Revista Brasileira de
Direito Aeronáutico e Espacial

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CODIFICAÇÃO DO DIREITO ESPACIAL

Vicente Marotta Rangel

Professor titular de Direito Internacional da USP.
Procurador jurídico da Agência Espacial Brasileira.
Presidente do IDIRI (Instituto de Direito Internacional
e Relações Internacionais). Membro da SBDA
(Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial).

(Palestra proferida no seminário
"O Brasil e o Direito das Atividades Espaciais",
promovido pela AEB e SBDA,
em maio de 1995).

 

I. Conceito de codificação

0 interesse do tópico que nos propomos abordar, se vincula com a questão mais genérica do processo legislativo do direito espacial. A indagação subsistente na codificação desse direito Consiste em saber como se elaboram as normas e qual o conteúdo próprio desse mesmo direito. Importa igualmente em saber qual a sistematização - se é que existe - alcançada por essas mesmas normas.

Evidentemente, o tema da codificação não tem pertinência exclusiva com o direito espacial. Está ele relacionado, ao contrário, com todos os ramos do direito, público e privado, interno e internacional. Não há como negar que o direito espacial, conquanto possua incidência no direito interno de cada País, se insere propriamente no direito internacional, do qual é apenas um dos ramos, por sinal dos mais recentes e promissores. Releva fixar, a título preliminar, tal inserção, pois a codificação alcança, no direito internacional, características próprias, que serão adiante objeto de menção. Comecemos, todavia, por indagar em que consiste a codificação e quais os propósitos em promovê-la.

A codificação consiste na conversão, em um corpo sistemático de regras escritas, das normas vigentes com pertinência a determinada matéria ou determinada relação. Tais normas, ainda que em vigor, nem sempre são escritas como ocorre, verbi gratia, com as de natureza consuetudinária.

Muitas vezes são avulsas, isoladas, como as que brotam de determinado fato social. Convém, pois, sistematizá-las num corpo de regras escritas. Eis, assim, o objetivo de toda codificação, pouco importando se refira ela a normas de direito público ou privado, a norma de direito interno ou do direito das gentes. Tal objetivo justifica, pois, tanto o pioneirismo de Napoleão Bonaparte na elaboração do Código Civil francês ou o empenho da Convenção de Filadélfia na gestação da primeira Constituição escrita de que se tem notícia, de 1787, como ainda o esforço envidado pela sexta conferência panamericana, em 1928, na aprovação do Código de direito internacional privado, o chamado Código Bustamante.

Uma das características do direito espacial reside em sua origem relativamente recente, pois somente lhe seria possível existir após a colocação em órbita do primeiro satélite artificial de nosso planeta, último elo da progressão de uma cadeia tecnológica. O direito emerge dos fatos, confirmando-se assim o adágio dos antigos romanos: ex facti jus oritur. É, sobretudo, a partir de 4 de outubro de 1957 que indagações começaram a formular-se em torno do conteúdo e da natureza das normas que deveriam compor o novo direito. Fatos relevantes subseqüentes concorreram por desafiar, como estímulo, o desenvolvimento do direito emergente, tais como o envio do primeiro homem ao espaço em 12 de abril de 1961, o desembarque na superfície lunar a 20 de julho de 1969, o acoplamento das naves Apollo e Soiúz 19, numa mesma experiência soviético-estadunidense, e o ciclo dos ônibus espaciais e das estações orbitais. Esse desenvolvimento não tem deixado de prosseguir, não obstante o cunho trágico de alguns eventos, como a tragédia do Challenger, que explodiu em sua décima missão a 28 de janeiro de 1986, acarretando a morte dos seus sete tripulantes. Fatos outros estão a exigir resposta no âmbito jurídico: centenas de objetos espaciais que remanescem no cosmos ou que reentram na atmosfera terrestre; a variedade desses objetos cuja catalogação poderia abranger os satélites científicos, para telecomunicação ou para a observação da terra, os quais incluem os satélites meteorológicos e os de sensoriamento remoto, assim como as sondas destinadas a saírem da zona de influência terrestre, e as plataformas espaciais concebidas para serem habitadas com permanência pelo homem.

A problemática da codificação nos impele a formular determinadas indagações, a saber: 1) quem codifica?; 2) o que se codifica?; 3) como se codifica?

 

II. Quem codifica

A primeira indagação consiste, pois, em saber, quem codifica o direito espacial. A rigor, o poder de codificar, ou seja, o poder de elaborar ou identificar normas que rejam o comportamento dos homens e Estados no espaço exterior (ou astronáutico), pertence aos próprios Estados. Esta resposta exige, no entanto, complementação, pois a era espacial, que estamos a viver, surgiu no contexto da área das organizações internacionais que, segundo alguns, constituem mesmo a marca específica do século XX. Ora, as organizações internacionais têm personalidade jurídica; direção autônoma; e vontade própria, a qual nem sempre é redutível à vontade dos respectivos Estados membros. O certo também é que o poder dos Estados na elaboração ou identificação das normas do direito espacial não se faz a título individual ou regional. O reconhecimento ou a gestão dessas normas, que têm um alcance universal e interessam, pois, concomitantemente aos habitantes do planeta Terra, exige a participação global de todos os Estados, e essa participação, conquanto pudesse em tese ocorrer fora do contexto das organizações internacionais, acaba se exercendo efetivamente no contexto delas, em particular no das Nações Unidas cuja legitimidade em matéria de codificação se assenta no propósito que os Estados lhe cometeram de alcançar a paz e o desenvolvimento de todos os povos. Assenta-se igualmente na competência deferida expressamente à Assembléia Geral da ONU, nos termos do art. 13, § 1o, alínea a da Carta de Organização — a de "incentivar o desenvolvimento progressivo do direito internacional e a sua codificação". Ora, a ONU é composta por Estados, os quais se fazem representar na Assembléia Geral. Em última análise, são os Estados, pois, os principais agentes da codificação do direito espacial.

 

III. O que se codifica

A segunda indagação que, como vimos, cabe suscitar é a seguinte: o que se codifica? Essa pergunta nos remete necessariamente ao tema das fontes do direito, ou seja, aos meios mediante os quais o direito é conhecido e aplicado. Como cada ramo tem suas próprias fontes, a codificação varia em função do ramo do direito a considerar e das fontes que lhe sejam respectivas. É fácil compreender que o conteúdo da codificação do direito interno difere do conteúdo da codificação do direito internacional. A razão está em que as fontes de um direito não coincidem necessariamente com as de outro direito. Como o direito espacial é um ramo do direito internacional (ou direito das gentes), saber qual o conteúdo efetivo ou potencial do direito espacial, requer que se explicitem as fontes do direito internacional. Tais fontes, como se sabe, estão elencadas no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.

Entre as fontes principais ali enunciadas, estão os tratados internacionais, em primeiro lugar. A codificação do direito espacial contemporâneo exigiria que nela se abrangessem, quando e enquanto couberem, normas de convenções internacionais como as que já foram promulgadas entre nós, a saber, o tratado sobre princípios reguladores das atividades dos Estados na Lua e demais corpos celestes, de 27 de janeiro de 1967 (promulgado internamente pelo decreto n0 64.362, de 17 de abril de 1969); a convenção sobre salvação de astronautas, retorno de astronautas e restituição de objetos lançados no espaço exterior, de 22 de abril de 1968 (promulgada entre nós pelo decreto n0 71.989, de 26 de março de 1973), e a convenção sobre responsabilidade internacional devida a danos causados por objetos espaciais, de 29 de março de 1972 (promulgada pelo decreto n0 71.981, de 22 de março de 1973).

A esses atos plurilaterais, poder-se-ia acrescentar convenções a que o nosso país não se vincula como a concernente a registro de objetos lançados no espaço exterior, de 14 de janeiro de 1975 e a que rege as atividades dos Estados na Lua e em outros corpos celestes (o chamado Tratado da Lua), de 1979. Observe-se, porém, que o conteúdo da codificação cresce de relevância à medida que abrange normas de vigência efetiva e de aplicação difundida.

Entre as fontes principais do direito internacional, catalogam-se também os costumes internacionais e os princípios gerais de direito.

Quanto aos costumes internacionais como conteúdo de codificação, pareceria, à primeira vista, que o tempo transcorrido desde o início da era espacial, ou seja, menos de quatro décadas, não teria sido suficiente para gerá-los. O requisito de longa consuetudine há de ser visto, porém, com cautela em nossos dias em face do chamado processo vertiginoso da história. Certo é que duas regras se têm admitido como tendo natureza consuetudinária. Vigem, pois, independentemente do fomento de outras fontes. A primeira dessas regras afirma que a soberania do Estado não se estende ao espaço situado além da atmosfera terrestre; a segunda reconhece a liberdade de circulação nesse espaço, independentemente da vontade do Estado ou dos Estados que venham a ser sobrevoados. Ambas as regras são, aliás, mutuamente relacionadas; a segunda não é senão corolário da primeira. Antes do advento dessas duas normas, prevalecia, como se sabe, a regra pela qual a soberania territorial do Estado se estenderia na direção do céu, usquead sidera. Tal regra era explicitada na doutrina e não possuía nenhum respaldo consuetudinário pela simples razão de inexistir outrora o uso do espaço cósmico, ou seja, o elemento objetivo apto à formação de costume. O lançamento e colocação em órbita do primeiro satélite artificial soviético em 1957 comportou, de fato, em giro de poucas horas, o sobrevôo do território de numerosos Estados, nenhum dos quais formulava qualquer protesto, protesto esse também inexistente por ocasião da passagem de satélites subseqüentes. Essa ausência de protestos é ainda mais significativa pelo fato de que elas têm sido constantemente formuladas pelos Estados quando, sem autorização, o espaço aéreo respectivo é singrado por aviões estrangeiros. Basta recordar os numerosos incidentes aéreos levados à consideração da Corte Internacional de Justiça no curso da década de 50 e sobretudo o abatimento, em 1960,do avião U-2 dos Estados Unidos que estava efetuando um vôo de reconhecimento no espaço aéreo da União Soviética. Não apenas a União Soviética protestou energicamente contra a violação de sua soberania senão também a juridicidade da posição de Moscou foi reconhecida pela maioria dos Membros do Conselho de Segurança. Desde então, outros incidentes ocorreram como o do abatimento, igualmente em 1960, de um bombardeiro americano RB-47 ao longo da costa soviética, dos quais emerge a tese de que o reconhecimento do território somente é lícito quando efetuado a partir do espaço aéreo suprajacente do alto mar. É o que nos esclarece POCAR, em obra recente.

Quanto a princípios gerais de direito, cabe observar que, desde os primórdios da era astronáutica, se cuidou de precisá-los. A Assembléia Geral das Nações Unidas os consignou na resolução n° 1962 (XVIII), de 13 de dezembro de 1963, e os explicitou no tratado internacional por ela adotado cerca de três anos mais tarde, em 19 de dezembro de 1966, ou seja, o tratado concernente a "princípios reguladores das atividades dos Estados na exploração e uso do espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes". Tais princípios são os seguintes: 1) a exploração e uso do espaço cósmico devem ter em mira o bem e interesse de todos os países e são incumbência de toda a humanidade; 2) o espaço cósmico não pode ser objeto de apropriação nacional; 3) o espaço cósmico poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados, sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes; 4) os astronautas são considerados como enviados da humanidade no espaço cósmico.

Quanto às fontes secundárias do direito internacional, cabe menção à jurisprudência internacional e à doutrina, sendo de notar inexistirem, até agora, sentenças dos tribunais internacionais concernentes à utilização do espaço cósmico. A doutrina, sim, tem contribuição a registrar, tendo sido ela a primeira a dá-la no tempo. Recordo-me, a propósito, que, transcorrido pouco mais de um ano do lançamento do "Sputnik", em artigo publicado na Revista da Universidade Católica de São Paulo (e depois reproduzido na Revista dos Tribunais, vol. 291, pp. 28 e segs.), intitulado "A soberania dos povos na era astronáutica", já me dava conta do estado da doutrina de então sobre "a natureza do espaço intersideral", mencionando autores como Kroell, Cooper, Costadvat, Ambrosini, citava mesmo Danier e Saporta que, em artigo publicado até dois anos antes desse lançamento na "Revue Genérale de l'Air", de 1955, n0 3, intitulado "Le Droit Aérien et les Satellites Artificiels", clamavam pela necessidade de refrear a corrida militar a esses satélites. Contribuição relevante da doutrina nesses primórdios foi o revigoramento do conceito de humanidade que, conhecido desde a Idade Antiga e realçado singularmente pelo cristianismo, se mantinha hibernado desde o advento do conceito e da prática de soberania dos Estados.

O consagrado e já referido artigo 38 dos Estatutos da Corte Internacional de Justiça transcreve disposição respectiva de outro Estatuto, o da Corte Permanente de Justiça Internacional, órgão principal de solução judiciária da extinta Sociedade das Nações. Na época de redação desse artigo, a era das organizações internacionais que estamos a viver se encontrava nos primórdios, razão pela qual o Estatuto não fazia menção às resoluções de órgãos internacionais cuja importância hoje é inegável. Essas resoluções, desde que se refiram ao cosmos, também constituem substância necessária do processo de codificação do direito espacial, pouco importando sejam elas fontes autônomas ou não do direito internacional; ou sejam catalogadas quer como acordos de forma simplificada, quer como declaratórias de costumes internacionais ou mesmo como elemento objetivo desses mesmos costumes.

 

IV. Como se codifica

A terceira indagação que, como apontamos, cabe formular, é a seguinte: como se codifica? A pergunta comporta várias respostas. Efetivamente, é possível codificar de três maneiras: a) por via da doutrina; b) mediante resolução de órgãos internacionais; c) por intermédio de tratados internacionais.

Por via da doutrina, a codificação pode ser individual como por exemplo, a feita no pretérito, na Europa por Pasquale Fiore ou no Brasil, por Epitácio Pessoa, ambas em relação ao direito internacional público; ou pode ser institucional, como a que vem sendo realizada, em diferentes quadrantes do direito internacional, por sociedades científicas como a American Society of International Law ou o Institut de Droit International. No caso específico do direito espacial, poder-se-ia mencionar a Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial como visando colaborar mediante cursos e publicações, na realização de uma codificação doutrinária.

A segunda maneira de codificar é por via de resoluções de órgãos internacionais. Diferentemente do Pacto da Sociedade das Nações, omisso no concernente ao tema da codificação, a Carta das Nações Unidas tem, como acima se disse, disposição sobre codificação do direito internacional. Investida de competência a respeito, a Assembléia Geral instituiu, nos primórdios de suas atividades, a 21 de novembro de 1947, a Comissão de direito internacional. A contribuição desta Comissão ao progresso desse direito tem sido relevante, bastando mencionar, no rol dos tratados internacionais de cuja elaboração participou, as Convenções de Genebra sobre direito do mar e as Convenções de Viena sobre relações diplomáticas, sobre relações consulares e sobre os próprios tratados internacionais, assinados respectivamente em 1961, em 1967 e em 1968. Embora houvesse tendência, no início, de conferir à Comissão de direito internacional, o monopólio na tarefa de codificação, tendência essa hoje praticamente insubsistente, os fatos acabaram revelando que, ao menos por exigências de tecnicidade e especialização, outros órgãos poderiam ser incumbidos da mesma tarefa. Foi o que ficou demonstrado logo após o início das atividades de exploração do espaço cósmico.

Notórias que são as implicações dessa exploração no âmbito do poder e da estratégia, principalmente das duas superpotências de então, apresentaram estas, no correr do ano subseqüente ao do lançamento do "Sputnik", sucessivamente, em 18 de março e em 2 de setembro de 1958, petição à Assembléia Geral visando à interdição do espaço cósmico para fins militares. A Assembléia Geral decidiu reunir ambas as petições e encaminhá-las ao exame de sua Primeira Comissão. A 13 de dezembro de 1958, ou seja, transcorrido pouco mais de um ano do lançamento do primeiro satélite, a Assembléia Geral, por via de resolução 1358 (XXII), criou um Comitê especial de 18 membros, o qual pela resolução 1472 (XIV) de 12 de dezembro de 1959, se converteu no COPUOS, o Comitê das utilizações pacíficas do espaço extra-atmosférico (United Nations Comittee on the Peaceful Uses of Outer Space). Assim, pouco mais de dois anos do início das atividades espaciais, estava criada uma Comissão especial que, tanto quanto a Comissão de direito internacional instituída cerca de doze anos antes, se incumbiu de codificar o direito internacional, mas num domínio particular, o do espaço cósmico. A contribuição tanto da Comissão de direito internacional quantodo COPUOS pode redundar em resoluções da Assembléia Geral, mediante as quais se codifica o direito internacional em seus diferentes domínios. Exemplo de resolução com esse alcance, mas em domínio diferente do direito espacial, é a Carta Econômica dos Estados, que foi adotada pela Assembléia Geral da ONU e cuja ressonância no direito internacional do desenvolvimento é bastante conhecida. Exemplos de resoluções da Assembléia Geral no domínio espacial são a de n0 1962 (XVIII), a que acima nos referimos, intitulada "Declaração dos Princípios Jurídicos Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico", (adotada por unanimidade a 13 de dezembro de 1963); e a de n0 1884 (XVIII) que insta os Estados a se absterem de colocar em órbita quaisquer objetos portadores de armas nucleares ou de qualquer outro tipo de arma de destruição em massa e de instalar tais armas em corpos celestes (adotada por unanimidade, a 17 de outubro de 1963).

Conquanto se admita que possuam as resoluções da Assembléia Geral positividade e cogência, forçoso é reconhecer não alcançarem o mesmo grau de normatividade dos tratados internacionais de que elas são, o mais das vezes, preparatórias. Via de regra, as resoluções antecipam e preludiam tratados internacionais sobre os mesmos assuntos. Os tratados podem ser, nesse sentido, corolário de resolução e testemunham também etapa mais avançada do processo de codificação. São os tratados, pois, a terceira via de codificação do direito internacional em geral e do direito espacial em particular. Objetos de aprovação dos Estados em suas relações recíprocas, tanto no âmbito de organizações internacionais como fora desse âmbito, tais tratados se incorporam ao direito interno desses mesmos Estados em conformidade com o estatuído nos respectivos ordenamentos constitucionais.

 

V. A importância dos tratados internacionais no processo de codificação

Ante a indagação que formulamos sobre como codificar, a resposta é que se pode fazê-lo por via da doutrina, de resolução de órgãos internacionais e, enfim, de tratados internacionais. São os tratados internacionais, pelo fato de serem providos de maior grau de positividade e de eficácia, os instrumentos mais adequados da codificação. Sucede também que os tratados internacionais não são apenas a resultante preferível do processo de codificação mas também se constituem em matéria prima desse processo, indo nutrir a codificação doutrinária e a codificação por via de resoluções internacionais. A doutrina e as resoluções se convertem, por seu turno, em matéria-prima de toda codificação cujo remate são os próprios tratados internacionais. As demais fontes do direito das gentes, como os costumes e a jurisprudência internacionais, que não são adequadas formalmente à tarefa de codificação, continuam necessariamente a alimentar o processo codificatório. Todas as fontes, aliás, quaisquer que sejam, em maior ou menor grau, constituem nutrientes indispensáveis desse mesmo processo. Há, pois, entre essas fontes, uma relação mútua necessária, de reversibilidade, que se insere na espiral de um processo dialético.

A título de ilustração do que acaba de ser dito, reportemo-nos, ainda que de modo sumário, às convenções internacionais de direito espacial.

Tomemos, de início, o tratado de 29 de dezembro de 1966, sobre princípios, que o Brasil ratificou e promulgou (decreto n0 64.362, de 17de abril de 1969). Já o preâmbulo menciona três resoluções da Assembléia Geral, patamares intermediários que o são na construção normativa do tratado. Na parte dispositiva, o tratado se restringe a ser declaratório de costumes e de doutrinas então prevalecentes, ao consignar que o espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos, "poderá ser explorado e utilizado, livremente, por todos os Estados, sem qualquer discriminação" (art. 1Q, alínea 2à), não podendo "ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio" (art. 22). Porém, o tratado passa a ser cristalizador de doutrina e constitutivo de costume e outras fontes, ao declarar, por exemplo, que os Estados-partes "farão o estudo do espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, e procederão à exploração de maneira a evitar os efeitos prejudiciais de sua contaminação, assim como as modificações nocivas no meio ambiente da Terra" (art. IX). Ou ainda, ao preceituar (artigo 109) que os Estados-partes "examinarão, em condições de igualdade, as solicitações dos demais Estados-partes do Tratado no sentido de contarem com facilidades de observação de vôo dos objetos espaciais lançados por esses Estados", acrescentando, nesse mesmo artigo (alínea 2ª), que "a natureza de tais facilidades de observações e as condições em que poderiam ser concedidas serão determinadas de comum acordo pelos Estados interessados". Dada a natureza constitutiva do artigo 10, explica-se que a delegação brasileira tenha formulado, no curso da 215 Assembléia Geral da ONU, a 17 de dezembro de 1966, declaração interpretativa, confirmada ulteriormente na fase da ratificação do tratado, segundo a qual, para fins do mesmo artigo, "qualquer concessão de telemetria" pelas fartes dependeria "de acordo entre os Estados interessados". Assim sendo, o tratado passa a situar-se numa esfera de convergência entre os vetores da codificação propriamente dita e do desenvolvimento do direito internacional. Importa observar que entre os tratados espaciais há uma seqüência lógica de progressão temática e de detalhamento programático. Do primeiro tratado, de 1966, consta a famosa qualificação dos astronautas "como enviados da humanidade no espaço cósmico" e o dever consignado aos Estados de lhes prestar "toda assistência possível em caso de acidente, perigo ou aterrissagem forçada de um outro Estado-parte do tratado ou em alto mar" (art. 5º., 15 alínea). Há uma solidariedade entre os astronautas que se comprometem, "sempre que desenvolverem atividades no espaço cósmico e nos corpos celestes", a prestar "toda assistência possível aos astronautas dos outros Estados-partes do tratado ou em alto mar" (ibidem). Tal disposição é o núcleo inicial a partir do qual se desdobrou o processo de codificação que culminou dois anos mais tarde no Acordo sobre Salvamento de Astronautas e de Objetos lançados ao Espaço Cósmico. Concluído em Londres, Washington e Moscou, a 22 de abril de 1968, esse Acordo, vigente entre nós nos termos do decreto n° 71.989, de 26 de março de 1973, se refere também à restituição de objetos lançados ao espaço cósmico.

Não estacionou aí o mecanismo de desenvolvimento das normas espaciais. Sobre responsabilidade internacional também versou a convenção de 1967. Os Estados-partes, assim como organizações internacionais, têm essa responsabilidade em decorrência de atividades nacionais realizadas no espaço cósmico (art. VI). Todo Estado-Parte "que proceda ou manda proceder ao lançamento de um objeto ao espaço cósmico"-acrescenta o art. VII - "e qualquer Estado-parte cujo território ou instalações servirem ao lançamento de um objeto será responsável, do ponto de vista internacional, pelos danos causados a outro Estado-parte do Tratado ou a suas pessoas naturais pelo referido objeto ou por seus elementos constitutivos, sobre a Terra, no espaço cósmico ou no espaço aéreo". Tal foi o núcleo normativo do qual germinaram e se desenvolveram as disposições componentes da Convenção sobre responsabilidade por danos causados por objetos espaciais, aberta à assinatura em Londres, Moscou e Washington, a 29 de março de 1972, e que o Brasil promulgou, por via do decreto n0 71.981, de 23 de março de 1973.

Também a convenção pioneira de 1967 se referia a registro de objeto lançado ao espaço cósmico, registro esse que direta ou indiretamente é contemplado nas convenções de 1968 e de 1972, a que acabamos de nos reportar. Eis aí precedentes que acabaram por convergir na convenção sobre registro de objetos lançados no espaço exterior, aberta à assinatura em Nova York, a 14 de janeiro de 1975, convenção essa à qual o Brasil não está vinculado.

O âmbito das ações dos Estados no satélite da Terra não ficou excluído das quatro convenções espaciais, que temos citado. A quinta convenção, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 5 de dezembro de 1979 e aberta a assinatura em Nova York treze dias depois, e da qual o Brasil ainda não é Parte, intitula-se, precisamente, Tratado Regulamentador das Atividades do Estados na Lua e Outros Corpos Celestes. Assim é que, exemplificativamente, o artigo III demanda seja a Lua usada pelas Partes exclusivamente para propósitos pacíficos, enquanto o artigo IV dispõe ser ela província de toda a humanidade e deve ser utilizada em benefício e interesse de todos os Países, independentemente do respectivo grau de desenvolvimento econômico ou científico. "Atenção devida (diz esse artigo) deve ser prestada no interesse das atuais e futuras gerações, assim como para a necessidade de promover níveis mais altos de vida e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social".

 

VI. Observações conclusivas

Esta disposição do Tratado sobre a Lua nos encaminha para características do direito espacial até agora não sublinhadas e que devem sê-lo nesta oportunidade, concernentes aos fatores tecnológico, científico, militar e econômico e que contribuem para explicar a gênese e o desenvolvimento desse direito. Tais fatores concorrem para explicar o papel relevante exercido pelas superpotências no processo de codificação, papel esse que, todavia, não chega a ser exclusivo. Não se pode menosprezar a contribuição dos demais Estados, assim como das organizações internacionais, em particular das Nações Unidas, no plano da codificação desse direito, o que explica a influência do COPUOS na elaboração de resoluções e, principalmente, na preparação de tratados internacionais aplicáveis ao espaço cósmico. Todavia o direito não é apenas ordenamento normativo, senão também constelação de valores, no âmbito da qeral se situa a evocação da humanidade como realidade fática mas, igualmente, como expressão de transcendência. Adquirem hoje, pois, relevo singular temas relativos ao espaço exterior, quais sejam, verbi gratia, o do patrimônio comum da humanidade e o da condição do astronauta como emissário ou embaixador dessa mesma humanidade.

 

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