Rumo à Lei
Geral das Atividades Espaciais no Brasil
José
Monserrat Filho*
“The
authorization of space activities is the core regulation within such
legislation.”
Stephan Hobe[1]
O Núcleo de Estudos de
Direito Espacial (NEDE),
da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA),
decidiu, em sua reunião de 22 de março passado, criar um grupo de
trabalho especial para elaborar um pré-projeto da “Lei Geral das
Atividades Espaciais no Brasil”, como contribuição da SBDA ao esforço
que está sendo feito pela Agência Espacial Brasileira (AEB) para
atualizar, modernizar e dinamizar a exploração e o uso do espaço
exterior pelo país.
Por que devemos bem
regulamentar nossas atividades espaciais?
Quem pergunta é o novo
Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE 2012-2021), que também a
responde:
“Mais e mais países adotam
leis nacionais para ordenar suas atividades espaciais em harmonia com as
normas internacionais aprovadas no âmbito das Nações Unidas. Pelo artigo
6º do Tratado do Espaço de 1967, cada país responde internacionalmente
pelas atividades espaciais nacionais, sejam elas realizadas por
entidades públicas ou privadas. Cabe ao país autorizá-las (ou não) e
exercer vigilância contínua sobre elas. Diante do programa espacial
ampliado que o Brasil executará nos próximos dez anos, precisamos criar
uma lei geral das atividades espaciais, com normas que atendam aos
padrões internacionais em matéria de segurança espacial, qualidade de
produtos e serviços, bem como de acordos e contratos de aceitação
universal.”[2]
O primeiro passo do grupo de
trabalho do NEDE/SBDA,
no cumprimento de tarefa tão oportuna e complexa, é reunir as
legislações espaciais já adotadas por muitos países, entre os quais se
destacam: África do Sul, Austrália, Áustria, Bélgica, Casaquistão,
Estados Unidos, França, Holanda, Japão, Noruega, Suécia, Reino
Unido, Rússia, Ucrânia, entre outros. São experiências vivas que não
podemos ignorar, ainda que as atividades espaciais do Brasil tenham não
poucas características e necessidades jurídicas específicas. O
importante é levar na devida conta o que é comum e imprescindível a
todas, ou a quase todas, as legislações nacionais em vigor.
Convém considerar também o
modelo para elaboração de uma legislação espacial nacional, discutido e
construído passo a passo pelo Comitê de Direito Espacial da Associação
de Direito Internacional (International Law Association – ILA), ao longo
das Conferências da ILA de 2006, em Toronto, Canadá; de 2008, no Rio de
Janeiro; de 2010, em Haia, Holanda; e de 2012, em Sofia, Bulgária, onde
foi aprovado e divulgado.[3]
O modelo proposto pela ILA[4]
tem 14 artigos, assim intitulados: 1) Campo de Aplicação; 2) Definições
– Uso dos termos; 3) Autorização; 4) Condições de autorização; 5)
Supervisão das atividades espaciais; 6) Cancelamento, suspensão e
alteração da autorização; 7) Proteção do meio ambiente; 8) Redução dos
detritos espaciais; 9) Transferência da atividade espacial; 10)
Registro; 11) Responsabilidade e recursos; 12) Seguro; 13) Procedimento;
e 14) Sanções.
O artigo 1º, sobre a área de
cobertura, indica: “A presente lei aplica-se às atividades espaciais
realizadas por cidadãos do Estado XY ou às pessoas jurídicas
incorporadas no Estado XY, bem como às atividades espaciais realizadas
dentro do território do Estado XY ou por meio de navios ou aeronaves no
Estado XY.”
O artigo 2º define os termos
“atividade espacial” (lançamento, operação, guiagem e reentrada de um
objeto espacial no e desde o espaço exterior e outras atividades
essenciais com este mesmo fim), “atividade espacial comercial”
(“atividade espacial conduzida por entidade governamental ou privada
destinada a gerar receita e lucro”), “objeto espacial”, “operador”
(pessoa física ou jurídica que realiza atividade espacial),
“autorização” (que inclui o licenciamento) e “supervisão” (observação e
monitoramento contínuo de uma atividade espacial).
O artigo 4º lista as
condições indispensáveis à concessão de autorização (o operador deve ter
capacidade financeira e capacidade técnica confiável; a atividade
espacial não deve causar danos ao meio ambiente da Terra e do espaço,
deve reduzir o incremento de detritos espaciais, deve cumprir as normas
de segurança pública, deve atender aos interesses de segurança nacional,
e não deve se opor às obrigações internacionais e aos interesses da
política exterior do Estado XY; o operador deve cumprir os regulamentos
da União Internacional de Telecomunicações (UIT) sobre alocações de
frequência e de posições orbitais; e deve estar munido de um seguro).
O artigo 9º trata da
“Transferência de atividade espacial” de um operador a outro (autorizada
por um ministro), que inclui a transferência de propriedade de um objeto
espacial em órbita.
O artigo 11 cuida da
responsabilidade e de recursos pertinentes e observa que “quando o
Estado XY paga indenização a terceiras partes por dano causado por uma
atividade espacial em cumprimento às suas obrigações internacionais, o
governo tem o direito de regresso contra o operador”. Ou seja, o governo
pode exigir dele uma compensação. Mas a ação do governo contra o
operador, nesse caso, deve ser limitada em seu montante.
Vale trazer a lume, aqui, as
portarias sobre licenciamento e autorização
para o exercício de atividades espaciais no Brasil, aprovadas pelo
Conselho Superior da AEB, respectivamente em 2001 e 2002. A primeira
ordena o processo de licenciamento de uma empresa privada para preparar
um lançamento espacial no Brasil. A segunda regula os requerimentos
necessários para que uma empresa privada seja autorizada a realizar um
lançamento espacial a partir do território brasileiro. As duas portarias[5]
foram criadas para organizar a base jurídica necessária ao ingresso do
Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) como opção competitiva no
mercado mundial de lançamentos comerciaisO plano continua sendo válido,
agora com o emprego do lançador ucraniano Cyclone-4, promovido pela
empresa binacional Alcântara Cyclone Space (ACS), criada em 2006.
Também o órgão especializado
das Nações Unidas
em temas espaciais resolveu fazer uma série de recomendações sobre como
construir uma lei nacional para o setor. Em 2012, o Subcomitê Jurídico
do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (COPUOS, na
conhecida sigla em inglês) aprovou novo item em sua agenda: “A
Legislação Nacional sobre a Exploração e Uso do Espaço Exterior para
Fins Pacíficos”
[6]
. Ato contínuo instituiu-se um grupo de trabalho específico para estudar
a prática atual dos países em matéria de leis espaciais domésticas. O
grupo de trabalho decidiu em boa hora elaborar e propor a todos os
países um conjunto de recomendações, a fim de facilitar a criação de uma
lei espacial nacional. Esse documento continua sendo debatido e ganhando
novas ideias. Mas ele tem chance de ser aprovado na próxima reunião do
Subcomitê Jurídico do COPUOS, a ter lugar em Viena, Áustria, de 8 a 19
deste mês de abril.
Eis, em tradução livre, o
texto atual das recomendações, ainda em discussão:
“1.
O escopo das atividades espaciais, visado pelos marcos regulatórios
nacionais, pode incluir, conforme o caso, o lançamento de objetos ao
espaço e seu retorno do espaço, a operação de lançamento ou o lugar da
reentrada, e a operação e controle de objetos espaciais em órbita;
outras questões para análise podem incluir o projeto e fabricação de
naves espaciais, a aplicação da ciência e tecnologia espaciais, e as
atividades de exploração e pesquisa;
2. O Estado, tendo em conta as obrigações de um Estado como Estado
lançador e como Estado responsável pelas atividades nacionais no espaço
exterior, segundo os tratados das Nações Unidas sobre o espaço exterior,
deve definir a jurisdição nacional sobre as atividades espaciais
realizadas de seu território; do mesmo modo, deve supervisionar e
controlar as atividades espaciais realizadas em qualquer outro lugar por
seus cidadãos ou pessoas jurídicas estabelecidas, registradas ou
assentadas em seu território ou em território sob sua jurisdição e/ou
controle, desde que, no entanto, se outro Estado exerce jurisdição sobre
tais atividades, o Estado deve se abster de exigências de duplicação e
evitar encargos desnecessários aos operadores de objetos espaciais;
3. Atividades espaciais devem requerer a autorização de uma autoridade
nacional competente; tal autoridade (s), bem como as condições e
procedimentos para concessão, alteração, suspensão ou revogação da
autorização devem ser claramente definidas no regulamento; os Estados
podem usar procedimentos específicos para licenciamento e/ou autorização
de diferentes tipos de atividades espaciais;
4. As condições de autorização devem ser consistentes com as obrigações
internacionais dos Estados, em especial no âmbito dos tratados das
Nações Unidas sobre o espaço exterior, e com outros instrumentos
relevantes, e podem refletir a segurança nacional e os interesses da
política externa dos Estados; as condições de autorização devem ajudar a
constatar que as atividades espaciais se realizam de forma segura e
minimizar os riscos para as pessoas, para o meio ambiente ou para a
propriedade, e que essas atividades não levam à interferência
prejudicial em outras atividades espaciais; tais condições poderiam
também se referir à experiência, à perícia e às qualificações técnicas
do candidato, e podem incluir normas técnicas e de segurança
sintonizadas, em particular, com às Diretrizes sobre a Redução dos
Detritos Espaciais, aprovadas pelo Comitê para o Uso Pacífico do Espaço
Exterior (COPUOS);
5. Procedimentos adequados devem garantir a supervisão e o monitoramento
contínuos das atividades espaciais autorizadas, mediante, por exemplo, o
uso de um sistema de inspeções locais ou a exigência de relatórios mais
gerais; mecanismos de sanções podem incluir medidas administrativas,
como a suspensão ou revogação da autorização, e/ou punições, conforme o
caso;
6. Um registro nacional de objetos lançados no espaço exterior deve ser
mantido por autoridade nacional apropriada; operadores ou proprietários
de objetos espaciais, para os quais o Estado é considerado o Estado
lançador devem ser solicitados a enviar informações para essa
autoridade, a fim de permitir que o Estado apresente a informação
relevante ao Secretário-Geral das Nações Unidas, em conformidade com os
instrumentos internacionais, incluindo a Convenção sobre Registro de
Objetos Lançados ao Espaço Exterior e considerando as resoluções da
Assembléia Geral 1721 (XVI) B, de 20 de dezembro de 1961, e 62/101, de
17 de Dezembro de 2007; o Estado também pode solicitar aos operadores a
apresentarem informações sobre qualquer alteração das características
principais dos objetos espaciais, em particular quando eles que se
tornaram não funcionais;
7. O Estado poderia estudar formas de buscar recursos de operadores ou
de proprietários de objetos espaciais, se sua responsabilidade por
danos, de acordo com os tratados das Nações Unidas sobre o espaço
exterior, foi comprometida; para assegurar a cobertura adequada às
reclamações pelo dano, o Estado pode introduzir procedimentos de
exigência de seguro e de indenização, conforme o caso;
8. A supervisão contínua das atividades espaciais de entidades não
governamentais deve ser assegurada em caso de transferência, em órbita,
da propriedade ou do controle de um objeto espacial; regulamentos
nacionais podem estabelecer requisitos de autorização sobre a
transferência da propriedade ou de obrigações, por meio da apresentação
de informações sobre a mudança no
status de um objeto espacial em órbita.”
Essas indicações, devidamente
analisadas e adaptadas, segundo as necessidades e singularidades
brasileiras, podem ser muito úteis ao labor do GT do NEDE/SBDA.
* Chefe da Assessoria de
Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB)
Referências
[1]
Hobe,
Stephan, The ILA Model Law for National Space Legislation, in
ZLW – German Journal of Air and Space Law, nº 62, 1/2013, pp. 81-95.
Tadução livre:
“A autorização das atividades espaciais é o núcleo da regulamentação
dentro desta legislação.”
[2]
Ver texto completo em
português e em inglês no site <www.eb.gov.br>
[3]
ILA Sofia
Guidelines for a Model Law on National Space Legislation (2012) ,
ILA Space Law Committee. Report of the Seventy-Fifith Confrence,
Sofia 2012. Site:
<http://www.ila-hq.org>.
[4]
Ver o artigo de Stephan
Hobe, mencionado na referência 1.
[5]
Monserrat
Filho, José, Regulation of Space Activities in Brazil, in
National Regulation of Space Activities, Editor: Ram Jakhu;
Dordrecht, Heidelberg, London, New York: Springer, 2010, pp. 61-80.
[6]
UN Document
A/AC.105/1003, Report of the Legal Subcommittee on its Fifty-First
Session (Viena, 19-30/03/2012).