Espaço como propriedade privada e teatro de guerra?
José
Monserrat Filho *
“Agora é o momento para algumas considerações sobre o
poder econômico privado e sua autonomia, entendida como
tendência de escapar das garras do direito (nacional e
internacional) centrado no estado e de empregar a
auto-regulação”.
Luigi Condorelli e Antonio Cassese¹
Há duas
crescentes pressões no jogo da política espacial no mundo de
hoje, que se relacionam fortemente. Uma força o
estabelecimento no espaço e nos corpos celestes do direito
de propriedade privada, no interesse de grandes corporações.
A outra força a instalação de armas no espaço, o que pode
convertê-lo no quarto campo de batalha, além da terra, do
mar e do espaço aéreo.
O artigo
“Leis de propriedade na Lua: uma necessidade futura?”, de
Boris Pavlischev, publicado na última 5ª-feira, 20 de
fevereiro, pelo jornal “Voz da Russia”, de Moscou, reflete a
pressão para mudar o regime jurídico vigente, que começou a
ser articulado logo no início da Era Espacial – inaugurada
com o voo do Sputnik-1 em 4 de outubro de 1957.
Esse
regime foi consolidado pelo Tratado do Espaço de 1967, hoje
ratificado por 102 países, assinado por 26 e, além disso,
considerado costume válido na prática para todos os demais
países (cerca de 67), pois nenhum deles manifestou qualquer
restrição ao tratado nos 47 anos de sua vigência. (Admite-se
atualmente a existência de, pelo menos, 195 países.)
Pelo
Art. II do Tratado do Espaço de 1967, “o espaço cósmico,
inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser
objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania,
por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio.” Esse
princípio é de tal forma abrangente que não deixa margem a
qualquer outra interpretação. Não há lacunas. Estão
proibidos todos os modos e possibilidades de propriedade
privada no espaço e nos corpos celestes, a começar pela Lua,
para cuja exploração industrial e comercial voltam-se agora
inúmeros projetos empresariais.
Tal
regra se harmoniza perfeitamente com os dois parágrafos do
Art. I do Tratado do Espaço:
1) “A
exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e
demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e o
interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de
seu desenvolvimento econômico e científico, e são
incumbência de toda a humanidade.”; e
2) “O
espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes,
poderá ser explorado e utilizado livremente por todos os
Estados sem qualquer discriminação, em condições de
igualdade e em conformidade com o direito internacional,
devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos
corpos celestes.”
Daí que
o espaço e os corpos celestes são “áreas de uso comum”. Há
um caso similar aqui na Terra. A Antártica também é “área de
uso comum” pelo Tratado de 1959, pois nenhum Estado pode
exercer ali sua soberania.
Esse,
portanto, é o quadro legal em vigor: o espaço e os corpos
celestes são inapropriáveis. É possível mudar o Tratado do
Espaço?
Legalmente, sim. Pelo Art. XV, “qualquer
Estado Parte pode propor emendas ao presente Tratado. As
emendas entrarão em vigor para cada Estado Parte que as
aceite logo que sejam aceitas pela maioria dos Estados
Partes no Tratado e, posteriormente, para cada um dos outros
Estados Partes na data da sua aceitação das referidas
emendas.”
Politicamente, a história é diferente. A esmagadora maioria de seus
Estados-Membros, inclusive grandes potências como os Estados
Unidos e a Rússia, não concorda com emendar o Tratado.
Qualquer alteração, no caso, exigiria amplo consenso,
que hoje não existe nem é previsível.
Como mudar, então, o Tratado?
Eis a
questão que enfrentam neste momento todos os empresários e
interessados em introduzir o direito de propriedade privada
no espaço e nos corpos celestes. Talvez por isso eles
estejam aumentando a pressão neste sentido. Mas seus
argumentos são frágeis, insustentáveis, quando não
primariamente equivocados.
Boris
Pavlischev começa seu artigo dizendo que o Tratado do Espaço
“terá provavelmente de ser alterado para incluir a atividade
de empresários privados”. Certo? Errado. As atividades
espaciais de empresários privados já estão previstas no
Tratado. Basta ler seu artigo VI: “Os Estados-Partes do
Tratado têm a responsabilidade internacional das atividades
nacionais realizadas no espaço cósmico, inclusive na Lua e
demais corpos celestes, quer sejam elas exercidas por
organismos governamentais ou por entidades
não-governamentais, e de velar para que as atividades
nacionais sejam efetuadas de acordo com as disposições
anunciadas no presente Tratado. As atividades das entidades
não-governamentais no espaço cósmico, inclusive na Lua e
demais corpos celestes, devem ser objeto de uma autorização
e de uma vigilância contínua pelo respectivo Estado-Parte do
Tratado.”
Onde se
lê “entidades não-governamentais”, leia-se “empresas
privadas”, e tudo fica mais claro. Como efeito desse artigo,
as entidades não-governamentais (empresas privadas) só podem
atuar no espaço e nos corpos celestes com “autorização” e
sob “vigilância contínua” de seus respectivos Estados. Isso
evidentemente pode limitar a ação das empresas privadas,
obrigando-as a respeitar o Tratado. Como se sabe, sobretudo
as grandes corporações privadas costumam ter aversão a
regulamentações e preferem agir com a maior liberdade
possível.
Segundo
Boris Pavlischev, o empresário norte-americano Robert
Bigelow acredita que os futuros assentamentos privados e as
empresas de extração de matérias-primas na Lua provocarão
disputas territoriais entre os seus proprietários. Dono da
Bigelow Aerospace Company, ele projeta e constrói módulos
infláveis para habitações, que poderão ser usadas na criação
de uma base lunar, com indústrias e hotéis. Bigelow se
pergunta se os proprietários dessas instalações, inclusive,
por exemplo, os proprietários de uma empresa de extração do
gás hélio-3 (He-3) – tão abundante na Lua quanto raro na
Terra, embora muito útil para pesquisas sobre fusão nuclear
– serão donos também da área subjacente e poderão impedir a
entrada de qualquer outra empresa concorrente.
Para o
Bigelow, a indústria lunar é inviável sem a garantia de
direitos exclusivos sobre as áreas de extração de recursos
naturais. Por essas e outas, ele cometeu um erro elementar:
escreveu ao Departamento de Transporte Espacial Comercial,
vinculado à Administração Federal de Aviação dos Estados
Unidos, certo de que essa instituição podia emitir licenças
para que cada empresa interessada se tornasse proprietária
de certas áreas de exploração lunar. Ele está convencido de
que a outorga de títulos de propriedade nos corpos celestes
não viola o Tratado do Espaço, como relata o jornalista
russo. Ocorre que, pelo Tratado em vigor, nenhum país têm
jurisdição sobre a Lua ou qualquer outro corpo celeste, e
suas partes. Assim, nenhum país está habilitado a atribuir
títulos de propriedade a quem quer que seja.
Boris
Pavlischev cita também a opinião de seu colega de imprensa
Igor Lisov, vice-editor-chefe de Notícias da revista
Cosmonáutica, que vê um conflito de normas nesta matéria: de
um lado, o Tratado do Espaço não permite que os corpos
celestes sejam reclamadas por qualquer país, mas de outro
nada diz sobre o uso privado de tais corpos. Lisov acertou
num alvo e errou no outro. É certo, como vimos, que os
corpos celestes são inapropriáveis. Mas não é certo, como
também vimos, que o Tratado do Espaço nada mencione sobre o
uso privado desses corpos. Esse uso, vale repetir, é
autorizado e fiscalizado pelos Estados.
Não por
acaso, autoridades dos EUA já indeferiram as reclamações de
propriedade no espaço de dois americanos, Dennis Hope e
Gregory Nemitz. Denis queria ser proprietário de terrenos na
Lua e poder vendê-los, como começou a fazer em 1980.
Gregory, considerando-se dono do asteroide Eros,
chegou a cobrar o aluguel de 20 dólares, quando uma nave da
NASA ali pousou em 2001. A NASA taxou a ação de ilegal,
alegando falsa interpretação do Tratado do Espaço.
A
opinião de Alexander Zheleznyakov, membro da Academia Russa
de Cosmonáutica, também foi reproduzida por Pavlischev:
"Naves espaciais privadas não-tripuladas já estão voando,
mas em breve serão pilotadas. Isso significa que as pessoas
vão passar mais tempo no espaço. É claro que algumas
relações jurídicas serão estabelecidas entre elas, bem como
entre representantes de diferentes empresas. Tais relações
terão de ser regulamentadas de alguma forma."
Correto.
É necessário ordenar a intensa comercialização das
atividades espaciais no plano global, as relações entre as
empresas e os países e suas populações, bem como as relações
entre as próprias empresas. Mas isso não implica
necessariamente em mudar o Tratado do Espaço para substituir
o princípio do uso comum pelo da propriedade privada. Até
porque, como a experiência já demonstrou em 56 anos de Era
Espacial, isso não é necessário para colocar os benefícios e
riquezas do espaço a serviço da humanidade. Precisamos é
impulsionar, com mais benefícios e riquezas, o
desenvolvimento e bem-estar de mais e mais povos e países,
eliminando a fome e a miséria e reduzindo as brutais
desigualdades em nosso planeta.
As
empresas podem seguir contribuindo para grandes avanços na
exploração e uso do espaço, sob a égide dos estados e das
organizações intergovernamentais, como as Nações Unidas,
capazes de traduzir como nenhuma outra entidade o interesse
público, que, como é notório, nem sempre coincide com os
interesses privados.
Quanto às pressões pela instalação de armas no espaço, elas atendem,
sobretudo, aos interesses das corporações hoje envolvidas
com o desenvolvimento e a produção dessas armas e de todo o
complexo aparato indispensável para o funcionamento dos
sistemas de guerra espacial. Trata-se de uma força
empresarial de imenso poder global, que movimenta anualmente
muitos bilhões de dólares, bem mais do que grande parte dos
países é capaz de movimentar. Se tais corporações, já tão
poderosas na Terra – financeira e tecnologicamente – puderem
se tornar proprietárias nos corpos celestes, quem
efetivamente teria as melhores condições para dominar o
espaço? E quem, nessa hipótese, cuidaria, com o zelo
imprescindível, do interesse público?
*
Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito
Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do
Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro
Pleno da Academia Internacional de Astronáutica e,
atualmente, Chefe da Assessoria de Cooperação
Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB).
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1) No artigo “Is Leviathan Still Holding Sway
Over International Dealings”, publicado no livro “Realizing
Utopia – The Future of International Law”, editado por
Antonio Cassese, United Kingdom: Oxford University Press,
2012, p. 20.
* * *
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