfred Lachs (1)

 

Este artigo procura analisar as perspectivas de militarização total do espaço exterior à luz do que o Direito Espacial Internacional dispõe hoje sobre o uso militar do espaço e dos corpos celestes. Neste sentido, concentra especial atenção na tese, muito em voga sobretudo nos EUA, de que o uso militar "não-agressivo" do espaço pode e deve ser considerado como uso "pacífico". Na conclusão, expõe algumas idéias e reflexões sobre como evitar a instalação de armas no espaço e sua transformação em arena de rivalidades bélicas.

Perspectivas de militarização total do espaço

Os planos de militarizar o espaço até as últimas conseqüências – incluindo o salto qualitativo para lá instalar armas e assim criar novo palco de guerra -- sobreviveram ao fim da Guerra Fria. Podem não passar de uma farsa, dadas as dificuldades econômicas atuais para sua concretização. Mas continuam na agenda de poderosos comandos e Estados-Maiores, e do gigantesco complexo da indústria aeroespacial, empenhados todos em defender sua viabilidade técnica, necessidade estratégica e validade ético-jurídica.

Um verniz doutrinário recobre a questão. Examiná-lo é preciso.

Nos anos 80, o confronto entre os EUA e a ex-URSS estava na iminência de provocar a militarização total do espaço. As duas maiores potências do mundo começavam a testar armas anti-satélite. Em 1983, os EUA anunciaram a construção de ambicioso sistema de defesa antimíssil, oficialmente chamado de "Iniciativa de Defesa Estratégica", que logo ficou conhecido como "Guerra nas Estrelas". O projeto de um fantástico escudo contra os mísseis balísticos intercontinentais portadores de ogivas nucleares, constituído por armas de novíssima geração distribuídas inclusive no espaço, rompia com o princípio do equilíbrio estratégico e da dissuasão. Ele ressuscitava a premissa de que uma das partes do conflito poderia tornar-se inexpugnável e, portanto, mais forte que a outra. Esta parte, então, poderia vencer uma guerra nuclear. A proposta não conseguiu provar-se factível nem eficaz, como a das armas anti-satélite. Mas acelerou a corrida armamentista, agravando a tensão no mundo. Mesmo assim, o espaço não foi invadido por armas.

Em 1985, surgiu nova liderança soviética, que se mostrou cada vez mais decidida a liquidar a situação de rivalidade à beira do abismo e abrir caminho a amplas negociações com os EUA. A Guerra Fria foi ficando no passado.

Em menos de três anos, de 1989 a 1991, o mundo assistiu, atônito, àquele que talvez tenha sido o maior colapso político de todos os tempos, em condições de paz. A chamada "Comunidade de Países Socialistas Irmãos", no leste europeu, tutelada pela URSS, com seus regimes de economia estatizada e partido único, bem como a própria "União de Repúblicas Socialistas", ruíram como um castelo de cartas. Desaparecia um dos polos da confrontação e da corrida armamentista que durante tantas décadas ameaçara o planeta com nada menos que uma hecatombe nuclear.

O novo mapa geopolítico do mundo parecia dizer que não havia mais razões para levar a militarização do espaço até a introdução de armas capazes de transformá-lo em campo de batalha.

A impressão -- ou seria esperança? -- logo se dissiparia. A Guerra do Golfo, em 1991, encarregou-se de deixar isso bem nítido. A operação "Tempestade no Deserto" -- desencadeada pelos EUA e alguns aliados, em nome da ONU, para obrigar o Iraque a retirar-se do Kuwait, ocupado de modo ilegal -- assumiu dimensões claramente desproporcionais ao objetivo a ser alcançado, sobretudo em vista dos modernos meios utilizados.

A vasta mobilização militar orientou-se pelas imagens de sete satélites. Nunca tantos desses aparelhos haviam sido usados ao mesmo tempo com o mesmo fim bélico. Eles passavam, em média, doze vezes por dia sobre os campos de batalha e os alvos visados, gerando diariamente centenas de imagens. As Forças Armadas norte-americanas, além disso, mantinham em ação de 15 a 20 sinais de satélites só para interceptar as comunicações militares do Iraque, três satélites de meteorologia, pelo menos quatro satélites de comunicação e mais de 16 satélites Navstar, integrando o Sistema Global de Posicionamento (Global Positioning System - GPS). Valiam-se ainda, para atualizar os mapas da região, das imagens geradas pelos satélites civis de sensoriamento remoto Spot, da França, e Landsat, dos EUA.

Foi "a primeira ‘guerra espacial’, pois pela primeira vez aplicou-se em um conflito terrestre toda a linha dos modernos recursos militares espaciais", definiu, com exagero, o então Chefe do Estado Maior da Força Aérea dos EUA, Merril McPeak, que, logicamente, não perdeu a chance de pregar a ampliação do orçamento militar espacial, "mesmo nessa época de declínio de nossas atividades em muitas outras dimensões"… (2)

Na realidade, ainda não houve "guerra espacial" em lugar algum. A operação "Tempestade no Deserto" não se deu no espaço exterior, mas no território e no espaço aéreo do Iraque, o que é bem diferente. As mais recentes tecnologias espaciais apenas serviram de apoio para elevar o grau de precisão das ações aéreas e terrestres. Ver nisso a "primeira guerra espacial" presta-se a dissimular os passos transcendentais que ainda precisam ser dados para se viabilizar uma verdadeira guerra espacial. Poderemos, sim, tê-la, se e quando a comunidade internacional permitir a colocação de armas em órbita e a conversão do espaço em zona de combate. E essa possibilidade continuará a existir enquanto houver planos e elucubrações em altas esferas militares e políticas, acompanhados de intenso lobby, envolvendo a retomada das armas anti-satélite, já desenvolvidas pela ex-URSS e EUA, e de sistemas antimíssil com segmentos espaciais.

Neste ano da graça de 1997, em que se comemoram os 40 anos da Era Espacial, iniciada com o lançamento do Sputnik I em 4 de outubro de 1957, e os 30 anos do Tratado Sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes, de 1967 (3), celebrizado como o "Tratado do Espaço", pode-se festejar também o fato auspicioso de se ter mantido o espaço livre de qualquer tipo de arma.

O processo de sua militarização, no entanto, não se deteve, embora tenha sido forçado a moderar-se ante o novo contexto mundial e os obstáculos orçamentários internos. Os chamados usos militares "passivos" e "não-agressivos" do espaço em momento algum deixaram de ser aperfeiçoados e qualificados. São eles os de reconhecimento e observação, comunicação, navegação, meteorologia, geodésica, controle e comando, que passaram por excelente campo de provas nas Guerras do Golfo e da Bósnia. Sobre a Bósnia, os EUA experimentaram com êxito o sistema Jstars de observação espacial, com o qual acompanhavam, numa simples tela de computador, o movimento de cada veículo em área de 200 km quadrados, em qualquer clima.

Há eufemismos a dissecar, por aqui. Os usos militares "passivos" e "não-agressivos" podem dar suporte tanto a atividades igualmente "não-agressivas" quanto a atividades "agressivas". Tomados de forma isolada, claro, eles não configuram uma operação bélica. Mas, por que separá-los de sua real função? Afinal, são partes integrantes e imprescindíveis da central de inteligência que prepara e aciona todos os elementos essenciais de uma operação de guerra. Disso decorre que tais usos só podem ser considerados "passivos" se abstraídos do quadro em que atuam e dos objetivos a que servem -- artifício que minimiza e até oculta sua destinação efetiva. Deles dependem por inteiro os usos militares ativos. Podem não ser intrínseca e permanentemente "agressivos", mas, potencialmente, jamais deixam de sê-lo. Sua razão de ser é sempre militar. Eles estão a serviço do uso da força.

A passagem da militarização parcial e "passiva" para a militarização total e ativa do espaço segue contando, nos EUA, com influentes e tenazes advogados.

"Vamos combater no espaço", declarou o general Joseph W. Ashy, em meados de 1996, quando chefiava o Comando Espacial dos EUA e lhe perguntaram se o espaço exterior seria algum dia transformado em teatro de guerra. Ele foi enfático: "Certas pessoas não gostam de ouvir isso, mas é absolutamente certo que vamos combater no espaço." (4)

Autoridades do Departamento de Defesa norte-americano julgam que o controle militar do espaço deve tornar-se alta prioridade da segurança nacional dos EUA, pois o país depende, em escala crescente, de satélites que realizam imenso conjunto de tarefas vitais, desde a fixação de alvos para os mísseis até a efetivação de transações econômicas. Elas sustentam que o controle do espaço provavelmente irá requerer o desenvolvimento de armas baseadas no espaço [space-based weapons].

Em setembro de 1995, o subsecretário de Defesa para Desenvolvimento e Tecnologia [Aquisition and Technology], Paul Kaminski, criou o Escritório de Estrutura Espacial [Space Architect Office], confiando-o ao Major General da Força Aérea Robert Dickman. O Escritório logo recebeu a incumbência de elaborar um plano para o controle do espaço, a ser apresentado no primeiro semestre de 1997 à Direção de Administração Espacial Conjunta [Joint Space Management Board] do Departamento de Defesa, formada por militares e peritos de alto nível dos serviços de inteligência. (5)

Há já algum tempo, a Força Aérea dos EUA batalha para ver o controle do espaço transformado em prioridade da defesa nacional. Em setembro de 1994, a então secretária da Força Aérea, Sheila Widnall, declarou: "Controlar o espaço, com nossa habilidade para, se necessário, negar [a outros] o uso do espaço, é, certamente, parte da missão da Força Aérea."

Intervindo no 2º Simpósio Anual de Política e Estruturação Espacial [Space Policy & Architecture], em 12 de fevereiro de 1997, o general Howell Estes, comandante-em-chefe do Comando Espacial dos EUA, ressaltou, com cautela, que qualquer decisão de renovar o desenvolvimento de armas baseadas no espaço não será tomada pelos militares, mas afirmou, com toda clareza, que "nós […] apoiamos qualquer decisão que nossas lideranças eleitas venham a tomar com respeito ao controle do espaço e ao sistema de armas requerido".

Para o general Estes, os EUA devem ser capazes de "controlar o espaço", ação que ele define como "garantir o uso amistoso do espaço e, ao mesmo tempo, recusar o uso do espaço por forças hostis, contra nós". Como, a seu ver, "em termos puramente militares, a crescente dependência nacional com relação aos sistemas baseados no espaço constitui uma vulnerabilidade e a história mostra que as vulnerabilidades acabam sendo exploradas pelos adversários, os EUA devem estar preparados para defender tais sistemas". Ele assinala que as armas baseadas no espaço também "são uma alternativa viável para os sistemas baseados em terra". (6)

O controle do espaço, segundo os militares norte-americanos, pode ser alcançado por vários meios, desde os diplomáticos, usados na Guerra do Golfo para impedir o Iraque de comprar as imagens de satélite disponíveis no mercado comercial, até as armas anti-satélite, passando pelo bombardeio das estações terrestres que comandam os satélites e pela interferência eletrônica. (7)

"Enfrentando um desafio aéreo e espacial", este é o título do artigo do coronel James Smith, vice-diretor de Operações do Comando de Defesa Aeroespacial norte-americano, escrito em homenagem aos 50 anos da Força Aérea dos EUA.

Diz ele: "A Força Aérea, como serviço, não é mais aérea ou espacial. É as duas coisas. Tradicionalmente, ela tem feito distinção entre missões aéreas e espaciais. Essa divisão foi eliminada pelos seis principais deveres da Força Aérea do futuro: superioridade aérea e espacial, ataque global, rápida mobilidade global, participação precisa, superioridade de informação e ágil apoio ao combate."

Ele também frisa: "Como esta nação [EUA] é cada vez mais dependente dos recursos espaciais, a necessidade de defendê-los será cada vez mais convincente. Para esse fim, o setor espacial deve desenvolver uma mentalidade de guerra [the space side must develop a war fighting mentality]."

E acrescenta: "Estamos num ponto da história de nosso Serviço em que o espaço passou a predominar sobre o ar. A Força Aérea deve olhar o futuro campo de batalha tanto da perspectiva obtida em 9 mil metros [de altura] como da perspectiva obtida na órbita geoestacionária… Deve operacionalizar completamente o espaço, de modo que os aeronautas [airmen] compreendam e controlem por completo o meio aéreo e o espacial. Ao celebrarmos os primeiros 50 anos como serviço independente, merecemos nosso sucesso ao dominar o meio aéreo. Os próximos 50 anos vão exigir o domínio tanto do ar como do espaço. Este é um trabalho para a Força Aérea e Espacial dos EUA." (8)

"O Pentágono considera o espaço [exterior] como nova área de sua responsabilidade", revelou, em março de 1997, o semanário Aviation Week & Space Technology, porta-voz do complexo industrial-militar dos EUA. O Pentágono, vale lembrar, é o nome do prédio, em Washington, onde funciona o Departamento [Ministério] de Defesa norte-americano. A matéria expõe a visão defendida pelos militares no debate em curso no mais alto nível do governo norte-americano, sobre se o espaço exterior deve ou não ser promovido a "nova área de responsabilidade militar dos EUA". (9)

A revista recorda que os EUA têm, hoje, três "áreas de responsabilidade militar" -- terra, mar e ar – e anuncia que, se o presidente Bill Clinton concordar, o espaço exterior tornar-se-á a quarta área. A proposta é do Comando Espacial dos EUA e está formulada no Plano de Comando Unificado (PCU), renovado a cada dois anos e sempre submetido ao Pentágono. Esse PCU define as tarefas dos cinco Comandos Unificados com os quais os EUA cobrem todas as regiões importantes do planeta: o Comando Central, o Europeu, o Atlântico, o do Sul e o do Pacífico. Trata-se, portanto, de criar o Comando Unificado do Espaço, o sexto da série.

O Plano, em estudo no Estado Maior Conjunto das Forças Armadas, deve ser submetido ao Chefe do Estado Maior, general John M. Shalikashvili, que o levará à decisão final da Casa Branca.

Para os promotores da idéia, o intenso desenvolvimento, na última década, de sistemas espaciais comerciais, principalmente nas áreas de comunicação, navegação e sensoriamento remoto, é análogo à "histórica expansão econômica dos EUA em terra, mar e ar". "Como a liberdade de operar em cada um desses meios tornou-se essencial para o bem-estar da nação, foi necessário proteger as respectivas rotas comerciais. Isso conduziu ao desenvolvimento do Exército, da Marinha e da Força Aérea dos EUA. As atividades econômicas baseadas em terra, mar e ar têm como extensão natural o quarto meio, o espaço exterior", frisa a publicação. Como reforço aparecem estas palavras do general Howell M. Estes, atual chefe do Comando Espacial Unificado e do Comando Espacial da Força Aérea: "Toda a comercialização do espaço indica que ele em breve será de interesse nacional vital".

Na verdade, o espaço e seus negócios milionários já são de crucial interesse para os EUA, como o são também para os todos demais países. Que país pode, hoje, viver normalmente sem os satélites de telecomunicações, meteorologia e levantamento dos recursos naturais terrestres?

Aqui é preciso salientar: o espaço exterior não está destinado a expansões nacionais. A maioria esmagadora dos países, inclusive os EUA, já decidiu excluir do novo meio as formas de conquista de novas terras, mares e continentes, pelas quais os países mais poderosos promoveram a divisão e a colonização de nosso planeta. Resolveu-se também que a nenhum país é dado estender seu poder soberano além de seu espaço aéreo. Desde o início dos anos 60, consagrou-se por consenso universal o princípio fundamental de que a humanidade inteira tem interesse na exploração e no uso do espaço exterior e que toda a atividade especial deve ser realizada para o bem e no interesse de todos os países, seja qual for o nível de seu desenvolvimento econômico e científico. (10) Logo, tudo que se passa no espaço é de interesse geral de todos os países e povos.

Isto salta aos olhos na informação da própria Aviation Week & Space Technology, apesar de sua visão paroquial: "Hoje, há mais de 200 satélites dos EUA em órbita, avaliados em mais de US$ 100 bilhões, e ainda muitos outros programados para serem lançados nos próximos anos. Incluindo-se os objetos espaciais de países aliados e de organizações internacionais, há mais de 500 satélites em órbita…"

Neste quadro, a conclusão do general Estes não poderia ser mais unilateral: "Na medida em que estes bens se tornarem cruciais para a força econômica e o bem-estar nacional, eu, comandante militar, devo dizer que alguém irá ameaçá-los e que, quando isso ocorrer, devemos ter forças armadas para protegê-los." Ele crê que, "se houver alguma ameaça à nossa segurança nacional, o melhor e único caminho para resolver a questão é levar armas para o espaço".

O general Estes reconhece, porém, que, por ora, ainda não há inimigo visível ou previsível. Tanto que, esclarece ele, o Comando Espacial ainda não solicitou forças para usar no espaço, "porque lá não há ameaça que demande esse tipo de sistema".

Mas, a falta de um inimigo concreto não parece desestimular os estrategistas. O já mencionado general Joseph W. Aschy está bem mais preocupado em como estruturar as ações a serem efetuadas diretamente no espaço. Ele participa da edição especial da Aviation Week & Space Technology comemorativa dos 50 anos da Força Aérea dos EUA, publicada em abril de 1997, com um artigo em que enfatiza a necessidade de se pensar na organização das operações espaciais, pois "as futuras operações militares serão apoiadas não apenas do espaço, mas também dentro e para o espaço". (11)

A revista inglesa The Economist, em recente matéria de capa sobre a "Guerra do Futuro", afirma que "o mundo encontra-se nos estágios iniciais de nova revolução militar", mas que esta revolução "não responde a nenhuma ameaça especial aos EUA e seus aliados", tendo surgido apenas porque "os generais querem brincar com [to play with] as novas tecnologias para o caso de emergir futura ameaça", entre as quais as espaciais. (12)

O "brinquedo" destes generais norte-americanos, embora o texto não diga, faz a alegria também da bilionária indústria de armamentos, que só tem perdido com o fim da Guerra Fria.

A felicidade conjunta de certos generais e indústrias leva-nos à suspeita de que a corrida armamentista não é, necessariamente, produto de um perigo efetivo, como se alegava, por exemplo, com relação ao "império do mal", a ex-URSS -- inclusive quando ela já emitia sinais inequívocos de aguda crise interna, cuidadosamente negligenciada para não comprometer o interesse maior de fomentar o confronto.

Na mesma direção, a jurista francesa Monique Chemillier-Gendreau adverte, em recente obra, que "as indústrias de armamento são superdimensionadas em todos os países industrializados em relação às suas necessidades de defesa" e que "a máquina militar aparece assim como máquina maluca, que escapa ao controle político e social". (13)

Qualquer corrida armamentista sempre assume dinâmica própria, independente dos fatos da vida real. Não precisa de inimigos verdadeiros para existir e vicejar. Bastam alguns fantasmas.

Com efeito, a ausência de adversários, na Terra como no espaço, não causa nenhum constrangimento ao novo secretário de Defesa dos EUA, William S. Cohen. Seu Relatório da Revisão Quadrienal da Defesa (The Quadrennial Defense Review), enviado ao Congresso na segunda quinzena de maio de 1997, lista as condições a cumprir para capacitar os EUA a aplicarem seu poder militar em qualquer parte do mundo.

Eis a quarta condição: "Os EUA devem manter a superioridade no espaço. Todos os serviços globais de inteligência, o apoio à navegação, a previsão meteorológica e as comunicações estão ligados a bens baseados no espaço. Para conservar nossa atual vantagem no espaço, até mesmo quando mais usuários desenvolvem capacidades no setor e meios de acesso ao espaço, devemos concentrar suficiente esforço de inteligência em monitorar o uso estrangeiro [foreign use] de bens baseados no espaço, bem como em desenvolver as capacidades requeridas para proteger nossos sistemas e prevenir o uso hostil do espaço pelos adversários." (14)

Esta posição assume, no essencial, as idéias estratégicas em alta no país. Não obstante, ela foi criticada como "insuficiente" pelo Painel Nacional de Defesa, integrado por altas patentes militares, que avaliou o Relatório da Revisão Quadrienal da Defesa.

Especificamente sobre o segmento espacial, o Painel assim se pronunciou: "O espaço é, claramente, de grande importância para a segurança nacional, e nós devemos maximizar a eficácia das funções exercidas no espaço. Ademais, o valor e a quantidade de usos quase certamente irão aumentar de modo exponencial nas próximas duas décadas. O acesso à informação de fonte espacial nos permite aplicar melhor os sistemas militares e civis que possuímos hoje, bem como aqueles que estamos próximos de adquirir. As ameaças ao acesso ao espaço e aos nossos sistemas baseados no espaço incluem os assaltos através de computadores, as interferências eletrônicas e os futuros sistemas a laser e a energia cinética. Pode-se esperar o aumento das ameaças no espaço na medida em que se expandam as tecnologias. É opinião do Painel que o uso do espaço e a vulnerabilidade diante das ameaças espaciais receberam atenção insuficiente na Revisão Quadrienal da Defesa. O Departamento de Defesa precisa desenvolver uma estratégia para manter o acesso ao espaço. A estratégia e a doutrina militar no século 21 só serão efetivas e viáveis se o espaço for tratado como uma fronteira vital para a guerra."

O secretário de Defesa, vale observar, preferiu lavrar, no relatório, que os EUA devem "manter a superioridade no espaço", em vez de "controlar o espaço", como propunham muitos militares. A mudança é sintomática. Ela indica que o governo norte-americano não pode ignorar ou ficar indiferente às normas universalmente reconhecidas do Tratado do Espaço, de 1967, em cuja elaboração os EUA tiveram ativa participação e do qual são parte comprometida desde a primeira hora. O objetivo oficial de um país de "controlar o espaço" não se coaduna com o que rezam os dois primeiros artigos deste Tratado, tido como o código do espaço.

O Artigo 1º, § 2, estabelece que "o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado livremente por todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes".

O Artigo 2º, por seu turno, determina que "o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio".

Ora, controlar o espaço não pode significar outra coisa senão o ato ou o poder de exercer a supervisão, o domínio e certo governo sobre o espaço, fiscalizar e julgar o que ali se faz ou se deixa de fazer. Isto é incompatível com os citados princípios da liberdade de acesso, uso e exploração do espaço para todos os países, sem qualquer discriminação, e da não-apropriação do espaço sob qualquer forma ou pretexto. A nenhum país é atribuído o direito de sequer pretender qualquer domínio sobre o espaço, sejam quais forem o modo projetado e a razão alegada. O espaço, não sendo de nenhum país em particular, é de todos. A prerrogativa de assumir qualquer tipo de responsabilidade sobre ele, sobretudo militar, ou será da competência de todos os países em conjunto, ou será ilegal. Eis a letra e o espírito do Direito Espacial Internacional em plena vigência.

A cautela do secretário de Defesa dos EUA, portanto, é sinal positivo, de reconhecimento da legalidade internacional vigente. Ele trocou o termo "controle do espaço", juridicamente insustentável, por "superioridade no espaço", situação efetiva resultante do avanço tecnológico de um país que, em princípio, não pode ser questionada do ponto de vista legal, a menos que esta superioridade se traduza em ações prejudiciais às atividades espaciais dos demais países.

Ocorre que esta substituição em nada altera as metas militares traçadas. A Aviation Week & Space Technology é muito clara a respeito: "O tema do ‘controle do espaço’ é consistente com os objetivos do Departamento de Defesa fixados no documento ‘Visão Conjunta do ano 2010’ [Joint Vision 2010], dos chefes de Estados-Maiores, e com o Plano Mestre de Segurança Nacional no Espaço [National Security Space Master Plan], desenvolvido pelo vice subsecretário de Defesa para o Espaço, Robert V. Davis." (15)

Mas, há um pensamento mais sofisticado sobre o "controle do espaço" no próprio Comando Espacial da Força Aérea dos EUA. A major Cynthia A. S. McKinley, analista de política e estratégia do Comando, reconhece: "Hoje, muitas nações e negócios dependem dos sistemas espaciais, o que cria um contexto muito mais complexo do que o existente durante a Guerra Fria. O espaço deixou de ser a ‘área de cima’. Agora, ele é bem mais a ‘área comum’". Por isto, a seu ver, "os combatentes do espaço precisam começar a pensar em atingir os objetivos políticos e militares através de campanhas destinadas a influenciar, dissuadir, convencer e derrotar os adversários". É o que ela chama de "espectro de coerção", considerando-o consentâneo com a doutrina e a estrutura emergentes de controle do espaço, criadas pelo Departamento de Defesa.

O enfoque da major McKinley parece sensível à natureza internacional do espaço. Ela entende que "a rápida comercialização do espaço, em curso, está mudando o ambiente potencial de combate, do domínio militar para um domínio comercial internacionalmente entrelaçado". E argumenta: "Os sistemas espaciais não têm um proprietário apenas. Algumas satélites servem a nada menos de 135 países, membros de um consórcio espacial."

Por esta razão, para ela, "a responsabilidade militar [dos EUA] de controlar o espaço não está em controlar este meio, mas antes em controlar a capacidade do adversário de explorar e de tirar proveito do meio". Afinal, o objetivo militar maior é negar ao adversário o uso do espaço. (16)

A constatação de McKinley é correta. A inferência, nem tanto. Como medida de autoproteção – ou, para ser mais exato, como medida de prevenção para o uso eventual do direito de legítima defesa --, qualquer país, inclusive os EUA, tem o direito de estar perfeitamente a par do que os demais países realizam no espaço e até do que eles podem ou aspiram lá empreender. Mas, nenhum país tem o direito de agir de forma unilateral e preventiva contra outro país -- negando-lhe, no caso, o acesso ou o uso do espaço.

Todo e qualquer litígio ou conflito em potencial, na Terra ou no espaço, é de absoluta competência do Conselho de Segurança da ONU. Este é o sistema assentado pela Carta da ONU, através de seu Capítulo VII (Ação relativa a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão), cuja vigência no espaço e corpos celestes está entre as normas internacionais imperativas, inderrogável e passível de mudança unicamente por meio de norma de mesma natureza.

No Direito Internacional contemporâneo e, de modo especial, no Direito Espacial, o fato de um país considerar outro como inimigo não é assunto meramente doméstico. É internacional. Diz respeito à paz e à segurança de toda a comunidade de países e povos e, portanto, à humanidade como um todo.

No espaço, cuja assimilação é definida como "incumbência de toda a humanidade" no Artigo 1º do Tratado do Espaço de 1967, a presença de controvérsias e, mais ainda, de confrontações é ameaça demasiado grave ao conjunto das atividades espaciais com suas implicações cada vez mais essenciais ao desenvolvimento da vida na Terra. Deve ser debelada o mais rapidamente possível, com o apoio explícito e a participação ativa de toda a comunidade de países, por meio de seus principais organismos intergovernamentais. O alegado uso hostil do espaço é problema a ser constatado, analisado e enfrentado por todos os países, e não por apenas um.

Apesar de tudo isso, parecem prevalecer nos EUA, sobretudo nas esferas de poder, a doutrina e a estratégia que tratam o espaço como "fronteira vital para a guerra". Setores de peso almejam que o país, contumaz na prática de se atribuir o direito e a função de juiz de questões internacionais e polícia do mundo, prepare-se para atuar da mesma forma também no espaço. Eles vêem o novo meio, antes e acima de qualquer consideração, como área de interesse estratégico própria dos EUA. Não fazem qualquer menção à alternativa ou sequer à possibilidade de se recorrer ao esforço conjunto da comunidade internacional, à cooperação entre os países, todos igualmente interessados na contenção de abusos e agressões, bem como no uso e na exploração do espaço para fins pacíficos. O unilateralismo dos EUA, já tantas vezes traduzido em ações arbitrárias, tende a conservar-se inalterável nesta época de vertiginoso progresso científico e tecnológico, que eles lideram. Nos tempos da tão decantada globalização, seu implacável nacionalismo não mostra nenhuma propensão a ceder.

"Ninguém pode dizer ao certo onde esta revolução [militar] terminará", afirma The Economist. Grave equívoco. A história tem muito a testemunhar sobre isso. Os planos de militarização, em geral, acabam criando, fomentando e até agravando tensões de modo artificial. Em particular, nas condições atuais do mundo, eles são perfeitamente capazes de bloquear e atrasar a conquista de uma ordem jurídica global mais justa, democrática e solidária, reclamada por mais de dois terços da humanidade.

Essas tendências e perspectivas em nada favorecem o melhor desempenho e a consolidação do Direito Internacional moderno, centrado na missão superior de manter a paz e a segurança internacionais. No século mais violento da história, em que o homem atingiu a capacidade de aniquilar a própria espécie e o planeta onde vive, este Direito conseguiu – como está lavrado na Carta da ONU -- proibir o uso e até a ameaça de uso da força nas relações entre povos e países, exigir a solução exclusivamente pacífica das controvérsias e admitir o emprego das armas tão somente no interesse comum de toda a comunidade mundial.

A simples tentativa de estender ao espaço exterior a lógica da força e da destruição, de tão trágicas conseqüências aqui na Terra, é bem mais que um perigoso recuo com relação a estes avanços históricos. É uma afronta.

Mas há quem tente tranquilizar as consciências com razões aparentemente humanistas: "A guerra no espaço atingiria quase exclusivamente objetos materiais e não vidas humanas. Satélites não tripulados é que seriam destruídos ou inutilizados. Não haveria no espaço as carnificinas que ornamentam o triste acervo da história da guerra. Nada de Verdum, de Estalingrado ou de Hiroshima. O que há para condenar, então?" (17)

Há para condenar um engodo astucioso e irresponsável em assunto de vital relevância para a evolução do gênero humano, por pelo menos quatro motivos:

1) É absolutamente impossível garantir que a guerra no espaço se limitaria apenas a objetos espaciais e não ceifaria vidas humanas, como se os interesses em jogo no espaço fossem diferentes e isolados dos interesses em jogo aqui na Terra.

2) Não há a menor dúvida de que a destruição, ainda que parcial, do imenso e variado conjunto de satélites que hoje servem aos habitantes do nosso planeta pode trazer prejuízos incalculáveis às atividades econômicas, industriais, agrícolas, financeiras, culturais, educacionais, tecnológicas e científicas de um sem-número de países.

3) Assegurar categoricamente que não haveria carnificinas como as de Verdum, Estalingrado ou Hiroshima é subestimar, sem base real, o alcance dos efeitos desastrosos causados pelo total descontrole dos sistemas espaciais, cegos e surdos, ao serem alvejados.

4) Mesmo admitindo a hipótese absurda de que a vida não seria afetada, nada justificaria a eliminação indiscriminada de objetos espaciais tão custosamente criados pelo homem, ao longo de tantos anos, para melhorar sua existência e permitir-lhe o conhecimento cada vez mais profundo do universo.

O Direito Espacial sobre a militarização do espaço

O Tratado do Espaço de 1967, pedra angular do Direito Espacial, assume, já na introdução, três posições que denotam sua forte tendência e disposição de se opor ao uso militar do espaço:

1) Reconhece "o interesse que apresenta para toda a humanidade o programa da exploração e uso do espaço cósmico para fins pacíficos";

2) Expressa o deseja dos países de promoverem "ampla cooperação internacional no que concerne aos aspectos científicos e jurídicos da exploração e uso do espaço cósmico para fins pacíficos";

3) Considera "aplicável ao espaço cósmico" a resolução 110 (II) da Assembléia Geral da ONU, de 3 de novembro de 1947, que "condena a propaganda destinada a ou susceptível de provocar ou encorajar qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou qualquer ato de agressão".

No mesmo sentido, em seu Artigo 3º, o Tratado do Espaço reza que as atividades espaciais "deverão efetuar-se em conformidade com o direito internacional, inclusive a Carta da ONU, com a finalidade de manter a paz e a segurança internacional e de favorecer a cooperação e a compreensão internacionais".

Em verdade, o Tratado do Espaço, elaborado de 1963 a 1966, parece refletir, no máximo grau possível a seus redatores, o anseio de paz e entendimento que empolgava a opinião pública internacional e a comunidade de nações nos anos 60, de intensa Guerra Fria. A letra e o espírito deste documento básico são francamente pacifistas.

Em 1984, em uma das piores fases da Guerra Fria, o juiz da Corte Internacional de Justiça, Manfred Lachs, que participou ativamente da elaboração do Tratado do Espaço, reiterou de forma enfática, no seminário sobre "A manutenção do espaço exterior para fins pacíficos", promovido na Haia, Países Baixos, pela Universidade das Nações Unidas: "Seja qual for a tentativa de interpretar o texto [do Tratado do Espaço], a lei é clara e é confirmada pelos trabalhos preparatórios: o objetivo é a plena desmilitarização desta nova dimensão." (18)

Contudo, em momento algum o Tratado do Espaço determina que o espaço deva ser utilizado "exclusivamente para fins pacíficos". Tal dispositivo resultaria irreal e inócuo, pois entraria em choque frontal com os interesses estratégicos das duas potências espaciais em confronto, EUA e URSS. Àquela altura, elas já tinham comprovado o excelente desempenho dos "satélites espiões". Ao mesmo tempo e com idênticas preocupações, elas jamais admitiriam fechar o espaço exterior à passagem de seus mísseis balísticos intercontinentais munidos de ogivas nucleares, a mais poderosa arma que esgrimiam um contra o outro.

Assim, por maiores que fossem os desejos pacifistas e o esforço de abnegados juristas de muitos países, como o próprio Manfred Lachs, no sentido de impedir a militarização do espaço, não foi possível interditar por inteiro seu uso militar. Lacunas ficaram abertas. Elas não chegaram a ser totalmente aproveitadas ao longo da Guerra Fria. Hoje, servem aos que julgam inevitável e imprescindível alojar armas lá em cima.

Estas lacunas estão no Artigo 4º do Tratado do Espaço, que trata especificamente da questão militar. Vamos analisá-lo.

Diz o Artigo 4º:

"Os Estados-Partes do Tratado se comprometem a não colocar em órbita qualquer objeto portador de armas nucleares ou de qualquer outro tipo de armas de destruição em massa, a não instalar tais armas sobre os corpos celestes e a não colocar tais armas, de nenhuma maneira, no espaço cósmico.

Todos os Estados-Partes do Tratado utilizarão a Lua e os demais corpos celestes exclusivamente para fins pacíficos. Estarão proibidos nos corpos celestes o estabelecimento de bases, instalações e fortificações militares, os ensaios de armas de qualquer tipo e a exclusão de manobras militares. Não se proíbe a utilização de pessoal militar para fins de pesquisas científicas ou para qualquer outro fim pacífico. Não se proíbe, do mesmo modo, a utilização de qualquer equipamento ou instalação necessária à exploração pacífica da Lua e demais corpos celestes."

No primeiro parágrafo, há duas brechas da maior gravidade:

1. Só estão proibidas as armas de destruição em massa colocadas em órbita da Terra. Não estão proibidos – e logo, são permitidos -- os vôos semiorbitais dos mísseis balísticos portadores de armas de destruição em massa, que apenas dão um salto no espaço exterior e, portanto, não entram em órbita da Terra;

2. Só estão proibidas no espaço as armas de destruição em massa (nucleares, químicas e bacteriológicas). Qualquer outro tipo de arma, inclusive as mais modernas, a laser ou de feixes de partículas, não está proibida – logo, é permitida.

A desmilitarização apenas parcial do espaço – veto aos testes com armas nucleares e à colocação em órbita de armas de destruição em massa -- contrasta com a desmilitarização completa da Lua e outros corpos celestes, fixada no segundo parágrafo.

Os corpos celestes devem ser utilizados "exclusivamente para fins pacíficos". Lua, Marte e todos os demais estão livres de bases, instalações, fortificações, manobras militares e testes (explosões) com qualquer tipo de arma.

O Acordo sobre as Atividades dos Estados na Lua e em Outros Corpos Celestes (19), conhecido como o "Acordo da Lua", aprovado por unanimidade pela Assembléia Geral da ONU em 1979 e em vigor desde 1984, detalha mais o princípio da desmilitarização.

Diz seu minucioso Artigo 3º:

"1 - A Lua deve ser utilizada por todos os Estados-Partes exclusivamente para fins pacíficos".

2 - Na Lua, é proibido recorrer ao uso ou ameaça de uso da força e a qualquer ato hostil ou ameaça de ato hostil. Também é proibido o uso da Lua para a realização de tais atos ou a formulação de tais ameaças com relação à Terra, à Lua, às naves espaciais, à tripulação das naves espaciais e aos objetos espaciais artificiais.

3 - Os Estados-Partes não colocarão em órbita da Lua ou em qualquer trajetória de vôo para a Lua, ou em torno dela, objetos portadores de armas nucleares ou de qualquer outro tipo de armas de destruição em massa, nem instalarão ou usarão tais armas no solo ou subsolo da Lua.

4 - São proibidos na Lua o estabelecimento de bases, instalações e fortificações militares, a realização de testes com qualquer tipo de armas e a condução de manobras militares. Não se proíbe a utilização de pessoal militar para fins de pesquisas científicas ou para qualquer outro fim pacífico. Não se proíbe, do mesmo modo, a utilização de qualquer equipamento ou instalação necessária à exploração pacífica da Lua e demais corpos celestes."

O Acordo da Lua e outros corpos celestes, apesar da aprovação unânime da Assembléia Geral da ONU, foi ratificado, até hoje, por apenas nove países, entre os quais não há nenhuma potência espacial. Isto, claro, compromete seu peso e autoridade. Mas de modo algum enfraquece o princípio da desmilitarização total da Lua e demais corpos celestes, erigido, antes de mais nada, no Tratado do Espaço, de validade inquestionável, e apenas desenvolvido e pormenorizado neste Acordo da Lua.

Note-se que tanto o Artigo 4º do Tratado do Espaço quanto o Artigo 3º do Acordo da Lua valem-se, ao final, de texto idêntico para permitir o emprego de pessoal militar, bem como de equipamentos e instalações de origem militar, em atividades científicas e outras, desde que tenham "fim pacífico" e constituam "exploração pacífica" do corpo celeste.

Isto se justifica pelo caráter duplo das tecnologias espaciais, capazes de servir a propósitos pacíficos ou militares.

O mais importante neste dispositivo, é, porém, a clara oposição fixada entre atividades "militares" e "pacíficas". Os militares, junto com seus equipamentos e instalações, só podem ser admitidos na Lua e nos outros corpos celestes se não estiverem exercendo suas funções precípuas, ou seja, militares, e se estiverem a serviço de projetos "pacíficos". Pouco importa se as atividades militares são "agressivas" ou "não-agressivas". Basta serem "militares" para se tornarem inaceitáveis.

O mesmo enfoque já fora consagrado na Antártica, o primeiro continente do planeta Terra inteiramente desmilitarizado por meio de acordo internacional. O Tratado da Antártica de 1959 determina, em seu Artigo I, que essa região "será usada somente para propósitos pacíficos" e que nela "serão proibidas, inter alia, todas as medidas de natureza militar, tais como o estabelecimento de bases e fortificações militares, a realização de manobras militares, assim como as experiências com qualquer tipo de armas".

Toda a prática de quase 40 anos da Antártica desmilitarizada -- sem vetar a entrada e o trabalho de especialistas militares -- mostra com clareza que qualquer atividade efetivamente militar é incompatível com seu status especial de território dedicado tão somente a empreendimentos pacíficos.

Também a área constituída pelo fundo dos oceanos, solo e subsolo, fora da zona de jurisdição dos Estados, "está aberta à utilização exclusivamente para fins pacíficos", segundo o Artigo 141 da Convenção da ONU sobre Direitos do Mar, de 1982. Ali não se admite a realização de testes com armas, nem sua instalação.

Da mesma forma, o acordo multilateral firmado em 1988 entre EUA, Agência Espacial Européia, Japão e Canadá, para a construção de uma estação espacial tripulada e permanente, vincula, em seu Artigo 1.1, o projeto a "fins pacíficos". O emprego destas palavras foi assim interpretado por Ivan Vlasic, professor do Instituto de Direito Aeronáutico e do Espaço da Universidade McGill, em Montreal, no Canadá: "Considerando que o maior problema durante a negociação deste acordo foi a forte oposição da maioria dos Estados participantes a qualquer envolvimento dos militares no projeto ou no uso da estação espacial, a inclusão da expressão "fins pacíficos" pode ter um único significado lógico – ‘não militar’."

Entender "pacífico" como "não militar" parece óbvio. A primeira resolução da Assembléia Geral da ONU sobre a questão espacial, de 14 de novembro de 1957, após o lançamento do Sputnik I em 4 de outubro daquele ano, introduziu a expressão "exclusivamente para fins pacíficos" com o sentido inequívoco de "não militares". Esta visão tinha pleno apoio do governo norte-americano. Em janeiro de 1958, o presidente Dwight D. Eisenhower propôs à URSS um acordo para que os dois países utilizassem o espaço "apenas para fins pacíficos" e não para "testar os mísseis designados para fins militares".

Ocorre que, exatamente por essa época, final dos anos 50, os satélites de reconhecimento militar haviam se tornado tecnicamente viáveis. Logo a seguir, eles inauguraram o primeiro uso militar do espaço. A honra, provavelmente, coube ao programa norte-americano de vigilância militar denominado Samos (Satellite and Missile Observation System), que lançou cerca de 20 satélites de outubro de 1960 a janeiro de 1963. (20)

Foi então que surgiu nos EUA a teoria de que os satélites militares não envolvidos com operações agressivas poderiam e deveriam ser considerados "pacíficos", já que seriam inofensivos. Richard N. Gardner, professor universitário e vice-secretário de Estado dos EUA, sustentava que "o critério de legitimidade de um uso particular do espaço não está em ser ele militar ou não militar, mas em ser pacífico ou agressivo". (21) Com isto, os satélites militares "passivos", como os de reconhecimento (espionagem), comunicação, navegação e outros, ingressariam no respeitável rol dos "pacíficos".

Esta posição foi adotada por muitos juristas, sobretudo nos EUA. Stephen Gorove, por exemplo, afirma que ela "é amparada pela Carta da ONU, que não considera ilegais as atividades militares em geral, proibindo apenas as ameaças à paz, as perturbações à paz e os atos de agressão". (22)

Certo, a Carta não interdita todas as atividades militares. Ela permite as atividades militares de defesa, para habilitar os países a exercerem seu "direito inerente de legítima defesa, individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado (…) até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais", como reza o Artigo 51 da Carta. Nada mais justo. Mas isto não converte as ações militares de defesa em "pacíficas". Por sua própria natureza, elas continuam sendo "militares", ainda que "defensivas" e, portanto, "não agressivas". As atividades militares podem ser "agressivas" e "não agressivas". Nem por isso elas deixam de ser militares. E nem por isso as "militares não agressivas" se transfiguram em "pacíficas".

Daí a reação irônica de Vladlen Vereshchetin, hoje juiz da Corte Internacional de Justiça: "Métodos semânticos não podem transformar atividade militar em atividade pacífica e vice-versa; em qualquer língua, toda atividade pacífica permanece pacífica e toda atividade militar, militar." (23)

Na mesma linha, E. Kamenétskaia foi ainda mais longe e alertou que "certos esforços feitos para distorcer o significado geralmente aceito da palavra ‘militar’ (tornando-a, por exemplo, sinônimo de "agressivo") são de legitimidade duvidosa e não ajudam a esclarecer a verdade". (24) De fato, o empenho de restringir o âmbito das ações "militares" unicamente a ações "agressivas" e de colocar as atividades militares não agressivas no mesmo plano das pacíficas, como se obedecessem à mesma dinâmica, fossem animadas pelos mesmos interesses e perseguissem os mesmos objetivos, pode ser visto como mero artifício para dissimular ou ocultar a verdadeira natureza de cada um dos tipos de atividades em questão.

Se no espaço as atividades militares não estão inteiramente proibidas, como na Lua, não tem o menor sentido outorgar a certas operações militares a medalha de pacíficas. Bem ao contrário, é preciso definir com clareza os usos militares hoje permitidos ou tolerados na prática. Isto tem a dupla vantagem de conferir a tais usos a necessária garantia de legitimidade e, ao mesmo tempo, de fixar de forma cristalina um limite razoável e controlável para o processo de militarização do espaço.

O perigo maior, hoje, está na introdução, instalação e uso de armas no espaço. Se esta fronteira for ultrapassada, como não poucos querem, o mais provável é que aumentem a insegurança e as incertezas das atividades espaciais em geral e das próprias nações aqui na Terra.

Um grave problema prático não deve ser minimizado: se permitirmos a entrada de armas no espaço, estaremos agravando de tal modo a situação que, como bem alertou Kamenétskaia, dificilmente haverá possibilidade de retorno. Conforme demonstra a experiência histórica, é muito mais difícil retirar de um lugar as armas já instaladas do que impedir que elas ali entrem.

Importantes instrumentos jurídicos nos ajudam nesta tarefa, desde que sejam mantidos em vigor, fortalecidos e até desenvolvidos.

O Tratado sobre a Limitação dos Sistemas de Defesa Antimissil, firmado pelos EUA e URSS em 1972, conhecido como "Tratado ABM", proíbe, em seu Artigo 5º, que os dois países desenvolvam, testem e instalem sistemas de defesa antimíssil, baseados no espaço. De início, ele permitia a cada país a construção de dois sistemas antimísseis baseados em terra. Depois, pelo Protocolo de 1974, passou a permitir apenas um. Isto visava impedir a instalação de um sistema de defesa antimíssil de abrangência nacional, destinado a proteger o país inteiro, pois tal estrutura romperia com o princípio da paridade estratégica, considerada essencial para a convivência pacífica entre as duas potências.

Para "legalizar" seu já referido projeto "Iniciativa de Defesa Estratégica" (IDE), imenso sistema antimíssil com vasto segmento espacial, destinado a tornar o território dos EUA inatingível pelos mísseis soviéticos, o Governo Ronald Reagan curiosamente não quis correr o risco político de retirar-se de modo unilateral do Tratado ABM e preferiu cunhar interpretação sui generis de suas normas: os sistemas antimísseis com armas baseadas em novas tecnologias, como as de energia dirigida, previstas no IDE, inexistentes à época da assinatura do Tratado ABM, estariam livres de proibição.

A manobra fracassou. A nova interpretação foi rejeitada por importantes membros do Congresso dos EUA, por diplomatas e especialistas norte-americanos que negociaram o Tratado ABM, pela comunidade científica e acadêmica do país e pela maior parte dos países aliados. Graças a isto, ao fim da Guerra Fria e à necessidade de cortes nas despesas do governo, o IDE perdeu a razão de ser e o caráter de megaprojeto. Mas não desapareceu de todo.

Neste ano de 1997, o Governo Clinton anunciou a intenção de dobrar o orçamento do programa nos próximos seis anos, de US$ 2.3 bilhões para US$ 4.6 bilhões. É uma base concreta para o avanço qualitativo da militarização do espaço. Antes, porém, terá que mudar substancialmente o Tratado ABM.

Como relata Scott Pace em "Interesses Econômicos e Sistemas Espaciais Militares: Uma Perspectiva Americana", "para muitos partidários dos mísseis balísticos de defesa, o Tratado ABM é visto como um anacronismo que deve ser abandonado o quanto antes." (25) Por isto, defender a integridade original desse tratado ajuda a bloquear o espaço à entrada de armas.

A Convenção sobre a Proibição do Uso de Técnicas de Modificação do Meio-Ambiente com Fins Militares ou Quaisquer Outros Fins Hostis, de 1977, considera ilegal toda "manipulação deliberada dos processos naturais", com propósitos militares, que vise "modificar a dinâmica, a composição ou a estrutura da Terra, inclusive suas biotas, sua litosfera, sua hidrosfera e sua atmosfera, ou o espaço exterior". O Artigo 1º da Convenção veta o uso militar das técnicas de modificação do meio-ambiente com efeitos abrangentes, duráveis ou graves, para causar destruições, perdas e prejuízos aos outros países. Não é um instrumento de aplicação fácil e direta. Mas pode-se presumir, sem muita dificuldade, que o disparo de armas modernas contra o espaço a partir da Terra, contra a Terra a partir do espaço e no próprio espaço, e a conseqüente conversão deste meio em campo de batalha, seguramente produzirão males hoje incalculáveis aos processos naturais tanto do espaço como da Terra.

O Tratado sobre a Limitação das Armas Estratégicas Ofensivas, de 1979, conhecido como "Salt II" (Strategic Arms Limitation Talks), proíbe, em seu Artigo 9, o desenvolvimento, os testes e a instalação de sistemas de armas nucleares ou de armas de destruição em massa em órbita da Terra, inclusive os mísseis de órbita fracionária.

O histórico primeiro Tratado de Redução das Armas Estratégicas (Start I), de 1991, diminui os arsenais de mísseis balísticos e, embora não restrinja o uso militar do espaço, reforça os Tratados ABM e Salt II, bem como todas as medidas de controle de armamentos, adotadas pelos EUA e URSS (hoje Federação Russa).

Ironicamente, no mesmo dia em que os presidentes George Bush e Mikhail Gorbachov assinaram o Start I, o Senado dos EUA aprovava o Ato de Defesa por Mísseis (Missile Defense Act), prevendo a construção, em breve, em Grand Forks, no Estado de North Dakota, de novo sistema de defesa antimíssil, descrito como o primeiro passo para a instalação de um sistema de abrangência nacional. O próprio Ato reconhece que para sua efetiva implementação o Tratado ABM terá que alterado. Em 1995, O Congresso dos EUA aprovou lei que vincula o país ao desenvolvimento e instalação de um múltiplo sistema de defesa antimíssil cobrindo todo o território americano. (26) São mais provas do quanto é importante manter incólume o Tratado ABM.

O espaço não só continua livre de qualquer tipo de armas, como jamais foi palco de um único ato de hostilidade. Para conservá-lo assim, no entanto, o atual marco jurídico que regulamenta seu uso militar é, sem dúvida, insuficiente e precisa ser sensivelmente aperfeiçoado, antes que seja tarde.

Caminhos para evitar a militarização total do espaço

"O que pode impedir a transformação do espaço exterior em arena de competição militar e território vigiado com armas?", pergunta Kamenétskaia, e ela própria comenta: "A resposta não está no plano técnico, mas no político-jurídico. A questão é de vontade política, decisões políticas e obrigações jurídicas. Neste sentido, o fator essencial para deter, limitar e proibir a militarização do espaço exterior é o Direito Internacional." (27)

Isto significa que a vontade, as negociações e as decisões de ordem política são elementos indescartáveis do processo em questão, mas não suficientes. O vetor político precisa estar comprometido com um esforço de cooperação e convergência que, necessariamente, conduza à elaboração conjunta de obrigações jurídicas nítidas, efetivas e eficazes, aprovadas de comum acordo e em plena harmonia com os princípios básicos do Direito Internacional, consolidados na Carta da ONU e, no caso, também no Tratado do Espaço.

O uso e a exploração do espaço -- indispensáveis, de altíssimo risco e crescente complexidade – são, mais do que nunca, atividades estratégicas para a paz, a segurança e o desenvolvimento de todos os países e de toda a humanidade. Os Estados -- e suas empresas públicas ou privadas -- envolvidos com programas espaciais têm a responsabilidade e a obrigação de antecipar com máxima presteza os fatos capazes de causar malefícios e prejuízos aos outros países, conforme reza o Artigo 9º do Tratado do Espaço.

Por isso, o Direito Espacial, como outros ramos de vanguarda do Direito moderno, tem o dever especial de adiantar-se a possíveis ou prováveis contextos de grande e reconhecido perigo, adotando medidas claramente preventivas.

Por outro lado, o espaço, como meio de utilidade universal já imprescindível mas ainda eivado de incertezas e ameaças, requer estrita segurança jurídica, ou seja, a vigência de regras objetivas e lúcidas que garantam o império do direito sobre a vontade particular de quem quer que seja.

Isto é sobremodo importante na medida em que aos países mais fortes, habituados a impor sua vontade, não costuma interessar nem a previsibilidade, nem a objetividade das normas legais: eles preferem a negociação caso a caso, onde mais facilmente fazem prevalecer seu força e seus interesses.

Vale observar que, no presente quadro internacional, a falta de parceiros para negociar com os EUA em igualdade de condições pode reduzir ainda mais sua já escassa inclinação a fazer concessões aos anseios da maioria dos outros países, que não têm como fazer concessões correspondentes. (28)

Assim, não é difícil prever: a lei espacial que impedir a militarização total do espaço será o coroamento de uma obra político-jurídica excepcional, capaz de vencer obstáculos aparentemente insuperáveis no mundo de hoje, tão desigual e ainda tão impotente diante das freqüentes arbitrariedades.

Mas esta cruzada já começou. Vejamos alguns de seus marcos:

Em 1978, a Assembléia Geral da ONU, no relatório final da sessão especial sobre desarmamento, conseguiu pela primeira vez recomendar que "para prevenir a corrida armamentista no espaço exterior, negociações internacionais adequadas deverão ser realizadas e novas medidas adotadas".

Em 1979, a Itália propôs ao Comitê de Desarmamento o projeto de um Protocolo Adicional ao Tratado do Espaço de 1967, fixando que o espaço exterior deve ser usado "somente para fins pacíficos" e proibindo o estabelecimento de bases ou instalações militares e o estacionamento de dispositivos [devices] com igual efeito, além do lançamento de "aparelhos destinados a fins ofensivos" e dos testes com qualquer tipo de armas.

Em 1981, a Assembléia Geral da ONU pediu ao Comitê de Desarmamento, formado por representantes de 40 países, para estudar, com prioridade, formas de prevenir a extensão da corrida armamentista ao espaço.

Em 1981, a URSS propôs o projeto do "Tratado sobre a Proibição de Instalação no Espaço de Qualquer Tipo de Arma", que, no entanto, veta só as armas colocadas em órbitas da Terra, não incluindo, portanto, os dispositivos anti-satélite baseados em solo e na atmosfera. Mas a maior falha deste projeto é seu Artigo 3º, pelo qual "cada Estado-Parte do Tratado compromete-se a não destruir, não danificar e não interferir no funcionamento dos objetos espaciais de outros países, se estes objetos forem colocados no espaço em estrita conformidade com o artigo 1º, § 1, deste Tratado {Não pôr em órbita da Terra objetos que levem a bordo qualquer tipo de arma]". Tal formulação leva ao absurdo de se admitir a cada país o direito de abater um satélite de outro país, se considerar que ele transporta armas. Isto seria legalizar o uso da força no espaço na forma de ação unilateral e preventiva, em violação da Carta da ONU. Outro defeito grave: o projeto permite que os países-membros do Tratado dele se retirem quando "fatos extraordinários… puserem em perigo seus supremos interesses". Ora, o mais valioso em tratados desta natureza é que eles funcionem justamente nos momentos extraordinários.

Em 1983, a URSS propôs, em carta de seu ministro das Relações Exteriores ao secretário geral da ONU, o projeto do "Tratado sobre a Proibição do Uso da Força no Espaço Exterior e do Espaço Exterior contra a Terra". A proposta, mais ampla e convincente que a de 1981, tem o grande mérito de banir por completo os sistemas anti-satélite, inclusive os baseados em solo e na atmosfera. Além disso, cria um Comitê Consultivo para resolver os problemas que surjam durante a implementação do tratado, e simplesmente não prevê a possibilidade de os países renunciarem a ele.

Em 1985, a Conferência de Desarmamento, que substituiu o Comitê de Desarmamento, criou um Comitê Ad Hoc para examinar os problemas relativos à prevenção da corrida armamentista no espaço.

Em 1985, a URSS incluiu na agenda da sessão da Assembléia Geral da ONU o ítem "Sobre a Cooperação Internacional na Exploração Pacífica do Espaço Exterior, nas Condições de sua Não-Militarização".

Em 1986, o governo da URSS, em carta ao secretário geral da ONU, desenvolveu ainda mais o documento do ano anterior e propôs a criação de uma Organização Mundial do Espaço, como parte de ambicioso programa de cooperação espacial de alcance global, com base na premissa da "não-militarização" do espaço. Os soviéticos definiam a "não-militarização" do espaço como "a renúncia pelos Estados da criação (inclusive o trabalho de pesquisa científica correspondente), dos testes e do desenvolvimento de armas espaciais de ataque". Mas esta definição restrita da expressão não sensiblizou o governo dos EUA, que sempre preferiu interpretá-la como abarcando todo e qualquer uso militar do espaço. Isto, claro, contribuiu em muito para liquidar a proposta.

Em 1986, a URSS propôs à Conferência de Desarmamento a assinatura de um acordo internacional garantindo a imunidade dos satélites, proibindo o desenvolvimento, testes e instalação de armas anti-satélite, e eliminando as existentes.

Em 1987, a URSS recomendou ao Comitê Ad Hoc que considerasse a possibilidade de formar um sistema internacional de verificação de satélites e outros objetos espaciais antes de serem lançados, para interceptar o envio de armas ao espaço.

Em 1988, a URSS submeteu à Conferência de Desarmamento o memorando "Sobre a Criação de um Sistema de Controle Internacional para Não Permitir a Instalação de Qualquer tipo de Arma no Espaço Exterior", destinado a inspecionar in-situ todos os objetos preparados para serem lançados ao espaço, a fim de impedir que transportem armas. A nota evita falar em "não-militarização". Vai direto ao ponto.

Em 1989, a Venezuela propôs à Conferência de Desarmamento a ampliação da abrangência do Artigo 4º do Tratado do Espaço, estendendo sua proibição a todos os tipos de armas e atribuindo a todos os países-membros a obrigação de "não desenvolver, produzir, estocar ou usar tais armas".

Em 1992, o relatório do Comitê Ad Hoc informa sobre as duas visões básicas em confronto neste assunto. Para as chamadas potências do Ocidente, entre elas os EUA, "o regime jurídico existente responde de modo eqüitativo e equilibrado à necessidade de promover o uso pacífico e o controle de armas no espaço exterior". Já a maioria dos países membros do Comitê pensa que "os instrumentos legais em vigor não satisfazem; limitados em seu alcance, eles são inteiramente inadequados para impedir a corrida armamentista no espaço exterior, pois não contêm normas bem definidas proibindo todos os tipos de armas espaciais".

Em 1993, a França e outros países propuseram à Conferência de Desarmamento emenda ao Artigo 4º da Convenção sobre o Registro de Objetos Lançados ao Espaço Cósmico, de 1975, procurando garantir que informações mais específicas sobre a verdadeira missão de cada satélite, sobretudo a respeito de sua natureza, civil ou militar, sejam mais rapidamente difundidas, antes do respectivo lançamento. Ao mesmo tempo, eles sugeriram a criação, sob os auspícios da ONU, de um centro internacional encarregado de coletar e distribuir as informações fornecidas pelos países lançadores de objetos espaciais. A absoluta transparência dos dados essenciais de cada lançamento espacial, se efetivamente observada, pode fomentar um clima de confiança, capaz de afastar suspeitas entre os países, enfraquecendo o argumento que defende a instalação de armas no espaço para fazer frente a "possíveis inimigos futuros". Aliás, é oportuno lembrar que o Brasil não assinou a Convenção sobre o Registro de Objetos Lançados ao Espaço, justamente por julgar insuficientes os dados por ela requeridos dos lançamentos espaciais. (29)

Há alguns anos, tudo indica, a Comissão Ad Hoc vem se ocupando muito mais com a discussão de medidas inspiradoras de confiança [confidence-building measures] do que com a elaboração de acordo ou acordos destinados a bloquear o espaço à corrida armamentista. É um desvio de sua tarefa principal. Não são poucos os países que criticam essa injustificável mudança de rumo. Entre eles está a Rússia, que nesta matéria mantém a posição da URSS. Por mais benéfico que seja, o fortalecimento da confiança não substitui, em termos de eficácia e segurança, o compromisso jurídico, assumido e lavrado em sua plenitude.

A nova realidade do pós-Guerra Fria permitiu aos EUA e à Rússia uma acomodação em níveis mais baixos de suas paridades militares, sobretudo no campo nuclear (30). A causa do desarmamento global pôde avançar como jamais se logrou antes. Eis os documentos conquistados neste breve período:

1) Tratado de Eliminação dos Mísseis de Curto e Médio Alcance, de 1987;

2) 1º Tratado de Redução e Limitação de Armas Estratégicas Ofensivas, de 1991 (Start I);

3) 2º Tratado de Redução e Limitação de Armas Estratégicas Ofensivas, de 1993 (Start II);

4) Tratado do Céu Aberto [Open Skies Treaty], de 1992, firmado entre EUA, Canadá e 23 países da Europa, entre eles a Rússia.

5) Convenção de Proibição do Desenvolvimento, Produção, Estocagem e Uso de Armas Químicas e de sua Destruição, de 1993, vigente desde abril de 1997, que levou 20 anos para ser elaborado;

6) Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares, de 1996, também antiga reivindicação da maioria dos países.

Graças aos Start I e II, em 2003, se tudo correr como foi acertado, haverá apenas 30% dos arsenais nucleares computados em 1990, nos EUA e na Rússia, ou seja, 3,5 mil ogivas em cada país, em lugar das respectivas 12.718 e 10.779. Há ainda a expectativa da negociação do Start III, prevista, no encontro de cúpula EUA-Rússia, em Helsinque, em maio de 1997, para logo após a ratificação do Start II pelo parlamento russo. O Start III poderá diminuir os arsenais nucleares a cerca de 2 mil-2,5 mil ogivas dentro de dez anos.

Em 1995, é justo acrescentar, o mecanismo de revisão do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) foi reforçado, possibilitando que os países-membros não-nucleares exerçam maior pressão em favor do desarmamento nuclear.

Para o final de 1997, espera-se a conclusão de um acordo internacional proibindo as minas antipessoal.

Tudo isto, com certeza, seria impensável há pouco mais de uma década.

Curiosamente, só não houve avanço jurídico no âmbito das múltiplas tentativas de fechar o espaço exterior à corrida das armas.

Ocorre que a maioria esmagadora dos países-membros da ONU deseja proibir as armas espaciais e sua influência só tende a aumentar, nos próximos anos, com o desenvolvimento cada vez mais intenso das atividades espaciais no campo das pesquisas científicas, da indústria e dos serviços, e com o crescente interesse e participação de mais e mais países em tão prósperos projetos.

Assim, numa perspectiva otimista, talvez não esteja distante o dia em que a salutar e bendita perseverança da comunidade mundial terá alcançado a vontade e a decisão política consensual para excluir da história a possibilidade da militarização total do espaço.

Nesse dia, uma primeira tarefa jurídica multilateral parecerá lógica e premente: atualizar o Tratado do Espaço, a começar pelo Artigo 4º, que admite a colocação de armas no espaço, exceto as nucleares e de destruição em massa.

Deverão ser fechadas, então, as brechas por onde hoje podem se infiltrar ações espaciais capazes de tornar letra morta o singular Artigo 1º, no qual, pioneiramente, se erige em lei o bem comum de toda a humanidade.

* Jornalista e jurista. Editor do Jornal da Ciência, da SBPC, membro da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA) e do Instituto Internacional de Direito Espacial, da Federação Internacional de Astronáutica.
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Notas

(1) Space Law: Development and Scope, edited by Nandasari Jasentuliyana; foreword by Manfred Lachs, Praeger Published, 1992, p. x.     (Volta)

(2) Vlasic, Ivan, Space Law and the Military Applications of Space Technology, in Perspectives on International Law, Edited by Nandasiri Jasentuliyana, London: Kluwer Law International, 1995, p. 388.     (Volta)

(3) Tratado Sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes, aprovado pela Assembléia Geral da ONU como Resolução 2222 (XXI), em 19 de dezembro de 1966, foi aberto à assinatura dos Estados em 27 de janeiro de 1967 e entrou em vigor em 10 de outubro de 1967. Direito e Relaões Internacionais, textos coligidos e ordenados por Vicente Marotta Rangel, S. Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 4ª edição, 1993, p. 317; Direito Internacional Público, Tratados e Convenções, Celso D. de Albuquerque Mello, Rio de Janeiro: Renovar, 4ª edição, 1986, p. 535.      (Volta)

(4) Aviation Week & Space Technology, 5 de agosto de 96.     (Volta)

(5) Space News, 17-23 de fevereiro de 97.     (Volta)

(6) Space News, 17-23 de fevereiro de 97.     (Volta)

(7) Space News, 17-23 de fevereiro de 97.     (Volta)

(8) Space News, 24-30 de março de 97.     (Volta)

(9) Aviation Week & Space Technology, 24 de março de 97.      (Volta)

(10) Declaração dos Princípios Jurídicos Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Resolução 1962 (XVIII) da Assembléia Geral da ONU, de 13 de dezembro de 1963.      (Volta)

(11) Aviation Week & Space Technology, 16 de abril de 97.     (Volta)

(12) The Economist, de 8 de março de 1997.     (Volta)

(13) Chemillier-Gendreau, Monique, Humanité et souverainetés -- essai sur la fonction du droit international, Paris: Éditions La Découverte, 1995, pp. 293/4.     (Volta)

(14) Defense News, EUA, via Internet.     (Volta)

(15) Aviation Week & Space Technology, 26 de fevereiro e 10 de março de 97.     (Volta)

(16) Aviation Week & Space Technology, 10 de março de 97.     (Volta)

(17) Grouard, Serge, La Guerre en Orbite - Essai de politique et de stratégie spatiales, Paris: Ed. Economica, 1994, p. 221.     (Volta)

(18) Maintaining Outer Space for Peaceful Uses, edited by Nandasiri Jasentuliyana, The United Nations University, 1984, p. 7. Manfred Lachs, juiz da Corte Internacional de Justiça, dirigiu o seminário. Como presidente do Subcomitê Jurídico do Comitê da ONU para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (Copuos), nos anos 60, ele desempenhou papel fundamental no processo de elaboração do Tratado do Espaço de 1967.     (Volta)

(19) Acordo sobre as Atividades dos Estados na Lua e em outros Corpos Celestes [Agreement Governing the Activities of States on the Moon and Other Celestial Bodies], aprovado pela Assembléia Geral da ONU como Resolução 34/68, em 5 de dezembro de 1979. Aberta à assinatura dos países em 18 de dezembro de 1979. Entrou em vigor em 11 de julho de 1984. Conta hoje com 9 ratificações (Austrália, Áustria, Chile, Filipinas, Marrocos, México, Países Baixos, Paquistão e Uruguai) e cinco assinaturas (França, Guatemala, India, Peru e Romênia).       (Volta)

(20) Cotardière, Philippe de la, et Penot, Jean-Pierre, Dictionnaire de L’Espace, Paris: Larousse, 1993, p. 204.     (Volta)

(21) Vlasic, Ivan, ib., p. 391.     (Volta)

(22) Gorove, Stephen, Developments in Space Law, The Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers, 1991, p. 257     (Volta)

(23) Kamenétskaia, E. P., International Legal Problems of Preventing an Arms Race in Outer Space, in Perestroika and International Law, edited by W. E. Butler, The Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers, 1990, p. 149.     (Volta)

(24) Id. ib.       (Volta)

(25) Pace, Scott, Economic Interests and Military Space Systems: An American Perspective, in Gasparini Alves, Péricles (editor), Evolving Trends in the Dual Use of Satellites, Unidir, United Nations Institute for Desarmament Research, Geneva, 1996, p. 146.       (Volta)

(26) Jankowitsch, Peter, Legal Aspects of Military Space Activities, in Space Law: Development and Scope, edited by Nandasari Jasentuliyana; foreword by Manfred Lachs, Praeger Published, 1992, p. 153. Ver também SIPRI Yearbook 1996 Armaments, Disarmament and International Security, Stockholm International Peace Research Institute, New Yoirk: Oxford University Press, 1996, p. 650.     (Volta)

(27) Kamenétskaia, E. P., ib., p. 147.     (Volta)

(28) Jankowitsch, Peter, ib. p. 155.     (Volta)

(29) Convenção sobre Registro de Objetos Lançados ao Espaço, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, como Resolução 3235 (XXIX), em 12 de novembro de 1975. Aberta para assinatura dos países em 14 de janeiro de 1976, entrou em vigor em 15 de setembro daquele ano. Conta com 4 assinaturas e 39 ratificações. Sobre a decisão do Brasil de não assinar esta convenção, ver Monserrat Filho, José, O Brasil e o Direito Espacial I, in Revista Brasileira de Direito Aeroespacial, nº 64, de julho-dezembro de 1993.     (Volta)

(30) Lafer, Celso, "Dividendos da paz"no mundo pós-guerra fria, O Estado de S. Paulo, 5 de julho de 1997, p. 2.     (Volta)

Fontes

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Chemillier-Gendreau, Monique, Humanité et souverainetés - essai sur la fonction du droit international, Paris: Éditions La Découverte, 1995.

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