I. Conceito de codificação
0 interesse do tópico que nos propomos
abordar, se vincula com a questão mais genérica do processo
legislativo do direito espacial. A indagação subsistente na
codificação desse direito Consiste em saber como se elaboram
as normas e qual o conteúdo próprio desse mesmo direito.
Importa igualmente em saber qual a sistematização - se é que
existe - alcançada por essas mesmas normas.
Evidentemente, o tema da codificação não
tem pertinência exclusiva com o direito espacial. Está ele
relacionado, ao contrário, com todos os ramos do direito,
público e privado, interno e internacional. Não há como
negar que o direito espacial, conquanto possua incidência no
direito interno de cada País, se insere propriamente no
direito internacional, do qual é apenas um dos ramos, por
sinal dos mais recentes e promissores. Releva fixar, a
título preliminar, tal inserção, pois a codificação alcança,
no direito internacional, características próprias, que
serão adiante objeto de menção. Comecemos, todavia, por
indagar em que consiste a codificação e quais os propósitos
em promovê-la.
A codificação consiste na conversão, em
um corpo sistemático de regras escritas, das normas vigentes
com pertinência a determinada matéria ou determinada
relação. Tais normas, ainda que em vigor, nem sempre são
escritas como ocorre, verbi gratia, com as de natureza
consuetudinária.
Muitas vezes são avulsas, isoladas, como
as que brotam de determinado fato social. Convém, pois,
sistematizá-las num corpo de regras escritas. Eis, assim, o
objetivo de toda codificação, pouco importando se refira ela
a normas de direito público ou privado, a norma de direito
interno ou do direito das gentes. Tal objetivo justifica,
pois, tanto o pioneirismo de Napoleão Bonaparte na
elaboração do Código Civil francês ou o empenho da Convenção
de Filadélfia na gestação da primeira Constituição escrita
de que se tem notícia, de 1787, como ainda o esforço
envidado pela sexta conferência panamericana, em 1928, na
aprovação do Código de direito internacional privado, o
chamado Código Bustamante.
Uma das características do direito
espacial reside em sua origem relativamente recente, pois
somente lhe seria possível existir após a colocação em
órbita do primeiro satélite artificial de nosso planeta,
último elo da progressão de uma cadeia tecnológica. O
direito emerge dos fatos, confirmando-se assim o adágio dos
antigos romanos: ex facti jus oritur. É, sobretudo, a partir
de 4 de outubro de 1957 que indagações começaram a
formular-se em torno do conteúdo e da natureza das normas
que deveriam compor o novo direito. Fatos relevantes
subseqüentes concorreram por desafiar, como estímulo, o
desenvolvimento do direito emergente, tais como o envio do
primeiro homem ao espaço em 12 de abril de 1961, o
desembarque na superfície lunar a 20 de julho de 1969, o
acoplamento das naves Apollo e Soiúz 19, numa mesma
experiência soviético-estadunidense, e o ciclo dos ônibus
espaciais e das estações orbitais. Esse desenvolvimento não
tem deixado de prosseguir, não obstante o cunho trágico de
alguns eventos, como a tragédia do Challenger, que explodiu
em sua décima missão a 28 de janeiro de 1986, acarretando a
morte dos seus sete tripulantes. Fatos outros estão a exigir
resposta no âmbito jurídico: centenas de objetos espaciais
que remanescem no cosmos ou que reentram na atmosfera
terrestre; a variedade desses objetos cuja catalogação
poderia abranger os satélites científicos, para
telecomunicação ou para a observação da terra, os quais
incluem os satélites meteorológicos e os de sensoriamento
remoto, assim como as sondas destinadas a saírem da zona de
influência terrestre, e as plataformas espaciais concebidas
para serem habitadas com permanência pelo homem.
A problemática da codificação nos impele
a formular determinadas indagações, a saber: 1) quem
codifica?; 2) o que se codifica?; 3) como se codifica?
II. Quem codifica
A primeira indagação consiste, pois, em
saber, quem codifica o direito espacial. A rigor, o poder de
codificar, ou seja, o poder de elaborar ou identificar
normas que rejam o comportamento dos homens e Estados no
espaço exterior (ou astronáutico), pertence aos próprios
Estados. Esta resposta exige, no entanto, complementação,
pois a era espacial, que estamos a viver, surgiu no contexto
da área das organizações internacionais que, segundo alguns,
constituem mesmo a marca específica do século XX. Ora, as
organizações internacionais têm personalidade jurídica;
direção autônoma; e vontade própria, a qual nem sempre é
redutível à vontade dos respectivos Estados membros. O certo
também é que o poder dos Estados na elaboração ou
identificação das normas do direito espacial não se faz a
título individual ou regional. O reconhecimento ou a gestão
dessas normas, que têm um alcance universal e interessam,
pois, concomitantemente aos habitantes do planeta Terra,
exige a participação global de todos os Estados, e essa
participação, conquanto pudesse em tese ocorrer fora do
contexto das organizações internacionais, acaba se exercendo
efetivamente no contexto delas, em particular no das Nações
Unidas cuja legitimidade em matéria de codificação se
assenta no propósito que os Estados lhe cometeram de
alcançar a paz e o desenvolvimento de todos os povos.
Assenta-se igualmente na competência deferida expressamente
à Assembléia Geral da ONU, nos termos do art. 13, § 1o,
alínea a da Carta de Organização — a de "incentivar o
desenvolvimento progressivo do direito internacional e a sua
codificação". Ora, a ONU é composta por Estados, os quais se
fazem representar na Assembléia Geral. Em última análise,
são os Estados, pois, os principais agentes da codificação
do direito espacial.
III. O que se codifica
A segunda indagação que, como vimos, cabe
suscitar é a seguinte: o que se codifica? Essa pergunta nos
remete necessariamente ao tema das fontes do direito, ou
seja, aos meios mediante os quais o direito é conhecido e
aplicado. Como cada ramo tem suas próprias fontes, a
codificação varia em função do ramo do direito a considerar
e das fontes que lhe sejam respectivas. É fácil compreender
que o conteúdo da codificação do direito interno difere do
conteúdo da codificação do direito internacional. A razão
está em que as fontes de um direito não coincidem
necessariamente com as de outro direito. Como o direito
espacial é um ramo do direito internacional (ou direito das
gentes), saber qual o conteúdo efetivo ou potencial do
direito espacial, requer que se explicitem as fontes do
direito internacional. Tais fontes, como se sabe, estão
elencadas no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de
Justiça.
Entre as fontes principais ali
enunciadas, estão os tratados internacionais, em primeiro
lugar. A codificação do direito espacial contemporâneo
exigiria que nela se abrangessem, quando e enquanto
couberem, normas de convenções internacionais como as que já
foram promulgadas entre nós, a saber, o tratado sobre
princípios reguladores das atividades dos Estados na Lua e
demais corpos celestes, de 27 de janeiro de 1967 (promulgado
internamente pelo decreto n0 64.362, de 17 de abril de
1969); a convenção sobre salvação de astronautas, retorno de
astronautas e restituição de objetos lançados no espaço
exterior, de 22 de abril de 1968 (promulgada entre nós pelo
decreto n0 71.989, de 26 de março de 1973), e a convenção
sobre responsabilidade internacional devida a danos causados
por objetos espaciais, de 29 de março de 1972 (promulgada
pelo decreto n0 71.981, de 22 de março de 1973).
A esses atos plurilaterais, poder-se-ia
acrescentar convenções a que o nosso país não se vincula
como a concernente a registro de objetos lançados no espaço
exterior, de 14 de janeiro de 1975 e a que rege as
atividades dos Estados na Lua e em outros corpos celestes (o
chamado Tratado da Lua), de 1979. Observe-se, porém, que o
conteúdo da codificação cresce de relevância à medida que
abrange normas de vigência efetiva e de aplicação difundida.
Entre as fontes principais do direito
internacional, catalogam-se também os costumes
internacionais e os princípios gerais de direito.
Quanto aos costumes internacionais como
conteúdo de codificação, pareceria, à primeira vista, que o
tempo transcorrido desde o início da era espacial, ou seja,
menos de quatro décadas, não teria sido suficiente para
gerá-los. O requisito de longa consuetudine há de ser visto,
porém, com cautela em nossos dias em face do chamado
processo vertiginoso da história. Certo é que duas regras se
têm admitido como tendo natureza consuetudinária. Vigem,
pois, independentemente do fomento de outras fontes. A
primeira dessas regras afirma que a soberania do Estado não
se estende ao espaço situado além da atmosfera terrestre; a
segunda reconhece a liberdade de circulação nesse espaço,
independentemente da vontade do Estado ou dos Estados que
venham a ser sobrevoados. Ambas as regras são, aliás,
mutuamente relacionadas; a segunda não é senão corolário da
primeira. Antes do advento dessas duas normas, prevalecia,
como se sabe, a regra pela qual a soberania territorial do
Estado se estenderia na direção do céu, usquead sidera.
Tal regra era explicitada na doutrina e não possuía nenhum
respaldo consuetudinário pela simples razão de inexistir
outrora o uso do espaço cósmico, ou seja, o elemento
objetivo apto à formação de costume. O lançamento e
colocação em órbita do primeiro satélite artificial
soviético em 1957 comportou, de fato, em giro de poucas
horas, o sobrevôo do território de numerosos Estados, nenhum
dos quais formulava qualquer protesto, protesto esse também
inexistente por ocasião da passagem de satélites
subseqüentes. Essa ausência de protestos é ainda mais
significativa pelo fato de que elas têm sido constantemente
formuladas pelos Estados quando, sem autorização, o espaço
aéreo respectivo é singrado por aviões estrangeiros. Basta
recordar os numerosos incidentes aéreos levados à
consideração da Corte Internacional de Justiça no curso da
década de 50 e sobretudo o abatimento, em 1960,do avião U-2
dos Estados Unidos que estava efetuando um vôo de
reconhecimento no espaço aéreo da União Soviética. Não
apenas a União Soviética protestou energicamente contra a
violação de sua soberania senão também a juridicidade da
posição de Moscou foi reconhecida pela maioria dos Membros
do Conselho de Segurança. Desde então, outros incidentes
ocorreram como o do abatimento, igualmente em 1960, de um
bombardeiro americano RB-47 ao longo da costa soviética, dos
quais emerge a tese de que o reconhecimento do território
somente é lícito quando efetuado a partir do espaço aéreo
suprajacente do alto mar. É o que nos esclarece POCAR, em
obra recente.
Quanto a princípios gerais de direito,
cabe observar que, desde os primórdios da era astronáutica,
se cuidou de precisá-los. A Assembléia Geral das Nações
Unidas os consignou na resolução n° 1962 (XVIII), de 13 de
dezembro de 1963, e os explicitou no tratado internacional
por ela adotado cerca de três anos mais tarde, em 19 de
dezembro de 1966, ou seja, o tratado concernente a
"princípios reguladores das atividades dos Estados na
exploração e uso do espaço cósmico, inclusive a Lua e demais
corpos celestes". Tais princípios são os seguintes: 1) a
exploração e uso do espaço cósmico devem ter em mira o bem e
interesse de todos os países e são incumbência de toda a
humanidade; 2) o espaço cósmico não pode ser objeto de
apropriação nacional; 3) o espaço cósmico poderá ser
explorado e utilizado livremente por todos os Estados, sem
qualquer discriminação, em condições de igualdade e em
conformidade com o direito internacional, devendo haver
liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes;
4) os astronautas são considerados como enviados da
humanidade no espaço cósmico.
Quanto às fontes secundárias do direito
internacional, cabe menção à jurisprudência internacional e
à doutrina, sendo de notar inexistirem, até agora, sentenças
dos tribunais internacionais concernentes à utilização do
espaço cósmico. A doutrina, sim, tem contribuição a
registrar, tendo sido ela a primeira a dá-la no tempo.
Recordo-me, a propósito, que, transcorrido pouco mais de um
ano do lançamento do "Sputnik", em artigo publicado na
Revista da Universidade Católica de São Paulo (e depois
reproduzido na Revista dos Tribunais, vol. 291, pp. 28 e
segs.), intitulado "A soberania dos povos na era
astronáutica", já me dava conta do estado da doutrina de
então sobre "a natureza do espaço intersideral", mencionando
autores como Kroell, Cooper, Costadvat, Ambrosini, citava
mesmo Danier e Saporta que, em artigo publicado até dois
anos antes desse lançamento na "Revue Genérale de l'Air", de
1955, n0 3, intitulado "Le Droit Aérien et les Satellites
Artificiels", clamavam pela necessidade de refrear a corrida
militar a esses satélites. Contribuição relevante da
doutrina nesses primórdios foi o revigoramento do conceito
de humanidade que, conhecido desde a Idade Antiga e realçado
singularmente pelo cristianismo, se mantinha hibernado desde
o advento do conceito e da prática de soberania dos Estados.
O consagrado e já referido artigo 38 dos
Estatutos da Corte Internacional de Justiça transcreve
disposição respectiva de outro Estatuto, o da Corte
Permanente de Justiça Internacional, órgão principal de
solução judiciária da extinta Sociedade das Nações. Na época de
redação desse artigo, a era das organizações internacionais
que estamos a viver se encontrava nos primórdios, razão pela
qual o Estatuto não fazia menção às resoluções de órgãos
internacionais cuja importância hoje é inegável. Essas
resoluções, desde que se refiram ao cosmos, também
constituem substância necessária do processo de codificação
do direito espacial, pouco importando sejam elas fontes
autônomas ou não do direito internacional; ou sejam
catalogadas quer como acordos de forma simplificada, quer
como declaratórias de costumes internacionais ou mesmo como
elemento objetivo desses mesmos costumes.
IV. Como se codifica
A terceira indagação que, como apontamos,
cabe formular, é a seguinte: como se codifica? A pergunta
comporta várias respostas. Efetivamente, é possível
codificar de três maneiras: a) por via da doutrina; b)
mediante resolução de órgãos internacionais; c) por
intermédio de tratados internacionais.
Por via da doutrina, a codificação pode
ser individual como por exemplo, a feita no pretérito, na
Europa por Pasquale Fiore ou no Brasil, por Epitácio Pessoa,
ambas em relação ao direito internacional público; ou pode
ser institucional, como a que vem sendo realizada, em
diferentes quadrantes do direito internacional, por
sociedades científicas como a American Society of
International Law ou o Institut de Droit International. No
caso específico do direito espacial, poder-se-ia mencionar a
Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial como visando
colaborar mediante cursos e publicações, na realização de
uma codificação doutrinária.
A segunda maneira de codificar é por via
de resoluções de órgãos internacionais. Diferentemente do
Pacto da Sociedade das Nações, omisso no concernente ao tema
da codificação, a Carta das Nações Unidas tem, como acima se
disse, disposição sobre codificação do direito
internacional. Investida de competência a respeito, a
Assembléia Geral instituiu, nos primórdios de suas
atividades, a 21 de novembro de 1947, a Comissão de direito
internacional. A contribuição desta Comissão ao progresso
desse direito tem sido relevante, bastando mencionar, no rol
dos tratados internacionais de cuja elaboração participou,
as Convenções de Genebra sobre direito do mar e as
Convenções de Viena sobre relações diplomáticas, sobre
relações consulares e sobre os próprios tratados
internacionais, assinados respectivamente em 1961, em 1967 e
em 1968. Embora houvesse tendência, no início, de conferir à
Comissão de direito internacional, o monopólio na tarefa de
codificação, tendência essa hoje praticamente insubsistente,
os fatos acabaram revelando que, ao menos por exigências de
tecnicidade e especialização, outros órgãos poderiam ser
incumbidos da mesma tarefa. Foi o que ficou demonstrado logo
após o início das atividades de exploração do espaço
cósmico.
Notórias que são as implicações dessa
exploração no âmbito do poder e da estratégia,
principalmente das duas superpotências de então,
apresentaram estas, no correr do ano subseqüente ao do
lançamento do "Sputnik", sucessivamente, em 18 de março e em
2 de setembro de 1958, petição à Assembléia Geral visando à
interdição do espaço cósmico para fins militares. A
Assembléia Geral decidiu reunir ambas as petições e
encaminhá-las ao exame de sua Primeira Comissão. A 13 de
dezembro de 1958, ou seja, transcorrido pouco mais de um ano
do lançamento do primeiro satélite, a Assembléia Geral, por
via de resolução 1358 (XXII), criou um Comitê especial de 18
membros, o qual pela resolução 1472 (XIV) de 12 de dezembro
de 1959, se converteu no COPUOS, o Comitê das utilizações
pacíficas do espaço extra-atmosférico (United Nations
Comittee on the Peaceful Uses of Outer Space). Assim, pouco
mais de dois anos do início das atividades espaciais, estava
criada uma Comissão especial que, tanto quanto a Comissão de
direito internacional instituída cerca de doze anos antes,
se incumbiu de codificar o direito internacional, mas num
domínio particular, o do espaço cósmico. A contribuição
tanto da Comissão de direito internacional quantodo COPUOS
pode redundar em resoluções da Assembléia Geral, mediante as
quais se codifica o direito internacional em seus diferentes
domínios. Exemplo de resolução com esse alcance, mas em
domínio diferente do direito espacial, é a Carta Econômica
dos Estados, que foi adotada pela Assembléia Geral da ONU e
cuja ressonância no direito internacional do desenvolvimento
é bastante conhecida. Exemplos de resoluções da Assembléia
Geral no domínio espacial são a de n0 1962
(XVIII), a que acima nos referimos, intitulada "Declaração
dos Princípios Jurídicos Reguladores das Atividades dos
Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico", (adotada por
unanimidade a 13 de dezembro de 1963); e a de n0 1884
(XVIII) que insta os Estados a se absterem de colocar em
órbita quaisquer objetos portadores de armas nucleares ou de
qualquer outro tipo de arma de destruição em massa e de
instalar tais armas em corpos celestes (adotada por
unanimidade, a 17 de outubro de 1963).
Conquanto se admita que possuam as
resoluções da Assembléia Geral positividade e cogência,
forçoso é reconhecer não alcançarem o mesmo grau de
normatividade dos tratados internacionais de que elas são, o
mais das vezes, preparatórias. Via de regra, as resoluções
antecipam e preludiam tratados internacionais sobre os
mesmos assuntos. Os tratados podem ser, nesse sentido,
corolário de resolução e testemunham também etapa mais
avançada do processo de codificação. São os tratados, pois,
a terceira via de codificação do direito internacional em
geral e do direito espacial em particular. Objetos de
aprovação dos Estados em suas relações recíprocas, tanto no
âmbito de organizações internacionais como fora desse
âmbito, tais tratados se incorporam ao direito interno
desses mesmos Estados em conformidade com o estatuído nos
respectivos ordenamentos constitucionais.
V. A importância dos tratados
internacionais no processo de codificação
Ante a indagação que formulamos sobre
como codificar, a resposta é que se pode fazê-lo por via da
doutrina, de resolução de órgãos internacionais e, enfim, de
tratados internacionais. São os tratados internacionais,
pelo fato de serem providos de maior grau de positividade e
de eficácia, os instrumentos mais adequados da codificação.
Sucede também que os tratados internacionais não são apenas
a resultante preferível do processo de codificação mas
também se constituem em matéria prima desse processo, indo
nutrir a codificação doutrinária e a codificação por via de
resoluções internacionais. A doutrina e as resoluções se
convertem, por seu turno, em matéria-prima de toda
codificação cujo remate são os próprios tratados
internacionais. As demais fontes do direito das gentes, como
os costumes e a jurisprudência internacionais, que não são
adequadas formalmente à tarefa de codificação, continuam
necessariamente a alimentar o processo codificatório. Todas
as fontes, aliás, quaisquer que sejam, em maior ou menor
grau, constituem nutrientes indispensáveis desse mesmo
processo. Há, pois, entre essas fontes, uma relação mútua
necessária, de reversibilidade, que se insere na espiral de
um processo dialético.
A título de ilustração do que acaba de
ser dito, reportemo-nos, ainda que de modo sumário, às
convenções internacionais de direito espacial.
Tomemos, de início, o tratado de 29 de
dezembro de 1966, sobre princípios, que o Brasil ratificou e
promulgou (decreto n0 64.362, de 17de abril de 1969). Já o
preâmbulo menciona três resoluções da Assembléia Geral,
patamares intermediários que o são na construção normativa
do tratado. Na parte dispositiva, o tratado se restringe a
ser declaratório de costumes e de doutrinas então
prevalecentes, ao consignar que o espaço cósmico, inclusive
a Lua e demais corpos, "poderá ser explorado e utilizado,
livremente, por todos os Estados, sem qualquer
discriminação" (art. 1Q, alínea 2à), não podendo "ser objeto
de apropriação nacional por proclamação de soberania, por
uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio" (art. 22).
Porém, o tratado passa a ser cristalizador de doutrina e
constitutivo de costume e outras fontes, ao declarar, por
exemplo, que os Estados-partes "farão o estudo do espaço
cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, e
procederão à exploração de maneira a evitar os efeitos
prejudiciais de sua contaminação, assim como as modificações
nocivas no meio ambiente da Terra" (art. IX). Ou ainda, ao
preceituar (artigo 109) que os Estados-partes "examinarão,
em condições de igualdade, as solicitações dos demais
Estados-partes do Tratado no sentido de contarem com
facilidades de observação de vôo dos objetos espaciais
lançados por esses Estados", acrescentando, nesse mesmo
artigo (alínea 2ª), que "a natureza de tais facilidades de
observações e as condições em que poderiam ser concedidas
serão determinadas de comum acordo pelos Estados
interessados". Dada a natureza constitutiva do artigo 10,
explica-se que a delegação brasileira tenha formulado, no
curso da 215 Assembléia Geral da ONU, a 17 de dezembro de
1966, declaração interpretativa, confirmada ulteriormente na
fase da ratificação do tratado, segundo a qual, para fins do
mesmo artigo, "qualquer concessão de telemetria" pelas
fartes dependeria "de acordo entre os Estados interessados".
Assim sendo, o tratado passa a situar-se numa esfera de
convergência entre os vetores da codificação propriamente
dita e do desenvolvimento do direito internacional. Importa
observar que entre os tratados espaciais há uma seqüência
lógica de progressão temática e de detalhamento
programático. Do primeiro tratado, de 1966, consta a famosa
qualificação dos astronautas "como enviados da humanidade no
espaço cósmico" e o dever consignado aos Estados de lhes
prestar "toda assistência possível em caso de acidente,
perigo ou aterrissagem forçada de um outro Estado-parte do
tratado ou em alto mar" (art. 5º., 15 alínea). Há uma
solidariedade entre os astronautas que se comprometem,
"sempre que desenvolverem atividades no espaço cósmico e nos
corpos celestes", a prestar "toda assistência possível aos
astronautas dos outros Estados-partes do tratado ou em alto
mar" (ibidem). Tal disposição é o núcleo inicial a partir do
qual se desdobrou o processo de codificação que culminou
dois anos mais tarde no Acordo sobre Salvamento de
Astronautas e de Objetos lançados ao Espaço Cósmico.
Concluído em Londres, Washington e Moscou, a 22 de abril de
1968, esse Acordo, vigente entre nós nos termos do decreto
n° 71.989, de 26 de março de 1973, se refere também à
restituição de objetos lançados ao espaço cósmico.
Não estacionou aí o mecanismo de
desenvolvimento das normas espaciais. Sobre responsabilidade
internacional também versou a convenção de 1967. Os
Estados-partes, assim como organizações internacionais, têm
essa responsabilidade em decorrência de atividades nacionais
realizadas no espaço cósmico (art. VI). Todo Estado-Parte
"que proceda ou manda proceder ao lançamento de um objeto ao
espaço cósmico"-acrescenta o art. VII - "e qualquer
Estado-parte cujo território ou instalações servirem ao
lançamento de um objeto será responsável, do ponto de vista
internacional, pelos danos causados a outro Estado-parte do
Tratado ou a suas pessoas naturais pelo referido objeto ou
por seus elementos constitutivos, sobre a Terra, no espaço
cósmico ou no espaço aéreo". Tal foi o núcleo normativo do
qual germinaram e se desenvolveram as disposições
componentes da Convenção sobre responsabilidade por danos
causados por objetos espaciais, aberta à assinatura em
Londres, Moscou e Washington, a 29 de março de 1972, e que o
Brasil promulgou, por via do decreto n0 71.981, de 23 de
março de 1973.
Também a convenção pioneira de 1967 se
referia a registro de objeto lançado ao espaço cósmico,
registro esse que direta ou indiretamente é contemplado nas
convenções de 1968 e de 1972, a que acabamos de nos
reportar. Eis aí precedentes que acabaram por convergir na
convenção sobre registro de objetos lançados no espaço
exterior, aberta à assinatura em Nova York, a 14 de janeiro
de 1975, convenção essa à qual o Brasil não está vinculado.
O âmbito das ações dos Estados no
satélite da Terra não ficou excluído das quatro convenções
espaciais, que temos citado. A quinta convenção, adotada
pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 5 de dezembro de
1979 e aberta a assinatura em Nova York treze dias depois, e
da qual o Brasil ainda não é Parte, intitula-se,
precisamente, Tratado Regulamentador das Atividades do
Estados na Lua e Outros Corpos Celestes. Assim é que,
exemplificativamente, o artigo III demanda seja a Lua usada
pelas Partes exclusivamente para propósitos pacíficos,
enquanto o artigo IV dispõe ser ela província de toda a
humanidade e deve ser utilizada em benefício e interesse de
todos os Países, independentemente do respectivo grau de
desenvolvimento econômico ou científico. "Atenção devida
(diz esse artigo) deve ser prestada no interesse das atuais
e futuras gerações, assim como para a necessidade de
promover níveis mais altos de vida e condições de progresso
e desenvolvimento econômico e social".
VI. Observações conclusivas
Esta disposição do Tratado sobre a Lua
nos encaminha para características do direito espacial até
agora não sublinhadas e que devem sê-lo nesta oportunidade,
concernentes aos fatores tecnológico, científico, militar e
econômico e que contribuem para explicar a gênese e o
desenvolvimento desse direito. Tais fatores concorrem para
explicar o papel relevante exercido pelas superpotências no
processo de codificação, papel esse que, todavia, não chega
a ser exclusivo. Não se pode menosprezar a contribuição dos
demais Estados, assim como das organizações internacionais,
em particular das Nações Unidas, no plano da codificação
desse direito, o que explica a influência do COPUOS na
elaboração de resoluções e, principalmente, na preparação de
tratados internacionais aplicáveis ao espaço cósmico.
Todavia o direito não é apenas ordenamento normativo, senão
também constelação de valores, no âmbito da qeral se situa a
evocação da humanidade como realidade fática mas,
igualmente, como expressão de transcendência. Adquirem hoje,
pois, relevo singular temas relativos ao espaço exterior,
quais sejam, verbi gratia, o do patrimônio comum da
humanidade e o da condição do astronauta como emissário ou
embaixador dessa mesma humanidade.